O Estado de S. Paulo
Não há exercício responsável de cidadania onde o olhar sobre a realidade é simplesmente superficialidade
Em resenha de um livro sobre o jornal The New
York Times, Alan Rusbridger – que foi editor do jornal The Guardian entre 1995
e 2015 – falou do desafio contemporâneo de noticiar de forma sóbria e séria. Ao
ler sobre isso, veio-me à mente a trajetória do Estadão, um jornal cuja
história, cuja identidade, apesar de todas as vicissitudes, foi sempre marcada
por este ideal: cobrir e analisar os fatos de forma sóbria e séria.
Nestes tempos de grandes transformações na produção e no consumo da informação, é oportuno refletir sobre em que consiste esse ideal e qual é sua relevância pública. Certamente, há muitas coisas que podem e devem mudar no jornalismo. E há outras tantas que devem permanecer exatamente como sempre foram. Distingui-las bem é tarefa de toda instituição que deseja perdurar no tempo.
Noticiar de forma sóbria e séria é ter uma
compreensão de mundo – de jornalismo, de Estado, de sociedade, de ser humano –
capaz de identificar o que é importante e o que apenas brilha, o que só chama a
atenção. O trabalho de diferenciar o valor de face dos acontecimentos do seu
efetivo valor é característica fundamental do jornalismo.
Dessa forma, um bom jornal implica
necessariamente um distanciamento da percepção imediata do leitor. A notícia
narrada de forma sóbria e séria gera sempre uma pequena ruptura em quem a lê.
Há uma surpresa, um aprendizado. Ela oferece algo a mais do que se estava
esperando. Conta algo diferente do que o leitor conhecia antes.
Os critérios para distinguir entre o valor de
face e o efetivo valor dos acontecimentos não são dados por circunstâncias
externas nem por terceiros. Eles são decorrência da mais íntima identidade do
jornal, da sua institucional compreensão de mundo. A seriedade e a sobriedade
não são características que vêm de fora. Germinam dentro. São, devem ser,
institucionais.
Ter uma institucional compreensão de mundo –
capaz de prover critérios para distinguir o que é importante e o que apenas
brilha – permite também não julgar os acontecimentos e os outros a partir de um
ponto de vista exclusivamente individual. Não é uma avaliação idiossincrática.
Se eles concordam com a opinião própria. Se têm a mesma posição política. Não é
um juízo formulado a partir de critérios pessoais.
Noticiar de forma sóbria e séria é dispor-se
a narrar o presente sem estar achatado pela visão predominante do momento. É
procurar ver o filme, e não apenas a foto. Mesmo o fotojornalismo nunca foi
estático, mera imagem, mero retrato. Foi sempre movimento, sempre história,
sempre sentido: foi sempre jornalismo.
É, por consequência, nutrir um profundo
respeito pelo leitor, vendo nele não apenas um consumidor. É confiar em sua
capacidade de compreensão, na possibilidade de um diálogo além do mero
interesse particular, além da chave binária concordância-discordância.
Especialmente num país como o Brasil – que
tem grandes carências educativas e reflexivas –, noticiar de forma sóbria e
séria é enfrentar sua maior insuficiência, sua maior fragilidade: o perigo de
contentar-se com o olhar imediatista, com a apreensão precipitada dos
acontecimentos, com o juízo prima facie. Não há exercício responsável de
cidadania onde o olhar sobre a realidade é simplesmente superficialidade.
Somos uma sociedade que não se conhece, que
não se reconhece. Que tem dificuldades de lidar com o incômodo. Que escolhe
teimosamente não enfrentar seus problemas, suas ilusões, suas falsas ideias de
grandeza, seus fantasmas. Que não tem um olhar maduro sobre si mesma. Que se
nega a ver as injustiças, os privilégios, os preconceitos, as desigualdades.
Simplesmente não há jornalismo se ele estiver condicionado por tudo isso, se
ele não for capaz de romper essa redoma.
Noticiar de forma sóbria e séria é contribuir
para uma compreensão madura de nossas deficiências enquanto país, enquanto
sociedade. É, portanto, prover as condições para se atacar as causas dos
problemas, e não apenas remediar os sintomas. É possibilitar conhecer e, assim,
ser capaz de enfrentar as limitações e os condicionantes que coagem o curto, o
médio e o longo prazos. Há tarefa mais importante do que essa?
É um enorme bem para o País que um jornal se
disponha a noticiar de forma sóbria e séria. Isso não significa linguagem
sisuda, mau humor ou chatice. Trata-se, sobretudo, de estabelecer uma relação
de transparência com o leitor. Sem enganá-lo vendendo importância onde só há
futilidade. Sem ser excessivamente cúmplice das contradições da sociedade.
O espírito dos tempos segue outros rumos, com
outras semânticas e outras demandas. Mas, precisamente por isso, noticiar de
forma sóbria e séria é ainda mais necessário, ainda mais relevante, ainda mais
disruptivo. É a audácia de olhar o País – sua população, sua economia, sua
cultura, suas relações de poder – além do brilho, além do aplauso, além do
clique. Em síntese, é ter coragem. Por isso, em 2025, nos 150 anos do Estadão,
haverá muito a comemorar. Contam-se nos dedos os jornais no mundo com semelhante
trajetória de independência.
*Advogado
Um comentário:
Um texto interessante e bem escrito. Mas um bom ouvidor (ou "ombudsman") teria um olhar mais crítico sobre o jornal onde escreve. Como não é um ouvidor, mas um bom colunista, tá dentro do esperado.
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