segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Cacá Diegues: A vigência da democracia

- O Globo

Brasileiros conservadores, a grande maioria, foram esquecidos pela nossa liderança intelectual, política e cultural

Eleitos para o segundo turno, as primeiras declarações de Jair Bolsonaro e Fernando Haddad foram as de que prometiam absoluto respeito à Constituição de 1988. A promessa pode não ser sincera, pode logo se desfazer em pérfidas maquinações para que o futuro vencedor faça o que bem entender do governo e do Brasil. Mas não há como negar que Bolsonaro e Haddad desejavam dizer que são candidatos fiéis às regras do jogo democrático, do estado de direito e da observância da lei. Uma reafirmação de compromisso com o tipo de sociedade em que vivemos desde o fim da ditadura no país.

Cabe a nós, testemunhas do juramento, vigiar e cobrar no futuro o comportamento prometido. Teremos que evitar as eternas desculpas científicas (históricas, sociológicas, políticas) para justificar o que eventualmente aconteça, nos dispondo a ser os guardiões daquilo que foi jurado, não importa em que circunstância. Garantiremos assim uma das mais belas consequências da democracia — a valorização do que é dito pelos concorrentes antes do pleito, em benefício deles mesmos, no intuito de convencer o eleitor.

Não conheço o plano de governo de Jair Bolsonaro, acho até que não existe plano nenhum. Bolsonaro não está sendo escolhido pelo eleitor por causa de um vago programa econômico, nem por causa de qualquer projeto administrativo que ele tenha bolado para o país. Seus votos vêm de brasileiros frustrados com o que lhes foi prometido em outras eleições, cansados de tanta conversa fiada que, no fundo, só serviu para esconder a corrupção generalizada.

Esses brasileiros conservadores, a grande maioria da população do país, foram esquecidos pela nossa liderança intelectual, política e cultural, que nunca se deu conta de que, do politicamente correto aos hashtags de protesto, da incompreensível globalização ao empoderamento das minorias, tudo é matéria que não lhes dizia respeito, nem queriam saber do que se tratava. Como disse recentemente o historiador Boris Fausto, “essa onda é diferente do fascismo, quando havia uma consciência politizada por trás. Essa onda atual de direita é muito mais à brasileira, amorfa e inconsciente, o que não quer dizer que não seja perigosa.”

É evidente que essa onda é uma vitória do racismo, da homofobia, do elogio da violência, porque é isso o que cabe no mundo de tradições religiosas, popular e conservador, do nosso povo. O povo que sempre elegemos como objeto sagrado de nossas ideias, razão da trajetória pública de nossas vidas. E não adiantam subterfúgios teóricos, pois foi o povo, esse nosso herói, que escolheu o vencedor. Ou quase vencedor. Estranhamente, foi preciso que um capitão destemperado, um homem que ensinou seus filhos a atirar com arma de fogo desde os 5 anos de idade, que nunca deve ter lido um só livro em toda a sua vida, assumisse a liderança dessa reação, mesmo sem se dar plena conta de seu significado.

Só nos resta defender, a qualquer preço, a vigência da democracia e do respeito aos direitos humanos, nos prepararmos para esses novos tempos bem menos sofisticados do que o que esperávamos encarar. Os discursos constitucionalistas dos dois candidatos devem nos servir para exigirmos o fim da violência irracional, capaz de produzir mortes absurdas como a de Moa do Katendê, capoeirista e fundador do afoxé Badauê, um herói da cultura popular brasileira, só porque encontrou num bar de Salvador alguém que, com uma faca na mão, não admitia que ele tivesse votado em quem não era o candidato do assassino.

Sobre a morte de seu amigo, Caetano Veloso deu uma declaração a este jornal que também serve para tantas outras coisas que andam ocorrendo em nosso país: “A mente dos brasileiros, de todos os brasileiros que são capazes de pensar, acalmar a cabeça para receber as coisas e (acalmar) o coração para metabolizar os sentimentos humanos, precisa reconhecer que não pode reduzir o Brasil a essa coisa bárbara. O assassinato de Moa do Katendê é um sinal de que a gente não deve seguir com força no caminho que as pessoas ilusoriamente pensam que é superação, quando é atraso, é volta, é medo da responsabilidade da civilização.”

Antes de qualquer coisa, não podemos desistir do Brasil, em nenhuma circunstância. O resto vem depois.

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