Orçamento impositivo vira "piso mínimo" da barganha
Em pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV, na noite do dia 25 de dezembro de 2013, o presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Alves (PMDB-RN), celebrou o que chamou de "fim da barganha e da discriminação partidária" no Brasil, após a sanção pela presidente Dilma da Lei de Diretrizes Orçamentárias sem vetar o Art. 52, que obriga o governo a executar integralmente as emendas dos parlamentares ao Orçamento da União, o que é chamado de Orçamento impositivo. Será que temos de fato motivos para celebração?
Tem sido prática comum, não apenas no Brasil, mas também em outros presidencialismos multipartidários, o legislativo delegar poderes para que o executivo faça uso estratégico da execução discricionária de iniciativas legislativas ao Orçamento. Tal procedimento decorre da necessidade de presidentes eleitoralmente minoritários construírem e sustentarem coalizões majoritárias pós-eleitorais no Congresso e, consequentemente, terem condições políticas de governar e implementar suas agendas e programas de governo.
Em monografia recentemente premiada pelo Tesouro Nacional, "Gastos Públicos, Emendas Orçamentárias e Inclusão Dissipativa nos Municípios Brasileiros (1998-2010)", em coautoria com o Professor da UNB, Lúcio Rennó, demonstramos que a execução das emendas dos parlamentares têm um impacto direto na qualidade de vida dos cidadãos brasileiros que vivem nas localidades beneficiadas. Por exemplo, quanto maior a riqueza dos municípios, menor a probabilidade desses receberem recursos provenientes dos parlamentares. Além do mais, municípios que recebem maiores recursos e por mais tempo, pela via de emendas parlamentares, reduzem mortalidade infantil e diminuem distorções educacionais. Aqueles que se beneficiam mais frequentemente de emendas também aumentam a oferta de emprego formal e renda. Consistente com as expectativas da teoria democrática, municípios com maior competição política tendem a receber mais recursos. Esses resultados sugerem que a lógica descentralizada de alocação de recursos públicos, via emendas parlamentares, pode gerar maior inclusão e diminuição da desigualdade.
Ao lado de resultados positivos, o perfil dessas políticas inclusivas no entanto é dissipativo. Ou seja, políticas locais de autoria dos parlamentares nem sempre são implementadas da maneira mais eficiente, pois normalmente seguem a lógica da sobrevivência eleitoral e não necessariamente a necessidade do município. Um exemplo disso é a inconsistência entre a redução da mortalidade infantil nos municípios beneficiários quando analisada no tempo. Até o quinto ano consecutivo de recebimento de emendas, a mortalidade infantil é substantivamente reduzida em 8%. A partir do sexto ano, entretanto, o impacto das emendas desaparece. Verifica-se assim que a inclusão propiciada pelas emendas dos parlamentares apresenta características de dissipação. Por um lado, os municípios que precisam de investimentos mas não recebem emendas, não conseguem redução de mortalidade infantil. Por outro lado, por mais recursos que sejam executados em municípios já beneficiados por emendas por um período superior a cinco anos, não se traduz em mais inclusão, mas em maior dissipação e desperdício.
Padrão semelhante ocorre em outras políticas públicas de autoria dos parlamentares nos municípios brasileiros. Por exemplo, os que receberam emendas por apenas um ano geraram substancialmente mais empregos formais, aumentaram o estoque de empregos bem como houve incremento de salário formal em 8,5% em relação aos municípios que não receberam emendas. Executar emendas por mais de oito anos consecutivos, entretanto, não apresenta impacto estatístico nessas políticas, o que também sugere um padrão de inclusão seguido por dissipação e distorção na alocação de recursos. Outro exemplo de inclusão dissipativa fica visível quando analisamos o efeito da execução das emendas parlamentares na qualidade da saúde e educação municipal medido pelo índice Firjan. Mesmo a execução de valores módicos de emendas parlamentares, gera um aumento na qualidade da saúde e educação nos municípios, mas esse efeito não se sustenta ao longo do tempo.
Fica claro que essas distorções não seriam apenas ruídos que poderiam ser eliminados facilmente, nem mesmo com as restrições impostas ao executivo com a recente implementação do Orçamento impositivo. Na realidade, essa dissipação é constitutiva do nosso sistema político de ganhos-de-troca entre o executivo o legislativo, que por um lado gera governabilidade e inclusão, mas por outro proporciona efeitos-colaterais dissipativos. O benefício líquido desse processo de inclusão dissipativa ainda tem sido positivo, pois tem produzido inclusão social associada a governabilidade, estabilidade democrática e previsibilidade no jogo político.
No lugar de diminuir a barganha e a discriminação entre os partidos, como espera o deputado Henrique Alves, o Orçamento impositivo deve gerar mais distorções e dissipação. O risco iminente nessa reforma é de tornar o benefício líquido das relações executivo-legislativo negativo. Os parlamentares internalizarão os ganhos eleitorais provenientes da execução impositiva dos recursos de suas emendas independentemente do apoio político ao presidente. Como consequência, novos recursos tendem a ser demandados para a construção e manutenção de maiorias legislativas, o que necessariamente levaria ao aumento do custo de apoio e dissipação de recursos. Além do mais, a obrigatoriedade da execução das emendas diminui espaços de coordenação e avaliação técnica nos ministérios, o que pode levar a mais dissipação. A barganha é da natureza da política e constitutiva do presidencialismo multipartidário. A interpretação de que, o montante de recursos regularmente executado, uma vez se tornando impositivo, traria o apaziguamento das relações de convencimento e troca no ambiente da politica é, no mínimo, naïf.
Carlos Pereira é professor titular na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getulio Vargas (FGV)
Fonte: Valor Econômico
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