Vitórias de Haddad impressionam, mas falta controlar gasto
O Globo
Sucesso em 2023 é inquestionável, mas
arrecadar mais não bastará para cumprir metas fiscais agressivas
Depois de um ano como ministro da Fazenda,
Fernando Haddad destacou suas conquistas em entrevista exclusiva ao GLOBO. A
primeira foi o novo arcabouço fiscal, que tranquilizou — ao menos por ora — o
mercado sobre o compromisso do governo em controlar a dívida pública. A segunda
foi a reforma tributária, que começa a corrigir o sistema de impostos mais
disfuncional do mundo.
Em 2023, Haddad contribuiu para um debate
econômico racional, feito nada desprezível tendo em vista o retrospecto de
gestões petistas. Teve a sabedoria de evitar os ataques estéreis à taxa de
juros que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desferiu contra o Banco
Central. Derrotou a resistência em seu próprio partido e conquistou o apoio de
lideranças do Congresso para aprovar os projetos cruciais a sua gestão. O
resultado de tudo isso se vê nos indicadores: dólar em queda, inflação sob
controle, recuperação na renda e crescimento acima da expectativa no início do
ano. Êxitos inquestionáveis.
Na entrevista, ele foi sábio ao deixar a arrogância de lado e realçar que, nos embates com setores do PT, foi Lula a decidir pelo caminho que seu instinto ou sua experiência anterior como presidente indicavam como correto. No sistema presidencialista, se o presidente não arbitra, nada anda.
O maior desafio de Haddad em 2024 — e o de
Lula também — será garantir a credibilidade do plano recém-criado para conter a
dívida pública. “O arcabouço vai ser cumprido como planejado”, afirmou de modo
categórico na entrevista ao GLOBO. Os objetivos são ousados: zerar o déficit
primário neste ano e apresentar superávit de 1% do PIB ao final do governo. Por
isso mesmo, ainda despertam dúvida.
A principal diz respeito à estratégia adotada
por Haddad para cumpri-los: aumentar a arrecadação. Todas as medidas que
enfatizou no primeiro ano tentam ampliar receitas — das regras de desempate em
disputa com o Fisco à lei que limita o uso de créditos tributários pelas
empresas. Na entrevista, ele driblou a questão sobre a necessidade de corte de
despesas e reafirmou que os gastos aumentarão entre 0,6% e 1,7% além da
inflação. Mas, por mais que o governo aumente a receita, não chegará nem perto
de zerar o déficit se as despesas crescerem nesse ritmo. Aumentar a arrecadação
equivale, na prática, a aumentar uma das cargas tributárias mais pesadas do
mundo. No Brasil, receitas com impostos somam 34% do PIB. No México, apenas
17%. Em países de carga comparável à nossa, os serviços públicos são bem
melhores.
A ênfase na arrecadação em detrimento do
corte de gastos contribui para inchar um Estado já pesado, caro e ineficiente,
sufocando o setor privado com ainda mais impostos. Isso significa menos capital
disponível para investimentos. Cada centavo que vai para o governo é menos
dinheiro para quem gera riqueza e cria empregos. Não é disso, decididamente,
que o país precisa.
Nenhum governo, independentemente da
ideologia, gosta de reduzir gastos. É verdade que, dado o engessamento do
Orçamento brasileiro, o espaço para cortes é reduzido. Por isso são
imprescindíveis reformas que melhorem a qualidade do gasto público.
Em seu primeiro ano à frente da Fazenda,
Haddad se saiu muito melhor do que muitos imaginavam. Mas não conseguirá manter
o desempenho sem apresentar um programa consistente para controlar despesas. E
terá de continuar a receber o apoio de Lula.
Mudanças climáticas trazem desafio de gestão
ao setor elétrico
O Globo
Garantir fornecimento de energia dependerá de
diversidade de fontes e precisão na previsão meteorológica
Houve um tempo em que os responsáveis pelo
setor de energia elétrica no Brasil concentravam a atenção no regime de chuvas.
As usinas hidrelétricas eram o sustentáculo do abastecimento, tendo na
retaguarda termelétricas a carvão e óleo. Esse tempo passou. Hoje,
hidrelétricas respondem por metade da produção de energia, e as fontes
renováveis, solar e eólica, somadas, já fornecem mais de 20%, com tendência de
crescimento.
A matriz energética se mantém limpa, mas sua
gestão se tornou mais complexa. A situação é agravada pela multiplicação dos
eventos climáticos extremos, como tempestades e secas cada vez mais intensas. O
clima passou a ser fator primordial na transição energética, afirmou ao GLOBO o
diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Luiz Carlos
Ciocchi.
Diante dessa realidade, o ONS tem dado
prioridade ao reforço dos 180 mil quilômetros de linhas de transmissão e ao uso
de previsões meteorológicas mais precisas. A onda de calor recente foi
antecipada pelos meteorologistas, levando ao aumento na produção de energia
necessária para atender aos sistemas de refrigeração de Sudeste, Sul e Centro
Oeste.
A rotina dos operadores do setor elétrico
ficou mais intensa. A importância crescente das fontes intermitentes de energia
como eólica e solar — o vento oscila, e o sol pode ser encoberto por nuvens —
exige mais dos operadores. É por isso que Ciocchi destaca a importância daquilo
que os técnicos chamam de “energia despachável”, disponível sob demanda para
ser levada às linhas de transmissão. Na matriz brasileira, é o caso da geração
hidrelétrica e da termelétrica.
Para enfrentar a nova realidade, Ciocchi
defende investimentos e uma reestruturação no setor elétrico. Se a Eletrobras
continuasse estatal, isso não seria possível. De acordo com a economista
Clarice Ferraz, diretora do Instituto Ilumina, é essencial elaborar um plano
nacional de aperfeiçoamento das redes das distribuidoras. Ela propõe que isso
seja incluído na revisão das concessões das 53 empresas reguladas pela Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Elas precisam pedir a renovação da
concessão 36 meses antes do término. Oito têm até o fim de 2024 para fazer
isso. A Light, do Rio, e a EDP, do Espírito Santo, já renovaram. Os técnicos
consideram as distribuidoras o elo mais frágil do setor. Elas estão mais
vulneráveis aos choques climáticos, aos picos de consumo no calor e às
oscilações na geração, com a proliferação de painéis solares conectados à rede.
Há, por fim, o lado do consumidor, que paga
uma conta de luz alta, em que estão embutidos vários subsídios, além do custo
de furtos e da instabilidade do sistema. Uma família com recursos para instalar
placas solares recebe 14 vezes mais subsídio que uma família carente com
direito à tarifa social. Tal mecanismo amplia a desigualdade. Como diz Jerson
Kelman, ex-diretor da Aneel: “É preciso estancar a bola de neve formada por
leis que criam subsídios custeados por quem não pode, em benefício de quem não precisa”.
Haddad acerta ao criticar PT, mas falha no
controle de gastos
Valor Econômico
Déficit próximo de zero, essencial para o
país, apenas baseado em aumento de receita, sem um programa de corte de
despesas exemplar, não é exequível
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
passou pela prova de fogo do primeiro ano de governo e saiu dela mais forte do
que entrou, pelos bons resultados que obteve. Ele teve de enfrentar a
desconfiança do Centrão, majoritário no Congresso, convencer o presidente da
República a lhe conceder tempo para provar que suas ideias fiscais podem dar
certo, mesmo quando contrariam o instinto de Lula, e relevar as críticas do PT
a sua atuação, especialmente sobre a delicada missão de perseguir uma meta de
déficit público a mais próxima possível de zero. Nas principais questões
econômicas, Haddad venceu - contra os desejos da torcida irada de seu partido.
Em entrevista ao
jornal O Globo, ontem, o ministro fez um desabafo corajoso. “É curioso ver os
cards que estão sendo divulgados pelos meus críticos sobre a economia, agora
por ocasião do Natal”, disse. “O meu nome não aparece. O que aparece é assim: A
inflação caiu, o emprego subiu. Viva Lula! E o Haddad é um austericida”. O
recado é claro e dirigido ao partido, presidido por Gleisi Hoffmann, que
declarou publicamente que déficit público não tem importância. “Sinceramente, a
gente não deveria se preocupar com o resultado fiscal do ano que vem (2024).
Por mim faria um déficit de 1%, 2%, não iria mexer na economia”, afirmou (10 de
dezembro). Na conferência
eleitoral do PT, na presença de Haddad, Gleisi defendeu o “Estado
que gasta... porque senão vamos ficar na mão do BC, nas mãos desses liberais de
mercado” (9-12).
Na entrevista, o ministro da Fazenda enumerou
alguns dos feitos do governo pelos quais só recebeu críticas da legenda que
deveria apoiá-lo no Congresso. “Não dá para celebrar Bolsa, juros, câmbio,
risco-país, PIB que passou o Canadá e, simultaneamente ter a resolução que fala
‘está tudo errado, tem que mudar tudo”. Haddad sabe exatamente qual é a relação
de forças no PT, legenda sobre a qual tem pouca ascendência, e afirmou que se “
tudo está certo ou tudo está errado” é uma questão que não é ele quem precisa
resolver.
O árbitro da questão é o presidente Lula,
interlocutor frequente da presidente do PT. Lula se sente à vontade em dar a
palavra final em disputas internas do governo e do partido, que são naturais.
Figurativamente, Haddad é um “austericida” menor, para usar o linguajar do PT,
perto do que foi a dupla Fazenda-Banco Central, Antonio Palocci e Henrique
Meirelles, no primeiro governo Lula, que produziu superávits fiscais robustos
por anos a fio e, no início, elevou os juros a taxas reais superiores às de hoje.
O presidente os respaldou integralmente, apesar da gritaria do PT. Lula assumiu
então o tripé econômico herdado de Fernando Henrique, que consistia em contas
públicas no azul, câmbio flutuante e sistema de metas de inflação, itens
combatidos pelo PT ao longo de sua história.
Haddad parece ter enfrentado as dificuldades
sem perder a visão dos objetivos e, mesmo reconhecendo antes de tudo a primazia
das opiniões de Lula, não deixou de insistir em convencê-lo. O presidente pôs
seu ministro da Fazenda ao relento logo no início do governo, quando ele mais
precisava afirmar seu poder. Lula, nos primeiros dias de mandato, contra
conselho de Haddad, não recompôs integralmente os impostos sobre combustíveis,
reduzidos com objetivo eleitoral por Jair Bolsonaro.
Coube depois à Fazenda criar um novo regime
fiscal em substituição ao teto de gastos. O ministro entregou um ao gosto do
PT, que evita atacar os necessários cortes nas despesas, algo que foi criticado
pelos especialistas. No regime aprovado pelo Congresso, os gastos sempre
crescerão acima da inflação, mas se manterão abaixo das receitas o que, se
executado a sério, faria a relação dívida/PIB recuar gradualmente, sem exigir
um tratamento duro com os gastos públicos. O novo regime, apesar das críticas
por não atacar os gastos, foi visto com alívio pelos investidores, pois
afastava o temor de descontrole maior, como durante o governo de Dilma
Rousseff. Haddad defendeu que o novo regime precisaria se mostrar crível desde
o início e propôs déficit zero em 2024. O mundo caiu-lhe na cabeça, com Lula
dizendo que a meta não precisaria ser essa.
Haddad, contra a maioria, inclusive de
ministros palacianos, conseguiu convencer o presidente a esperar até março,
enquanto procuraria obter as receitas, objeto de deliberação no Congresso. Lula
aquiesceu e as medidas foram aprovadas, embora nem todas fornecerão os recursos
na magnitude prevista pela Fazenda e o déficit muito provavelmente não será
zero. Antes disso, persuadiu o presidente, que esbravejava abertamente contra o
Banco Central, a aceitar manter a meta de 3% de inflação para 2025 e 2026. A desconfiança
dos investidores sobre a condução econômica do governo petista arrefeceu após a
dupla ação. As expectativas de inflação melhoraram.
Apesar dos êxitos, Haddad tem um desafio
enorme pela frente: déficit próximo de zero, essencial para o país, apenas
baseado em aumento de receita, sem um programa de corte de despesas exemplar,
não é exequível. Pelo que disse na entrevista, o ministro parece não estar
convencido disso, o que é grave. Porque sem essa certeza, será impossível
convencer a quem importa: Lula. E, então, o êxito consistente não virá.
No vermelho
Folha de S. Paulo
Mundo lida com alta de dívida pública;
padrões de ricos não valem para o Brasil
overnos nacionais têm grande capacidade de
endividamento, dado que são perenes, contam com receita estável e podem emitir
moeda. Tal condição costuma estimular decisões temerárias dos dirigentes.
O mundo lida hoje com os impactos de um ciclo
preocupante de expansão de dívidas públicas, encabeçado por países ricos, que
dispõem de mais crédito —porém do qual participam também emergentes como o
Brasil e a Argentina.
Como noticiou
a Folha, estima-se que os passivos governamentais tenham
fechado o ano passado em US$ 88 trilhões, segundo o Institute of International
Finance (IIF).
Dados do Fundo Monetário Internacional (FMI)
indicam que, como proporção do PIB, os percentuais atingiram picos em 2020,
devido aos gastos extraordinários para o enfrentamento da pandemia de Covid-19,
e, embora tenham recuado um pouco desde então, não voltaram aos níveis
anteriores.
No mundo desenvolvido, tornaram-se comuns
dívidas equivalentes a mais de 100% do Produto Interno Bruto. O caso extremo é
o do Japão, com 255,2% calculados para o ano passado. Nos EUA, são 123,3%;
Itália (143,7%), França (110%) e Reino Unido (104,1%) se destacam na Europa.
Cifras desse porte têm levado à tese, em
particular na esquerda, de que o endividamento público brasileiro —em torno de
75% do PIB pelo cálculo do Banco Central e de 88% pelo do FMI— não seria
demasiado, o que abriria margem para mais expansão das despesas do governo.
Trata-se de um engano.
Os países ricos arcam com gastos mais
elevados decorrentes do envelhecimento de suas populações e,
circunstancialmente, de ações e compromissos militares. Aqui, as transformações
demográficas se encontram em estágio mais inicial e, claro, não existe o envolvimento
em guerras.
O crédito é mais restrito e caro para
governos que têm histórico de inflação e calotes, não emissores de moeda forte.
Não é por acaso que o Brasil, cuja dívida pública está entre as maiores do
mundo emergente, é líder global em gastos com juros, de 6,8% do PIB nos 12
meses encerrados em outubro.
Mesmo entre os desenvolvidos, ademais, a
escalada do endividamento é encarada com grande preocupação, uma vez que os
juros estão hoje em níveis mais altos devido ao combate ao surto inflacionário
pós-pandemia. A deterioração fiscal representa obstáculo à queda das taxas e,
portanto, ao crescimento das economias.
A experiência ensina que há, sim, limites
para o crédito a governos, embora nem sempre seja simples identificá-los. No
caso brasileiro, a escassez de poupança e o encarecimento desmesurado do
dinheiro deveriam ser sinais suficientes.
Contra o tempo
Folha de S. Paulo
Com Boulos consolidado em SP, centro e
direita iniciam 2024 sob cizânias e dúvidas
Assim como boa parte das outras 5.568 cidades
brasileiras, São Paulo tende
a replicar nas eleições municipais a polarização encabeçada
em 2022 por Jair
Bolsonaro (PL) e pelo vencedor da
corrida ao Planalto, Luiz Inácio Lula da
Silva (PT).
O bloco lulista largou na frente. Segundo
lugar em 2020 e sob as bênçãos do presidente, Guilherme
Boulos (PSOL)
cacifou-se há meses na centro-esquerda —a ponto de o PT abrir mão de
lançar candidatura própria pela primeira vez.
Em agosto, pesquisa
Datafolha apontou a sua liderança, com 32% das intenções. Deputado
federal mais votado em São Paulo, tem a seu favor o bolsonarismo menos pujante
na cidade, onde o ex-presidente, apesar dos 46,5% dos votos, foi derrotado por
Lula (53,5%).
O desafio será tornar-se palatável para o
eleitorado mais conservador e afastar a pecha de incitador de invasões urbanas
—o psolista liderou por anos o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto.
Na centro-direita, o cenário ainda é nebuloso. Um nome certo é o do atual
prefeito, Ricardo Nunes (MDB),
que contou 24% das preferências no mesmo levantamento.
O emedebista também enfrenta barreiras
consideráveis: com 23% de aprovação, sua gestão ainda busca uma marca própria,
e 79% dos paulistanos desejam mudanças.
Seu trunfo está em ações de impacto, como
congelar a tarifa de ônibus e torná-la gratuita aos domingos, e aproveitar o
caixa recorde para concluir obras vistosas.
Nunes tenta costurar um amplo arco de apoios,
que inclua o PSDB (com
reduzidas chances de candidatura própria, mesmo após ter vencido as duas
últimas disputas), partidos do centrão (bem encaminhados), o Republicanos do
governador Tarcísio de
Freitas (de aliança hoje estremecida) e a aposta maior: o PL de
Bolsonaro.
Entre idas e vindas, e sob ampla desconfiança do bolsonarismo, que vê no
prefeito uma adesão um tanto envergonhada, a parceria adentrou 2024 longe de
definida.
O entrave atende pelo nome de Ricardo
Salles, ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro e preferido da ala
mais ideológica. Se
preterido por Nunes pelo PL, o deputado ameaça lançar-se pelo PRD.
A jogada de Salles poderia provocar ampla divisão de votos na direita e no
centro. Este também é disputado pela deputada Tabata Amaral (PSB), mais à
esquerda, que anotou 11% no Datafolha e quer ser o fator surpresa —o que não
seria novidade em São Paulo.
O custo da criminalidade
O Estado de S. Paulo
Não é por acaso que as populações
latino-americanas são as mais desiguais e delinquentes do mundo. Os crimes
levam à degradação econômica, que, por sua vez, incentiva mais crimes
O combate ao crime é, antes de tudo, uma
questão de defesa de direitos fundamentais, a começar pelo direito à vida. Mas
é também uma questão econômica. Há um círculo vicioso entre crime e pobreza. A
degradação econômica incentiva o crime, e o crime deteriora a atividade
econômica. Não por coincidência a América Latina é a região mais desigual e a
mais homicida do mundo. Conforme o índice Gini de desigualdade, a região está
15% acima da segunda região mais desigual, a África Subsaariana, e 50% acima
das regiões mais igualitárias, como a Europa. Com 8% da população do planeta, a
América Latina responde por 40% de seus homicídios.
As relações de causa e efeito entre a redução
do crime e o crescimento econômico, e vice-versa, são fáceis de inferir, mas
difíceis de mensurar. Os custos diretos da violência incluem perdas de produção
(de bens e serviços) e de recursos (a produtividade das vítimas e dos
criminosos), além dos gastos com segurança que poderiam ser investidos em
atividades produtivas. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento,
o crime custa 3,6% do PIB dos países
latino-americanos, duas vezes mais que nos países desenvolvidos e o equivalente
aos gastos da região com infraestrutura e à renda dos 30% mais pobres. Fora os
custos indiretos, como menos oportunidades de emprego, mais emigração, erosão
das instituições, corrupção, e as consequentes perdas de investimentos. Tudo
isso empobrece a população e estimula mais violência, perpetuando o já
mencionado círculo vicioso.
O FMI estima que na América Latina um aumento
de 30% nos homicídios reduz o crescimento em 0,14 ponto porcentual.
Inversamente, se o crime fosse reduzido à média mundial, o crescimento anual
aumentaria 0,5 ponto porcentual, cerca de um terço do crescimento atual.
Um dos motivos pelos quais o crime é tão
prevalente na América Latina é porque ele compensa. Os ganhos são altos em
relação à economia legal, e a chance de os criminosos serem pegos é pequena.
Menos de 10% dos homicídios na região são solucionados. O contingente de jovens
que não estuda nem trabalha é alto, o que pede mais programas de formação. O
sistema de Justiça frequente falha em suas tarefas, o que pede mais capacitação
da polícia e melhorias no sistema judiciário e prisional. A expansão do crime organizado
agrava estes fatores. Países outrora seguros, como Equador, Chile ou Costa
Rica, sofreram uma escalada da violência após se tornarem entrepostos do
narcotráfico.
Mas a região também tem alguns dos países que
reprimiram mais eficazmente a violência. Os homicídios são extraordinariamente
concentrados: cerca de 80% das mortes violentas na América Latina ocorrem em 2%
de suas ruas. Estatísticas podem ajudar a polícia a realizar prisões e prevenir
crimes. Nos anos 90, a Colômbia era um dos países mais violentos da região. A
prefeitura de Cali estabeleceu “observatórios da violência” para estudar como
localidades e comportamentos favorecem assassinatos. Muitos resultam de rixas
entre indivíduos embriagados. Restrições ao álcool e armas ajudaram a cortar os
homicídios em 35%. Cidades como Medellín utilizaram esse policiamento baseado
em evidências para reprimir cartéis de drogas. A Justiça puniu mais criminosos,
os cidadãos sentiram que as ruas estavam mais seguras e as ruas mais povoadas
desencorajaram os criminosos. Entre 1995 e 2017, a taxa de homicídios da
Colômbia caiu de 70 por 100 mil habitantes para 24, a menor em 40 anos.
Uma das razões da violência exorbitante na
América Latina é que a região se urbanizou uma geração antes de outras áreas em
desenvolvimento. Agora a violência cresce nessas regiões também. Assim como a
América Latina liderou a alta de homicídios no mundo, pode liderar a sua baixa.
O fortalecimento do Estado de Direito beneficiará, a um tempo, o combate ao
crime e o crescimento econômico. Com segurança pública baseada em evidências,
os latinoamericanos podem antecipar para outros países os antídotos e remédios
para a doença do crime, evitar indizíveis tragédias de suas vítimas e
enriquecer toda a sua população.
Municipalismo distorcido
O Estado de S. Paulo
Pesquisa da CNM revela que muitos municípios
não conseguem manter finanças em ordem. Não são raras as cidades que nem
deveriam existir como entes político-administrativos autônomos
A Constituição de 1988 foi certeira ao
conferir ao município um poder político e administrativo compatível com a
importância deste ente federativo para toda a população. Afinal, como dizia
Franco Montoro, “ninguém vive na União ou no Estado, as pessoas vivem no
município”. Entretanto, ao longo desses 35 anos de vigência da “Constituição
Cidadã”, o espírito constitucional, eminentemente municipalista, foi distorcido
pela criação serial de municípios Brasil afora que não apresentavam a menor
condição de existir como entes autônomos, incapazes que são de gerar receitas
que, no mínimo, empatem com suas despesas.
Uma pesquisa feita pela Confederação Nacional
dos Municípios (CNM) sobre o estado das finanças das prefeituras, com foco na
capacidade de pagamento do 13.º salário para os servidores, é o retrato mais
recente desse descompasso entre o desejo original da sociedade de alçar o
município à categoria de ente federativo e a realidade de muitas das 5.568
cidades brasileiras – 1.385 delas criadas pós-1988. De acordo com a pesquisa,
1.969 municípios (44,2% dos respondentes) admitiram que têm débitos em atraso
com fornecedores; 26,2% informaram à CNM que fecharão 2023 com as contas no
vermelho.
Muitas dessas prefeituras são incapazes não
apenas de pagar o 13.º salário de seus servidores nos prazos legais, como
constatou a CNM, mas até mesmo de custear a prestação de serviços básicos, como
coleta de lixo.
O problema não está circunscrito às Regiões
Norte e Nordeste. Em São Paulo, por exemplo, 213 das 582 prefeituras
consultadas pela CNM (36,6%) disseram estar com dificuldade para quitar suas
obrigações com fornecedores. Ainda que a maioria dos municípios paulistas
(61,2%) tenha informado estar com as contas em dia, é preocupante constatar que
mais de um terço das cidades do Estado mais rico da Federação não tenha suas
finanças equilibradas, o que se reflete, invariavelmente, na qualidade dos
serviços públicos prestados aos cidadãos.
Há poucos dias, o Estadão publicou uma
reportagem revelando que, entre abril de 2022 e abril de 2023, as cidades do
interior paulista gastaram R$ 3,4 bilhões apenas para manter as 664 Câmaras
Municipais sob fiscalização do Tribunal de Contas do Estado. Esse montante foi
usado, exclusivamente, para pagar salários e bonificações de 6.908 vereadores e
cerca de 25 mil servidores, além de contas de consumo, viagens, serviços de
limpeza e acesso à internet. Em muitos casos, esses gastos foram sustentados,
no todo ou em parte, por repasses estaduais, via arrecadação do ICMS, e
federais, por meio do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Não se pode afirmar, é claro, que todos os
municípios do País que passam por crises financeiras não deveriam existir como
tais. Ainda que possa haver razões comuns para a baixa arrecadação das
prefeituras em diferentes regiões do País, como o populismo de Jair Bolsonaro e
a irresponsabilidade do Congresso ao chancelar a tentativa do ex-presidente de
controlar o preço dos combustíveis em ano eleitoral por meio do corte forçado
das alíquotas de ICMS, há muitas particularidades locais que não podem ser ignoradas,
como má gestão, e que não têm ligação direta com a eventual incapacidade de
geração de receitas. Ao mesmo tempo, é inegável que houve municípios criados
sob a nova égide constitucional por razões estreitas, como resolução de
disputas locais ou acomodação de interesses políticos. A Constituição teria
sido respeitada se a criação desses entes federativos se prestasse a melhorar a
vida das pessoas.
Agora, é muito difícil reverter essa
perversão do municipalismo que inspirou os constituintes originários. A razão é
simples: no Congresso Nacional, instituição autorizada a promulgar emendas à
Constituição, são muitos os parlamentares que não têm qualquer interesse em
abrir mão de municípios que podem até ser inviáveis financeiramente, mas são
riquíssimos do ponto de vista político, servindo-lhes muito bem como currais
eleitorais e destino de emendas ao Orçamento para lá de suspeitas.
O Brasil na rabeira digital
O Estado de S. Paulo
57.º lugar em ranking de competitividade
digital com 64 países expõe fragilidade brasileira
O futuro digital tornou-se um conceito
desatualizado diante de realidades como hiperautomação, inteligência artificial
e atendimentos robotizados, os chamados chatbots. A produtividade das economias
começa a ser ditada pela capacidade que cada país tem de incorporar essas
tecnologias e de antecipar as que ainda não existem. Nesse tópico, é
preocupante a posição brasileira em relação a seus pares internacionais. Como
mostrou o recém-divulgado Ranking Mundial de Competitividade Digital, de 64
países pesquisados, o Brasil ficou em 57.º lugar em 2023.
Pior do que ter descido cinco degraus na
escala foi a constatação de que, em relação a 2022, não houve avanço brasileiro
em nenhum dos fatores pesquisados no anuário, elaborado pela escola de
administração suíça IMD, com parceria no Brasil da Fundação Dom Cabral. E como
se trata de um estudo comparativo, significa que a economia brasileira está
muito longe de acompanhar o ritmo de países que têm se destacado pela agilidade
no desenvolvimento do conhecimento tecnológico.
Ao contrário do que os números possam dar a
entender o brasileiro não é refratário a esse tipo de avanço. Pelo contrário: o
uso de serviços públicos online pela população foi um dos poucos pontos
positivos na pesquisa e levou o País ao 11.º lugar nesse quesito, com a
constatação de que a plataforma gov.br atrai 80% dos habitantes acima de 18
anos. Há, sem dúvida, um desafio a ser enfrentado, tanto na esfera pública
quanto na empresarial. Mas o atraso do Brasil não se deve ao desinteresse da
população.
O País não consegue reter os talentos
formados aqui, e os dados do ranking não deixam dúvidas: os países que mais
avançam são os mais focados na promoção e na retenção desses talentos.
Contribuem para isso as universidades, o investimento em pesquisas científicas
e, como sempre defendemos neste espaço, o crescente investimento no ensino
técnico. O Brasil foi o último colocado em relação a talentos, no que diz
respeito tanto à retenção quanto à atração de mão de obra qualificada
estrangeira.
Exemplos utilizados no estudo, como o de
Cingapura – terceira do ranking, atrás de Estados Unidos e Holanda –, que usa
estratégias digitais e internet das coisas na gestão da cidade-Estado, mostram
como o Brasil tem ainda um longo caminho a percorrer. Um caminho que poderia
ser facilitado com a criação de projetos públicos e privados de longo prazo. E,
claro, uma revisão do ambiente regulatório.
O País deu alguns passos nesse sentido, com a
aprovação do Marco Legal das Startups e da Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais (LGPD), mas ainda precisa de leis adequadas ao desenvolvimento
tecnológico contínuo, como fazem os países que se destacam no ranking.
Não serve de consolo ao Brasil o fato de ter, na rabeira da lista, a companhia de outros países sul-americanos como Venezuela (último lugar), Colômbia (62.º) e Argentina (61.º), todos eles convivendo com situações políticas e econômicas mais críticas do que a brasileira. A revolução digital aprofunda o abismo entre as nações mais e menos desenvolvidas, e não há mais tempo a perder.
Janeiro Branco dá a largada
Correio Braziliense
Não basta apenas mobilizar a sociedade, mas
sim sensibilizar as autoridades do país a respeito da importância de políticas
públicas para a saúde mental
Começar o ano cuidando do corpo é uma
iniciativa mais que louvável diante de números crescentes de obesidade no
Brasil e no mundo. Mas a saúde mental também precisa de atenção desde já. Não
foi à toa que seus organizadores escolheram este mês para iniciar a campanha
Janeiro Branco.
A data foi estrategicamente pensada porque o
primeiro mês do ano costuma promover nas pessoas maior abertura para reflexões,
novas resoluções e metas para o ano que se inicia. A cor branca representa as
folhas ou telas em branco, em que uma pessoa pode desenhar, escrever ou
reescrever o que desejar para si e para o mundo, simbolizando o horizonte
aberto e criando o sentimento de potência ilimitada que cada início de ano
possibilita à humanidade.
Não há como negar que a disseminação do
coronavírus seja uma espécie de divisor de águas, quando o assunto é saúde
mental, ou melhor, doença mental. Foi a partir de 2020 que as pessoas foram
afetadas com a pandemia da covid-19, responsável por provocar medos,
incertezas e uma crise sem precedentes na saúde mental de grande parte dos
brasileiros. Em praticamente três anos de pandemia, as pessoas deixaram de ser
biopsicossociais para se isolarem em seus mundos, deixando as portas abertas
para a solidão, a intolerância, a introspecção e a tantos outros sentimentos
negativos.
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)
mostram que já são mais de 350 milhões de pessoas, de todas as idades, que
sofrem com a doença. O Brasil assumiu a liderança do ranking da ansiedade, com
18,6 milhões de pessoas ansiosas e 11,7 milhões deprimidas. Isso demonstra o
que muitos especialistas afirmam: o Brasil está vivenciando a pandemia dos
transtornos mentais.
Criada em 2014, completando portanto 10 anos,
a campanha Janeiro Branco, que já é Lei Federal (Lei 14.556/23), foi elaborada
pelo psicólogo Leonardo Abrahão, presidente do Instituto Janeiro Branco, e
relaciona a saúde mental às interações humanas. O tema deste ano é "Saúde
mental enquanto há tempo. O que fazer agora?" e a ideia é chamar a atenção
para a saúde mental como um aspecto vital para melhorar a qualidade de vida das
pessoas, promover relações sociais mais saudáveis e transformações positivas
nas instituições sociais no mundo inteiro.
Prova da amplitude do movimento é que países
como Angola, Colômbia, Japão, Estados Unidos, Portugal, Espanha e Cabo Verde
abraçaram e adotaram os princípios da campanha, superdimensionando seu impacto
e promovendo durante todo o mês de janeiro a conscientização sobre o tema em
escala global.
Não basta apenas mobilizar a sociedade em
torno das doenças mentais, mas sim sensibilizar as autoridades políticas a
respeito da importância de políticas públicas para a saúde da mente.
"Cuidados individuais, atitudes institucionais e políticas públicas",
defendem os especialistas em saúde mental.
Que 2024 seja mesmo o ano da colheita, do aprendizado, da evolução e da maturidade, como dizem os astrólogos de plantão. E que possamos cuidar da saúde mental uns dos outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário