- O Globo
Raya El-Hassan é a única a emergir mais ou menos intacta dos protestos que transformaram as ruas de Beirute em assembleia geral permanente
Ela é chamada de “Erin Brockovich da Eslováquia”, referência à combativa ativista americana que em 1993 derrotou o conglomerado elétrico Pacific Gas and Electric Company numa causa ambiental considerada perdida. (O papel desta dona de casa que arregaça as mangas valeu a Julia Roberts o Oscar de melhor atriz no filme homônimo de 2000). A versão 2019 de Erin chama-se Zuzana Caputová, é advogada e, aos 45 anos, tornou-se a mais jovem presidente da história da Eslováquia.
O ativismo de Caputová a fez lutar por sete anos a favor do fechamento de um aterro sanitário tóxico na sua cidade natal de Pezinok e contra a construção de outro a menos de 300 metros de área residencial. Estava grávida ao se juntar ao movimento e na hora do parto ainda assinou relatórios. “A maternidade me levou ao ativismo”, diz. Não desistiu até ser ouvida perante a Corte Europeia de Justiça, que lhe deu ganho de causa. Desde a chamada “Revolução de Veludo” de 1989 na antiga Tchecoslováquia não se via um caso de vitória cívica tão relevante no país.
Caputová é mãe divorciada de dois filhos num país de catolicismo conservador, apoia a causa LGBTQ e defende o acesso à saúde e a escolhas reprodutivas da mulher. Ainda assim, foi eleita para a Presidência, que na Eslováquia parlamentarista tem comando sobre as Forças Armadas, poder de nomear juízes e vetar determinados atos do primeiro-ministro. Parece ponto fora da curva da cepa de nativismo populista e iliberal que tem se enraizado no mundo, mas não é.
No Oriente Médio o nome feminino a marcar 2019 é o da libanesa Raya El-Hassan. Ela é a única a emergir mais ou menos intacta dos protestos que transformaram as ruas de Beirute em assembleia geral permanente, e que não têm data para acabar. Com o país acéfalo (o primeiro-ministro Saad Hariri está demissionário há dois meses) e atolado economicamente (terceira maior dívida mundial em proporção a seu Produto Interno Bruto), Raya El-Hassan tem em mãos o comando da força policial de 40 mil homens do Estado. Não é pouca coisa para uma nação coalhada de senhores de guerra cascudos, ranqueada pelo World Economic Forum na 10ª pior colocação em condição feminina, e com apenas seis mulheres num Parlamento de 128 cadeiras. Na década passada, a libanesa já havia sido a primeira mulher do mundo árabe a ocupar a pasta das Finanças. E este ano tornou-se a primeira e única ministra do Interior de uma nação árabe. Vai abrindo caminho em terreno minado. “A elite política do país não pode mais se esquivar das manifestações de protesto”, avisa. Sobre o que fazer com o partido fundamentalista Hezbollah e seu braço paramilitar, considerados terroristas pelos Estados Unidos e outros governos, El-Hassan é pé no chão: “O Hezbollah é parte do tecido social do Líbano, não vão sair para outro lugar”.
Um vol-d’oiseau seletivo de final de ano também faz pousar na Etiópia, onde os membros do Parlamento elegeram Sahle-Work Zewde para primeira presidente de sua história recente (em tempos anteriores o país teve inúmeras imperatrizes). Por ora, ela é a única chefe de Estado mulher do continente africano. Embora na Etiópia parlamentarista a presidência seja um cargo essencialmente cerimonial, Zewde não chegou lá por parentela ou conexões influentes —é diplomata de longa data nas Nações Unidas e na União Africana — e deve alavancar a promoção da igualdade de gênero no país. Políticas públicas neste sentido andam a passos largos na Etiópia: tanto no Ministério como no Parlamento a representação feminina está em 50%.
Outra pausa alvissareira de 2019 veio da Finlândia. Sanna Marin, de 34 anos, recém-empossada chefe de governo mais jovem do planeta, está à frente de uma coalizão de cinco partidos de centro esquerda, todos chefiados por mulheres e nenhuma delas acima de 35 anos. O Ministério de Marin é composto por 12 mulheres e cinco homens, índice elevado até mesmo para o país pioneiro em eleger deputadas desde 1907. Marin é a primeira de sua família a concluir o ensino médio e cursar faculdade, trabalha desde os 15 anos, e ganhou sustento como vendedora em loja de departamentos. Filiou-se aos Sociais Democratas de centro esquerda aos 20 anos, assume o posto com uma filha de 22 meses, e herda um país de 5,5 milhões de habitantes cansados dos políticos e da política.
A primeira estocada veio da Estônia, país báltico vizinho da Finlândia. “Agora uma vendedora vira primeira-ministra e vemos outros ativistas de rua e pessoas sem formação integrar o gabinete!”, indignou-se o ministro do Interior, Mart Helme, em programa de rádio. Helme, 70 anos, é velho conhecido na cena europeia por suas posições ultranacionalistas, anti-imigração e comentários sexistas. Para a jovem Marin, é vida que segue com muita vida pela frente. “Tenho grande orgulho da Finlândia. Aqui uma criança de família pobre pode estudar e alcançar seus objetivos. Uma caixa de loja pode chegar a primeira-ministra”, tuitou, dando o assunto por encerrado.
No Brasil Jair Bolsonaro aponta a pastora evangélica Damares Alves, ministra da Mulher, como peça de vitrine do governo. Ainda bem que acabou o ano.
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