quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Vitórias de Haddad impressionam, mas falta controlar gasto

O Globo

Sucesso em 2023 é inquestionável, mas arrecadar mais não bastará para cumprir metas fiscais agressivas

Depois de um ano como ministro da Fazenda, Fernando Haddad destacou suas conquistas em entrevista exclusiva ao GLOBO. A primeira foi o novo arcabouço fiscal, que tranquilizou — ao menos por ora — o mercado sobre o compromisso do governo em controlar a dívida pública. A segunda foi a reforma tributária, que começa a corrigir o sistema de impostos mais disfuncional do mundo.

Em 2023, Haddad contribuiu para um debate econômico racional, feito nada desprezível tendo em vista o retrospecto de gestões petistas. Teve a sabedoria de evitar os ataques estéreis à taxa de juros que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desferiu contra o Banco Central. Derrotou a resistência em seu próprio partido e conquistou o apoio de lideranças do Congresso para aprovar os projetos cruciais a sua gestão. O resultado de tudo isso se vê nos indicadores: dólar em queda, inflação sob controle, recuperação na renda e crescimento acima da expectativa no início do ano. Êxitos inquestionáveis.

Na entrevista, ele foi sábio ao deixar a arrogância de lado e realçar que, nos embates com setores do PT, foi Lula a decidir pelo caminho que seu instinto ou sua experiência anterior como presidente indicavam como correto. No sistema presidencialista, se o presidente não arbitra, nada anda.

O maior desafio de Haddad em 2024 — e o de Lula também — será garantir a credibilidade do plano recém-criado para conter a dívida pública. “O arcabouço vai ser cumprido como planejado”, afirmou de modo categórico na entrevista ao GLOBO. Os objetivos são ousados: zerar o déficit primário neste ano e apresentar superávit de 1% do PIB ao final do governo. Por isso mesmo, ainda despertam dúvida.

A principal diz respeito à estratégia adotada por Haddad para cumpri-los: aumentar a arrecadação. Todas as medidas que enfatizou no primeiro ano tentam ampliar receitas — das regras de desempate em disputa com o Fisco à lei que limita o uso de créditos tributários pelas empresas. Na entrevista, ele driblou a questão sobre a necessidade de corte de despesas e reafirmou que os gastos aumentarão entre 0,6% e 1,7% além da inflação. Mas, por mais que o governo aumente a receita, não chegará nem perto de zerar o déficit se as despesas crescerem nesse ritmo. Aumentar a arrecadação equivale, na prática, a aumentar uma das cargas tributárias mais pesadas do mundo. No Brasil, receitas com impostos somam 34% do PIB. No México, apenas 17%. Em países de carga comparável à nossa, os serviços públicos são bem melhores.

A ênfase na arrecadação em detrimento do corte de gastos contribui para inchar um Estado já pesado, caro e ineficiente, sufocando o setor privado com ainda mais impostos. Isso significa menos capital disponível para investimentos. Cada centavo que vai para o governo é menos dinheiro para quem gera riqueza e cria empregos. Não é disso, decididamente, que o país precisa.

Nenhum governo, independentemente da ideologia, gosta de reduzir gastos. É verdade que, dado o engessamento do Orçamento brasileiro, o espaço para cortes é reduzido. Por isso são imprescindíveis reformas que melhorem a qualidade do gasto público.

Em seu primeiro ano à frente da Fazenda, Haddad se saiu muito melhor do que muitos imaginavam. Mas não conseguirá manter o desempenho sem apresentar um programa consistente para controlar despesas. E terá de continuar a receber o apoio de Lula.

Mudanças climáticas trazem desafio de gestão ao setor elétrico

O Globo

Garantir fornecimento de energia dependerá de diversidade de fontes e precisão na previsão meteorológica

Houve um tempo em que os responsáveis pelo setor de energia elétrica no Brasil concentravam a atenção no regime de chuvas. As usinas hidrelétricas eram o sustentáculo do abastecimento, tendo na retaguarda termelétricas a carvão e óleo. Esse tempo passou. Hoje, hidrelétricas respondem por metade da produção de energia, e as fontes renováveis, solar e eólica, somadas, já fornecem mais de 20%, com tendência de crescimento.

A matriz energética se mantém limpa, mas sua gestão se tornou mais complexa. A situação é agravada pela multiplicação dos eventos climáticos extremos, como tempestades e secas cada vez mais intensas. O clima passou a ser fator primordial na transição energética, afirmou ao GLOBO o diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Luiz Carlos Ciocchi.

Diante dessa realidade, o ONS tem dado prioridade ao reforço dos 180 mil quilômetros de linhas de transmissão e ao uso de previsões meteorológicas mais precisas. A onda de calor recente foi antecipada pelos meteorologistas, levando ao aumento na produção de energia necessária para atender aos sistemas de refrigeração de Sudeste, Sul e Centro Oeste.

A rotina dos operadores do setor elétrico ficou mais intensa. A importância crescente das fontes intermitentes de energia como eólica e solar — o vento oscila, e o sol pode ser encoberto por nuvens — exige mais dos operadores. É por isso que Ciocchi destaca a importância daquilo que os técnicos chamam de “energia despachável”, disponível sob demanda para ser levada às linhas de transmissão. Na matriz brasileira, é o caso da geração hidrelétrica e da termelétrica.

Para enfrentar a nova realidade, Ciocchi defende investimentos e uma reestruturação no setor elétrico. Se a Eletrobras continuasse estatal, isso não seria possível. De acordo com a economista Clarice Ferraz, diretora do Instituto Ilumina, é essencial elaborar um plano nacional de aperfeiçoamento das redes das distribuidoras. Ela propõe que isso seja incluído na revisão das concessões das 53 empresas reguladas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Elas precisam pedir a renovação da concessão 36 meses antes do término. Oito têm até o fim de 2024 para fazer isso. A Light, do Rio, e a EDP, do Espírito Santo, já renovaram. Os técnicos consideram as distribuidoras o elo mais frágil do setor. Elas estão mais vulneráveis aos choques climáticos, aos picos de consumo no calor e às oscilações na geração, com a proliferação de painéis solares conectados à rede.

Há, por fim, o lado do consumidor, que paga uma conta de luz alta, em que estão embutidos vários subsídios, além do custo de furtos e da instabilidade do sistema. Uma família com recursos para instalar placas solares recebe 14 vezes mais subsídio que uma família carente com direito à tarifa social. Tal mecanismo amplia a desigualdade. Como diz Jerson Kelman, ex-diretor da Aneel: “É preciso estancar a bola de neve formada por leis que criam subsídios custeados por quem não pode, em benefício de quem não precisa”.

Haddad acerta ao criticar PT, mas falha no controle de gastos

Valor Econômico

Déficit próximo de zero, essencial para o país, apenas baseado em aumento de receita, sem um programa de corte de despesas exemplar, não é exequível

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, passou pela prova de fogo do primeiro ano de governo e saiu dela mais forte do que entrou, pelos bons resultados que obteve. Ele teve de enfrentar a desconfiança do Centrão, majoritário no Congresso, convencer o presidente da República a lhe conceder tempo para provar que suas ideias fiscais podem dar certo, mesmo quando contrariam o instinto de Lula, e relevar as críticas do PT a sua atuação, especialmente sobre a delicada missão de perseguir uma meta de déficit público a mais próxima possível de zero. Nas principais questões econômicas, Haddad venceu - contra os desejos da torcida irada de seu partido.

Em entrevista ao jornal O Globo, ontem, o ministro fez um desabafo corajoso. “É curioso ver os cards que estão sendo divulgados pelos meus críticos sobre a economia, agora por ocasião do Natal”, disse. “O meu nome não aparece. O que aparece é assim: A inflação caiu, o emprego subiu. Viva Lula! E o Haddad é um austericida”. O recado é claro e dirigido ao partido, presidido por Gleisi Hoffmann, que declarou publicamente que déficit público não tem importância. “Sinceramente, a gente não deveria se preocupar com o resultado fiscal do ano que vem (2024). Por mim faria um déficit de 1%, 2%, não iria mexer na economia”, afirmou (10 de dezembro). Na conferência eleitoral do PT, na presença de Haddad, Gleisi defendeu o “Estado que gasta... porque senão vamos ficar na mão do BC, nas mãos desses liberais de mercado” (9-12).

Na entrevista, o ministro da Fazenda enumerou alguns dos feitos do governo pelos quais só recebeu críticas da legenda que deveria apoiá-lo no Congresso. “Não dá para celebrar Bolsa, juros, câmbio, risco-país, PIB que passou o Canadá e, simultaneamente ter a resolução que fala ‘está tudo errado, tem que mudar tudo”. Haddad sabe exatamente qual é a relação de forças no PT, legenda sobre a qual tem pouca ascendência, e afirmou que se “ tudo está certo ou tudo está errado” é uma questão que não é ele quem precisa resolver.

O árbitro da questão é o presidente Lula, interlocutor frequente da presidente do PT. Lula se sente à vontade em dar a palavra final em disputas internas do governo e do partido, que são naturais. Figurativamente, Haddad é um “austericida” menor, para usar o linguajar do PT, perto do que foi a dupla Fazenda-Banco Central, Antonio Palocci e Henrique Meirelles, no primeiro governo Lula, que produziu superávits fiscais robustos por anos a fio e, no início, elevou os juros a taxas reais superiores às de hoje. O presidente os respaldou integralmente, apesar da gritaria do PT. Lula assumiu então o tripé econômico herdado de Fernando Henrique, que consistia em contas públicas no azul, câmbio flutuante e sistema de metas de inflação, itens combatidos pelo PT ao longo de sua história.

Haddad parece ter enfrentado as dificuldades sem perder a visão dos objetivos e, mesmo reconhecendo antes de tudo a primazia das opiniões de Lula, não deixou de insistir em convencê-lo. O presidente pôs seu ministro da Fazenda ao relento logo no início do governo, quando ele mais precisava afirmar seu poder. Lula, nos primeiros dias de mandato, contra conselho de Haddad, não recompôs integralmente os impostos sobre combustíveis, reduzidos com objetivo eleitoral por Jair Bolsonaro.

Coube depois à Fazenda criar um novo regime fiscal em substituição ao teto de gastos. O ministro entregou um ao gosto do PT, que evita atacar os necessários cortes nas despesas, algo que foi criticado pelos especialistas. No regime aprovado pelo Congresso, os gastos sempre crescerão acima da inflação, mas se manterão abaixo das receitas o que, se executado a sério, faria a relação dívida/PIB recuar gradualmente, sem exigir um tratamento duro com os gastos públicos. O novo regime, apesar das críticas por não atacar os gastos, foi visto com alívio pelos investidores, pois afastava o temor de descontrole maior, como durante o governo de Dilma Rousseff. Haddad defendeu que o novo regime precisaria se mostrar crível desde o início e propôs déficit zero em 2024. O mundo caiu-lhe na cabeça, com Lula dizendo que a meta não precisaria ser essa.

Haddad, contra a maioria, inclusive de ministros palacianos, conseguiu convencer o presidente a esperar até março, enquanto procuraria obter as receitas, objeto de deliberação no Congresso. Lula aquiesceu e as medidas foram aprovadas, embora nem todas fornecerão os recursos na magnitude prevista pela Fazenda e o déficit muito provavelmente não será zero. Antes disso, persuadiu o presidente, que esbravejava abertamente contra o Banco Central, a aceitar manter a meta de 3% de inflação para 2025 e 2026. A desconfiança dos investidores sobre a condução econômica do governo petista arrefeceu após a dupla ação. As expectativas de inflação melhoraram.

Apesar dos êxitos, Haddad tem um desafio enorme pela frente: déficit próximo de zero, essencial para o país, apenas baseado em aumento de receita, sem um programa de corte de despesas exemplar, não é exequível. Pelo que disse na entrevista, o ministro parece não estar convencido disso, o que é grave. Porque sem essa certeza, será impossível convencer a quem importa: Lula. E, então, o êxito consistente não virá.

No vermelho

Folha de S. Paulo

Mundo lida com alta de dívida pública; padrões de ricos não valem para o Brasil

overnos nacionais têm grande capacidade de endividamento, dado que são perenes, contam com receita estável e podem emitir moeda. Tal condição costuma estimular decisões temerárias dos dirigentes.

O mundo lida hoje com os impactos de um ciclo preocupante de expansão de dívidas públicas, encabeçado por países ricos, que dispõem de mais crédito —porém do qual participam também emergentes como o Brasil e a Argentina.

Como noticiou a Folha, estima-se que os passivos governamentais tenham fechado o ano passado em US$ 88 trilhões, segundo o Institute of International Finance (IIF).

Dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) indicam que, como proporção do PIB, os percentuais atingiram picos em 2020, devido aos gastos extraordinários para o enfrentamento da pandemia de Covid-19, e, embora tenham recuado um pouco desde então, não voltaram aos níveis anteriores.

No mundo desenvolvido, tornaram-se comuns dívidas equivalentes a mais de 100% do Produto Interno Bruto. O caso extremo é o do Japão, com 255,2% calculados para o ano passado. Nos EUA, são 123,3%; Itália (143,7%), França (110%) e Reino Unido (104,1%) se destacam na Europa.

Cifras desse porte têm levado à tese, em particular na esquerda, de que o endividamento público brasileiro —em torno de 75% do PIB pelo cálculo do Banco Central e de 88% pelo do FMI— não seria demasiado, o que abriria margem para mais expansão das despesas do governo. Trata-se de um engano.

Os países ricos arcam com gastos mais elevados decorrentes do envelhecimento de suas populações e, circunstancialmente, de ações e compromissos militares. Aqui, as transformações demográficas se encontram em estágio mais inicial e, claro, não existe o envolvimento em guerras.

O crédito é mais restrito e caro para governos que têm histórico de inflação e calotes, não emissores de moeda forte. Não é por acaso que o Brasil, cuja dívida pública está entre as maiores do mundo emergente, é líder global em gastos com juros, de 6,8% do PIB nos 12 meses encerrados em outubro.

Mesmo entre os desenvolvidos, ademais, a escalada do endividamento é encarada com grande preocupação, uma vez que os juros estão hoje em níveis mais altos devido ao combate ao surto inflacionário pós-pandemia. A deterioração fiscal representa obstáculo à queda das taxas e, portanto, ao crescimento das economias.

A experiência ensina que há, sim, limites para o crédito a governos, embora nem sempre seja simples identificá-los. No caso brasileiro, a escassez de poupança e o encarecimento desmesurado do dinheiro deveriam ser sinais suficientes.

Contra o tempo

Folha de S. Paulo

Com Boulos consolidado em SP, centro e direita iniciam 2024 sob cizânias e dúvidas

Assim como boa parte das outras 5.568 cidades brasileiras, São Paulo tende a replicar nas eleições municipais a polarização encabeçada em 2022 por Jair Bolsonaro (PL) e pelo vencedor da corrida ao Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O bloco lulista largou na frente. Segundo lugar em 2020 e sob as bênçãos do presidente, Guilherme Boulos (PSOL) cacifou-se há meses na centro-esquerda —a ponto de o PT abrir mão de lançar candidatura própria pela primeira vez.

Em agosto, pesquisa Datafolha apontou a sua liderança, com 32% das intenções. Deputado federal mais votado em São Paulo, tem a seu favor o bolsonarismo menos pujante na cidade, onde o ex-presidente, apesar dos 46,5% dos votos, foi derrotado por Lula (53,5%).

O desafio será tornar-se palatável para o eleitorado mais conservador e afastar a pecha de incitador de invasões urbanas —o psolista liderou por anos o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto.

Na centro-direita, o cenário ainda é nebuloso. Um nome certo é o do atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), que contou 24% das preferências no mesmo levantamento.

O emedebista também enfrenta barreiras consideráveis: com 23% de aprovação, sua gestão ainda busca uma marca própria, e 79% dos paulistanos desejam mudanças.

Seu trunfo está em ações de impacto, como congelar a tarifa de ônibus e torná-la gratuita aos domingos, e aproveitar o caixa recorde para concluir obras vistosas.

Nunes tenta costurar um amplo arco de apoios, que inclua o PSDB (com reduzidas chances de candidatura própria, mesmo após ter vencido as duas últimas disputas), partidos do centrão (bem encaminhados), o Republicanos do governador Tarcísio de Freitas (de aliança hoje estremecida) e a aposta maior: o PL de Bolsonaro.

Entre idas e vindas, e sob ampla desconfiança do bolsonarismo, que vê no prefeito uma adesão um tanto envergonhada, a parceria adentrou 2024 longe de definida.

O entrave atende pelo nome de Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro e preferido da ala mais ideológica. Se preterido por Nunes pelo PL, o deputado ameaça lançar-se pelo PRD.

A jogada de Salles poderia provocar ampla divisão de votos na direita e no centro. Este também é disputado pela deputada Tabata Amaral (PSB), mais à esquerda, que anotou 11% no Datafolha e quer ser o fator surpresa —o que não seria novidade em São Paulo.

O custo da criminalidade

O Estado de S. Paulo

Não é por acaso que as populações latino-americanas são as mais desiguais e delinquentes do mundo. Os crimes levam à degradação econômica, que, por sua vez, incentiva mais crimes

O combate ao crime é, antes de tudo, uma questão de defesa de direitos fundamentais, a começar pelo direito à vida. Mas é também uma questão econômica. Há um círculo vicioso entre crime e pobreza. A degradação econômica incentiva o crime, e o crime deteriora a atividade econômica. Não por coincidência a América Latina é a região mais desigual e a mais homicida do mundo. Conforme o índice Gini de desigualdade, a região está 15% acima da segunda região mais desigual, a África Subsaariana, e 50% acima das regiões mais igualitárias, como a Europa. Com 8% da população do planeta, a América Latina responde por 40% de seus homicídios.

As relações de causa e efeito entre a redução do crime e o crescimento econômico, e vice-versa, são fáceis de inferir, mas difíceis de mensurar. Os custos diretos da violência incluem perdas de produção (de bens e serviços) e de recursos (a produtividade das vítimas e dos criminosos), além dos gastos com segurança que poderiam ser investidos em atividades produtivas. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento,

o crime custa 3,6% do PIB dos países latino-americanos, duas vezes mais que nos países desenvolvidos e o equivalente aos gastos da região com infraestrutura e à renda dos 30% mais pobres. Fora os custos indiretos, como menos oportunidades de emprego, mais emigração, erosão das instituições, corrupção, e as consequentes perdas de investimentos. Tudo isso empobrece a população e estimula mais violência, perpetuando o já mencionado círculo vicioso.

O FMI estima que na América Latina um aumento de 30% nos homicídios reduz o crescimento em 0,14 ponto porcentual. Inversamente, se o crime fosse reduzido à média mundial, o crescimento anual aumentaria 0,5 ponto porcentual, cerca de um terço do crescimento atual.

Um dos motivos pelos quais o crime é tão prevalente na América Latina é porque ele compensa. Os ganhos são altos em relação à economia legal, e a chance de os criminosos serem pegos é pequena. Menos de 10% dos homicídios na região são solucionados. O contingente de jovens que não estuda nem trabalha é alto, o que pede mais programas de formação. O sistema de Justiça frequente falha em suas tarefas, o que pede mais capacitação da polícia e melhorias no sistema judiciário e prisional. A expansão do crime organizado agrava estes fatores. Países outrora seguros, como Equador, Chile ou Costa Rica, sofreram uma escalada da violência após se tornarem entrepostos do narcotráfico.

Mas a região também tem alguns dos países que reprimiram mais eficazmente a violência. Os homicídios são extraordinariamente concentrados: cerca de 80% das mortes violentas na América Latina ocorrem em 2% de suas ruas. Estatísticas podem ajudar a polícia a realizar prisões e prevenir crimes. Nos anos 90, a Colômbia era um dos países mais violentos da região. A prefeitura de Cali estabeleceu “observatórios da violência” para estudar como localidades e comportamentos favorecem assassinatos. Muitos resultam de rixas entre indivíduos embriagados. Restrições ao álcool e armas ajudaram a cortar os homicídios em 35%. Cidades como Medellín utilizaram esse policiamento baseado em evidências para reprimir cartéis de drogas. A Justiça puniu mais criminosos, os cidadãos sentiram que as ruas estavam mais seguras e as ruas mais povoadas desencorajaram os criminosos. Entre 1995 e 2017, a taxa de homicídios da Colômbia caiu de 70 por 100 mil habitantes para 24, a menor em 40 anos.

Uma das razões da violência exorbitante na América Latina é que a região se urbanizou uma geração antes de outras áreas em desenvolvimento. Agora a violência cresce nessas regiões também. Assim como a América Latina liderou a alta de homicídios no mundo, pode liderar a sua baixa. O fortalecimento do Estado de Direito beneficiará, a um tempo, o combate ao crime e o crescimento econômico. Com segurança pública baseada em evidências, os latinoamericanos podem antecipar para outros países os antídotos e remédios para a doença do crime, evitar indizíveis tragédias de suas vítimas e enriquecer toda a sua população.

Municipalismo distorcido

O Estado de S. Paulo

Pesquisa da CNM revela que muitos municípios não conseguem manter finanças em ordem. Não são raras as cidades que nem deveriam existir como entes político-administrativos autônomos

A Constituição de 1988 foi certeira ao conferir ao município um poder político e administrativo compatível com a importância deste ente federativo para toda a população. Afinal, como dizia Franco Montoro, “ninguém vive na União ou no Estado, as pessoas vivem no município”. Entretanto, ao longo desses 35 anos de vigência da “Constituição Cidadã”, o espírito constitucional, eminentemente municipalista, foi distorcido pela criação serial de municípios Brasil afora que não apresentavam a menor condição de existir como entes autônomos, incapazes que são de gerar receitas que, no mínimo, empatem com suas despesas.

Uma pesquisa feita pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) sobre o estado das finanças das prefeituras, com foco na capacidade de pagamento do 13.º salário para os servidores, é o retrato mais recente desse descompasso entre o desejo original da sociedade de alçar o município à categoria de ente federativo e a realidade de muitas das 5.568 cidades brasileiras – 1.385 delas criadas pós-1988. De acordo com a pesquisa, 1.969 municípios (44,2% dos respondentes) admitiram que têm débitos em atraso com fornecedores; 26,2% informaram à CNM que fecharão 2023 com as contas no vermelho.

Muitas dessas prefeituras são incapazes não apenas de pagar o 13.º salário de seus servidores nos prazos legais, como constatou a CNM, mas até mesmo de custear a prestação de serviços básicos, como coleta de lixo.

O problema não está circunscrito às Regiões Norte e Nordeste. Em São Paulo, por exemplo, 213 das 582 prefeituras consultadas pela CNM (36,6%) disseram estar com dificuldade para quitar suas obrigações com fornecedores. Ainda que a maioria dos municípios paulistas (61,2%) tenha informado estar com as contas em dia, é preocupante constatar que mais de um terço das cidades do Estado mais rico da Federação não tenha suas finanças equilibradas, o que se reflete, invariavelmente, na qualidade dos serviços públicos prestados aos cidadãos.

Há poucos dias, o Estadão publicou uma reportagem revelando que, entre abril de 2022 e abril de 2023, as cidades do interior paulista gastaram R$ 3,4 bilhões apenas para manter as 664 Câmaras Municipais sob fiscalização do Tribunal de Contas do Estado. Esse montante foi usado, exclusivamente, para pagar salários e bonificações de 6.908 vereadores e cerca de 25 mil servidores, além de contas de consumo, viagens, serviços de limpeza e acesso à internet. Em muitos casos, esses gastos foram sustentados, no todo ou em parte, por repasses estaduais, via arrecadação do ICMS, e federais, por meio do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

Não se pode afirmar, é claro, que todos os municípios do País que passam por crises financeiras não deveriam existir como tais. Ainda que possa haver razões comuns para a baixa arrecadação das prefeituras em diferentes regiões do País, como o populismo de Jair Bolsonaro e a irresponsabilidade do Congresso ao chancelar a tentativa do ex-presidente de controlar o preço dos combustíveis em ano eleitoral por meio do corte forçado das alíquotas de ICMS, há muitas particularidades locais que não podem ser ignoradas, como má gestão, e que não têm ligação direta com a eventual incapacidade de geração de receitas. Ao mesmo tempo, é inegável que houve municípios criados sob a nova égide constitucional por razões estreitas, como resolução de disputas locais ou acomodação de interesses políticos. A Constituição teria sido respeitada se a criação desses entes federativos se prestasse a melhorar a vida das pessoas.

Agora, é muito difícil reverter essa perversão do municipalismo que inspirou os constituintes originários. A razão é simples: no Congresso Nacional, instituição autorizada a promulgar emendas à Constituição, são muitos os parlamentares que não têm qualquer interesse em abrir mão de municípios que podem até ser inviáveis financeiramente, mas são riquíssimos do ponto de vista político, servindo-lhes muito bem como currais eleitorais e destino de emendas ao Orçamento para lá de suspeitas.

O Brasil na rabeira digital

O Estado de S. Paulo

57.º lugar em ranking de competitividade digital com 64 países expõe fragilidade brasileira

O futuro digital tornou-se um conceito desatualizado diante de realidades como hiperautomação, inteligência artificial e atendimentos robotizados, os chamados chatbots. A produtividade das economias começa a ser ditada pela capacidade que cada país tem de incorporar essas tecnologias e de antecipar as que ainda não existem. Nesse tópico, é preocupante a posição brasileira em relação a seus pares internacionais. Como mostrou o recém-divulgado Ranking Mundial de Competitividade Digital, de 64 países pesquisados, o Brasil ficou em 57.º lugar em 2023.

Pior do que ter descido cinco degraus na escala foi a constatação de que, em relação a 2022, não houve avanço brasileiro em nenhum dos fatores pesquisados no anuário, elaborado pela escola de administração suíça IMD, com parceria no Brasil da Fundação Dom Cabral. E como se trata de um estudo comparativo, significa que a economia brasileira está muito longe de acompanhar o ritmo de países que têm se destacado pela agilidade no desenvolvimento do conhecimento tecnológico.

Ao contrário do que os números possam dar a entender o brasileiro não é refratário a esse tipo de avanço. Pelo contrário: o uso de serviços públicos online pela população foi um dos poucos pontos positivos na pesquisa e levou o País ao 11.º lugar nesse quesito, com a constatação de que a plataforma gov.br atrai 80% dos habitantes acima de 18 anos. Há, sem dúvida, um desafio a ser enfrentado, tanto na esfera pública quanto na empresarial. Mas o atraso do Brasil não se deve ao desinteresse da população.

O País não consegue reter os talentos formados aqui, e os dados do ranking não deixam dúvidas: os países que mais avançam são os mais focados na promoção e na retenção desses talentos. Contribuem para isso as universidades, o investimento em pesquisas científicas e, como sempre defendemos neste espaço, o crescente investimento no ensino técnico. O Brasil foi o último colocado em relação a talentos, no que diz respeito tanto à retenção quanto à atração de mão de obra qualificada estrangeira.

Exemplos utilizados no estudo, como o de Cingapura – terceira do ranking, atrás de Estados Unidos e Holanda –, que usa estratégias digitais e internet das coisas na gestão da cidade-Estado, mostram como o Brasil tem ainda um longo caminho a percorrer. Um caminho que poderia ser facilitado com a criação de projetos públicos e privados de longo prazo. E, claro, uma revisão do ambiente regulatório.

O País deu alguns passos nesse sentido, com a aprovação do Marco Legal das Startups e da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), mas ainda precisa de leis adequadas ao desenvolvimento tecnológico contínuo, como fazem os países que se destacam no ranking.

Não serve de consolo ao Brasil o fato de ter, na rabeira da lista, a companhia de outros países sul-americanos como Venezuela (último lugar), Colômbia (62.º) e Argentina (61.º), todos eles convivendo com situações políticas e econômicas mais críticas do que a brasileira. A revolução digital aprofunda o abismo entre as nações mais e menos desenvolvidas, e não há mais tempo a perder.

Janeiro Branco dá a largada

Correio Braziliense

Não basta apenas mobilizar a sociedade, mas sim sensibilizar as autoridades do país a respeito da importância de políticas públicas para a saúde mental

Começar o ano cuidando do corpo é uma iniciativa mais que louvável diante de números crescentes de obesidade no Brasil e no mundo. Mas a saúde mental também precisa de atenção desde já. Não foi à toa que seus organizadores escolheram este mês para iniciar a campanha Janeiro Branco.

A data foi estrategicamente pensada porque o primeiro mês do ano costuma promover nas pessoas maior abertura para reflexões, novas resoluções e metas para o ano que se inicia. A cor branca representa as folhas ou telas em branco, em que uma pessoa pode desenhar, escrever ou reescrever o que desejar para si e para o mundo, simbolizando o horizonte aberto e criando o sentimento de potência ilimitada que cada início de ano possibilita à humanidade.

Não há como negar que a disseminação do coronavírus seja uma espécie de divisor de águas, quando o assunto é saúde mental, ou melhor, doença mental. Foi a partir de 2020 que as pessoas foram afetadas com a pandemia da covid-19, responsável por provocar medos, incertezas e uma crise sem precedentes na saúde mental de grande parte dos brasileiros. Em praticamente três anos de pandemia, as pessoas deixaram de ser biopsicossociais para se isolarem em seus mundos, deixando as portas abertas para a solidão, a intolerância, a introspecção e a tantos outros sentimentos negativos.

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que já são mais de 350 milhões de pessoas, de todas as idades, que sofrem com a doença. O Brasil assumiu a liderança do ranking da ansiedade, com 18,6 milhões de pessoas ansiosas e 11,7 milhões deprimidas. Isso demonstra o que muitos especialistas afirmam: o Brasil está vivenciando a pandemia dos transtornos mentais.

Criada em 2014, completando portanto 10 anos, a campanha Janeiro Branco, que já é Lei Federal (Lei 14.556/23), foi elaborada pelo psicólogo Leonardo Abrahão, presidente do Instituto Janeiro Branco, e relaciona a saúde mental às interações humanas. O tema deste ano é "Saúde mental enquanto há tempo. O que fazer agora?" e a ideia é chamar a atenção para a saúde mental como um aspecto vital para melhorar a qualidade de vida das pessoas, promover relações sociais mais saudáveis e transformações positivas nas instituições sociais no mundo inteiro.

Prova da amplitude do movimento é que países como Angola, Colômbia, Japão, Estados Unidos, Portugal, Espanha e Cabo Verde abraçaram e adotaram os princípios da campanha, superdimensionando seu impacto e promovendo durante todo o mês de janeiro a conscientização sobre o tema em escala global.

Não basta apenas mobilizar a sociedade em torno das doenças mentais, mas sim sensibilizar as autoridades políticas a respeito da importância de políticas públicas para a saúde da mente. "Cuidados individuais, atitudes institucionais e políticas públicas", defendem os especialistas em saúde mental.

Que 2024 seja mesmo o ano da colheita, do aprendizado, da evolução e da maturidade, como dizem os astrólogos de plantão. E que possamos cuidar da saúde mental uns dos outros.

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