sábado, 10 de novembro de 2018

Biografia - Amado na ficção e na vida real

Por Rachel Bertol | Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

RIO - Em uma visita a Moscou, diante da Catedral de São Basílio, Jorge Amado (1912-2001) não hesitou em repreender seu guia, no auge do regime soviético, quando ele lhe disse que aquele símbolo "de feudalismo e superstição" deveria ser destruído e não restaurado. O regime de Stálin perseguia a Igreja Ortodoxa (sendo a religião execrada sob o comunismo), mas o autor de "Jubiabá" não se deixou embalar pelo sectarismo: "Se você ama mesmo a sua pátria e o regime soviético, nunca mais repita essa bobagem". Amado e Zélia Gattai (1916-2008), sua mulher, realizavam um antigo sonho, de visitar a capital da URSS pela primeira vez, no período em que viveram exilados na Europa entre 1948 e 1952, por causa da militância comunista do autor.

Em "Jorge Amado - Uma Biografia" (Editora Todavia, 640 páginas, R$ 63,12), que chega às livrarias neste mês, a jornalista Joselia Aguiar tempera a narrativa sobre a vida do escritor mais popular da literatura brasileira no século XX com breves lances como esse, que ilustram uma personalidade cativante. Baiana como Amado, ela mostra como o autor de 35 livros, que começou a carreira em 1931 e a encerrou nos anos 90, fundiu vida e obra como poucos, mesclando suas peripécias ficcionais às reais.

"É um personagem delicioso: há momentos engraçados, tristes, com reviravoltas literárias, momentos em que você acha que acabou, e ele volta", afirma Joselia, que levou sete anos para concluir a obra e continua sua pesquisa para um doutorado em história que realiza na Universidade de São Paulo (USP), sobre as relações latino-americanas de Amado. É a segunda biografia do autor - a primeira data de 1961.

Ao longo da pesquisa, que bancou sozinha (inclusive o apoio de duas ajudantes no exterior, uma na República Tcheca e outra na Rússia), Joselia encontrou uma série de documentos inéditos. Um dos mais importantes foram os originais de "Rui Barbosa Nº 2", o segundo livro escrito pelo autor. Nele há um personagem chamado Archanjo, "tocado pela questão racial", diz Joselia, que vai reaparecer em "Tenda dos Milagres", de 1969. Às questões étnicas se soma a presença da religiosidade.

Desde "Jubiabá", seu quarto romance, publicado em 1935, quando tinha 23 anos, Amado já punha em cena personagens negros, num tempo em que isso ainda era raro no país. Jubiabá é um pai de santo, mas quem domina o enredo é o herói negro, Antônio Balduíno. Joselia conta que o livro foi recebido pela crítica como "um passo a mais" na trajetória do escritor, que reuniu 37 recortes de jornal a respeito para impressionar o pai, "coronel" de cacau na Bahia. E houve outra conquista: foi lançado na França pela prestigiosa editora Gallimard. Um título em Paris na época significava projeção internacional. Assim, o autor iniciou a façanha de ter sido o brasileiro mais traduzido no século XX.

"Quando comecei a pesquisa, eu me dei conta de que ia ser impossível falar dele sem contar o que acontecia literariamente e politicamente", afirma Joselia. Por isso, o livro de mais de 500 páginas oferece uma narrativa movimentada por múltiplos episódios históricos e personalidades como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Érico Verissimo, Pablo Neruda, Pablo Picasso, José Saramago, Carybé, Luiz Carlos Prestes.

Joselia comprovou que a biografia romanceada de Prestes, líder comunista brasileiro, lançada por Amado na Argentina em 1942, "O Cavaleiro da Esperança", surgiu de uma ideia do escritor e não por encomenda. O autor vivia então exilado entre Buenos Aires e Montevidéu. A biografia lhe deu prestígio no partido.

Esse período, quando se apaixonou por uma militante (citada como Maria Amado), no fim de seu primeiro casamento, não era bem conhecido. Boa parte dessas informações veio de um material recentemente doado à Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc). Nesse tempo, escreveu para a cultuada revista "Sur", fato que se desconhecia no Brasil. As principais novidades da biografia, aliás, referem-se aos anos iniciais de sua trajetória, como os detalhes sobre a morte de Lila, sua primeira filha, aos 15 anos, em 1950, por causa do lúpus. Amado teve mais dois filhos, João Jorge e Paloma, de seu casamento com Zélia, autora de livros de memória consultados na construção da biografia.

A investigação sobre a recepção crítica costurada por Joselia indicou que sempre foi positiva, porém, sem unanimidade. "Porque ele nunca fez nada brando, que não despertasse paixão", diz a biógrafa, que foi curadora das duas últimas edições da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), quando o evento homenageou Lima Barreto e Hilda Hilst, respectivamente. "Essas duas curadorias decorrem do que eu aprendi com Jorge Amado".

Lima (com Amado) a fez pensar sobre as estratégias para se aproximar dos leitores. Além disso, há o debate racial, tópico polêmico, já que uma corrente do movimento negro não aceita a defesa da mestiçagem presente no autor baiano. Com Hilda, tem-se o erotismo e a sensualidade, e a ideia de uma casa em torno da qual gravita a criação (a poeta viveu na mítica Casa do Sol rodeada de amigos). Amado, especialmente com o sucesso de "Gabriela, Cravo e Canela", de 1958 (que escreveu depois de sua decepção com o comunismo), conseguiu viver de seus livros e morou numa casa em Salvador, hoje aberta a visitação, que se tornou central na vida cultural da capital. Nela, os rastros de seus personagens se misturavam ao cotidiano, com muitos elementos das religiões de origem africana. Dizendo-se materialista, mesmo assim ele frequentava terreiros e detinha o título de obá de Xangô.

Segundo Joselia, as maiores restrições à sua obra partiram de críticos que se firmaram em universidades do Rio e de São Paulo nos anos 70, os quais não viam qualidade literária em seus escritos, tidos como documentais e estereotipados. O escritor dizia que nunca havia mudado seu projeto de retratar as pessoas do povo; o que mudou foi sua maneira de escrever.

"A voz literária amadiana se consolida justamente após 'Gabriela', quando Jorge Amado se torna ainda mais Jorge Amado. Se você compara os primeiros livros e os posteriores, vê que há um narrador ainda mais fixado, e isso tudo passa pelo humor, a picardia, o deboche, sem que ele tenha deixado de tratar de assuntos sérios", diz Joselia.

Seus leitores da União Soviética lembram-se do prazer de uma literatura alegre, viva mesmo depois que ele se afastou do regime comunista. O escritor perdurou. "Jorge Amado continua a ser muito lido. E tem muito leitor jovem. É um clássico brasileiro", afirma Joselia. Se os críticos dos anos 70, fechados na cátedra, não davam valor à sua obra, as pessoas continuam a procurá-la: Jorge Amado, de alguma forma, ainda as interpela.
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Rachel Bertol, doutora em comunicação e cultura pela UFRJ, é professora-adjunta de comunicação na UFF.

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