quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Tiago Cavalcanti* - Queremos pagar imposto como os ricos

Valor Econômico

Os 10% mais ricos responderam por 41,6% do total de deduções no Imposto de Renda

Aproveitando o recesso acadêmico na Universidade de Cambridge, tive a oportunidade de desfrutar do nosso calor humano, da culinária e da natureza do nosso país. Em uma conversa com amigos, discutimos o significado de pertencer à classe média no Brasil e se o governo deveria tributar proporcionalmente mais ou não os mais ricos.

De forma geral, havia a percepção de que a maioria fazia parte da classe média e não da rica no país, e que a tributação deveria ser progressiva. Ou seja, a percepção geral era de que os mais ricos deveriam pagar uma proporção maior de seus rendimentos em impostos, e a grande maioria dos amigos não pertencia à classe rica.

Então, comentei que, se fizéssemos uma fila em que todos os adultos do país fossem ordenados por renda, da maior para a menor, em qual decil de renda cada um achava que estaria: entre os 10%, 20% ou 30% mais ricos, ou mais próximo da mediana - 50% mais ricos, que deveria ser a classe média? A maioria ainda tinha a percepção de que estaria mais próximo da mediana, ao invés dos 10% mais ricos.

Fomos verificar a evidência, e alguns ficaram incrédulos. Segundo dados da Pnad Contínua do IBGE, o rendimento médio mensal de uma pessoa ocupada no Brasil é um pouco mais de R$ 3.000, e a mediana da renda é inferior a R$ 1.500; ou seja, 50% da população ocupada tem renda mensal inferior a R$ 1.500. Esses são os valores que descrevem a renda média de um brasileiro e a renda que divide no meio a fila das pessoas ocupadas.

Já o rendimento médio domiciliar per capita, que considera as pessoas que não trabalham, é de cerca de R$ 1.600. Os dados do IBGE revelam ainda que o rendimento médio per capita dos 10% mais ricos no país é de cerca R$ 8 mil. Minha impressão é que todos no ambiente em que estava pertenciam aos 10% mais ricos do país.

De fato, a pesquisa elaborada pela Oxfam Brasil, com uma amostra maior do que o grupo de amigos com quem conversava, revela uma tendência semelhante. Enquanto cerca de 20% dos brasileiros se veem exatamente na mediana da distribuição, quase ninguém se coloca perto do topo da hierarquia.

Percepção de que “os ricos são sempre os outros” tem profundas implicações para as políticas redistributivas

É sabido que a renda reportada na Pnad Contínua mensura de forma mais precisa a renda do trabalho e da aposentadoria, subestimando o rendimento do capital, lucros e dividendos. Isso acaba por subestimar ainda mais a renda das pessoas mais ricas, dado que a distribuição do capital é altamente concentrada.

Um dos amigos do grupo argumentou que a base de comparação não estava correta, pois deveríamos considerar apenas as pessoas que declaram o Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF), que seriam as “pessoas produtivas” no país.

Em 2022, 38,4 milhões de brasileiros fizeram a declaração do imposto de renda, o que representa 35,6% da População Economicamente Ativa. Assim, a grande maioria desse grupo, que ganha abaixo de R$ 28 mil ao ano ou trabalha no setor informal, não fez a declaração do imposto de renda.

De acordo com o relatório sobre a distribuição pessoal da renda e da riqueza da população brasileira, utilizando as informações da declaração do IRPF divulgadas pela Receita Federal em 2023, a renda mensal média bruta foi de R$ 10.209 em 2022. Segundo Pedro Humberto de Carvalho Junior, pesquisador do IPEA, os 10% mais ricos no Brasil têm uma renda mensal bruta de R$ 14 mil. Alguns amigos do grupo continuaram descrentes das evidências reportadas.

O Brasil apresenta uma distribuição de renda extremamente desigual, uma vez que os 10% mais ricos se apropriam de 51,5% da renda total do país. Talvez isso explique a discrepância entre a percepção e a realidade do ordenamento da renda das pessoas. Os grupos de referência e as aspirações mudam de acordo com as faixas de renda das pessoas.

Além disso, nosso sistema de tributação da renda não é totalmente progressivo, ou seja, não necessariamente os ricos pagam uma maior proporção de seus ganhos em tributos do que indivíduos que são relativamente mais pobres.

Em 2022, a alíquota efetiva do IRPF iniciou-se em zero nos centis de menor renda e apresentou uma elevação progressiva até o centil 93, que contribuiu com 11% de sua renda tributável. No entanto, a partir desse centil, há uma mudança de direção, marcando o início de uma queda na alíquota efetiva, atingindo apenas 4,2% no centil 100.

Dessa forma, pode-se afirmar que, considerando a alíquota efetiva, o IRPF em 2022 foi progressivo conforme a renda até o centil 93, porém regressivo no topo da distribuição, para os 6% mais ricos. Em 2022, os 1% mais ricos pagaram uma alíquota efetiva muito próxima àquela paga pelos declarantes que se situaram próximos ao centil 60 e inferior àquelas das pessoas que estão no centil 60-93%. A explicação para a menor alíquota dos 6% mais ricos no país está na maior participação da Renda com Tributação Exclusiva/Definitiva, como ganhos de capital, lucros e dividendos.

Além disso, pelo lado das despesas, a proporção com deduções do IRPF foi progressiva. Nos centis inferiores, as despesas dedutíveis declaradas foram próximas a zero, ao passo que os centis de maior renda concentraram a maioria das deduções. Os 10% mais ricos responderam por 41,6% do total de deduções.

Portanto, o nosso sistema está longe de tributar progressivamente o rendimento das pessoas. A percepção de que “os ricos são sempre os outros” tem profundas implicações para as políticas redistributivas.

Segundo pesquisa da Oxfam Brasil, 86% dos brasileiros afirmam que o progresso no país está condicionado à redução da desigualdade entre pobres e ricos, e 84% das pessoas concordam com o aumento dos impostos para as pessoas mais ricas para financiar políticas sociais. Entretanto, apenas 56% aprovam um aumento dos impostos para todos no país para financiar políticas sociais.

Queremos acompanhar os Jonases na renda e também nos impostos.

*Tiago Cavalcanti é professor de economia da Universidade de Cambridge e da FGV-SP.

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente! Demonstra didaticamente a diferença que temos na análise da renda dos brasileiros conforme o tipo de base de dados considerada. O IBGE parece realmente menos confiável, já que não há qualquer controle sobre a veracidade das informações prestadas pelos cidadãos, mas os dados do Imposto de Renda são pouco representativos, pois a maioria da população não é obrigada a declarar.

Ou seja, há muito ainda a fazer para melhorar a distribuição da renda dos brasileiros, inclusive desenvolver bases de dados mais confiáveis e representativas, que possam servir de apoio a políticas mais eficientes e que reduzam a tremenda desigualdade econômica no Brasil, certamente uma das maiores e mais escandalosas do mundo.