Por Oscar Pilagallo | Para o Valor Econômico | Eu & Fim de Semana
O livro é um porto seguro, a partir do qual, com repertório reabastecido, parte-se para ler, ou reler, Jorge Amado
SÃO PAULO - Em 1939, numa festa de São João na casa dos pais de Jorge Amado, Dorival Caymmi pega o violão e entoa "É doce morrer no mar", frase que lera em "Mar Morto", até então o mais lírico romance do escritor baiano, publicado três anos antes. Amado completaria os versos da antológica canção, a primeira parceria dos dois. Duas décadas depois, Amado recebe em casa João Gilberto, de quem fora padrinho do primeiro casamento, para compor a trilha de "Seara Vermelha", filme baseado no livro que integrou a fase de romances de temática social do autor. Lá nascia "Indiú", palavra que remete ao canto do pássaro que, no meio da madrugada, parecia repetir na gaiola a melodia cantada por João.
Os dois registros, anotados na aguardada biografia de Joselia Aguiar, dão a dimensão do alcance da produção de Jorge Amado. Desde meados da primeira metade do século passado, o festejado escritor estava presente no panorama da cultura popular brasileira mesmo em áreas em que não se destacou, como a música. Afinal, não sabia nem assobiar e sua letra não chegou a ser aproveitada na versão gravada pelo criador da batida de violão da bossa nova.
As passagens não valem apenas pelo caráter anedótico que enriquece a narrativa. São ilustrativas do plano da obra, que, mesmo ao abordar pontos fora da curva, privilegia histórias reveladoras do eixo de atuação de um personagem tentando se equilibrar entre a militância comunista e a literatura de agrado popular.
O Amado que emerge do alentado e criterioso trabalho da pesquisadora tem a humanidade de seus melhores tipos, pleno de contradições. É expansivo e recolhido, audacioso e hesitante, materialista e frequentador do candomblé. É também um autor movido pelo desejo de criar, não acomodado ao sucesso obtido desde a juventude, divulgador incansável da cultura afro-brasileira de sua terra e crítico ferrenho das injustiças sociais. Joselia aponta interconexões improváveis exploradas pelo escritor. "Jubiabá", de 1935, por exemplo, o primeiro a conquistar público e crítica, é uma ficção que não esconde a pretensão de ser um instrumento de combate político. "Na figura do pai de santo Jubiabá, o candomblé é concebido como uma resistência à sociedade branca e burguesa."
"Capitães da Areia", de 1937, mantém o vigor realista da primeira safra, de "Cacau" e "Suor", concebidos como romances proletários, mas é mais bem realizado, na intuição do próprio autor. Muito lido ainda hoje, teve um lançamento conturbado. Foi recolhido e queimado pela ditadura do Estado Novo, que chegou a prender o escritor em Manaus, em rota para um exílio. "No xilindró manauara, escutou um dos policiais contar que andava a vender clandestinamente muitos dos seus livros apreendidos, pois a procura era grande e o lucro, certo."
A biografia se alonga, corretamente, sobre a atividade política de Amado, com nítidos reflexos sobre sua obra. Eleito deputado pelo Partido Comunista, em 1946, foi um quadro fiel no Congresso, mas pouco ortodoxo. Driblou os dirigentes sectários com astúcia e conseguiu embutir na Constituição um artigo que garantia a liberdade religiosa no país, favorecendo pais e mães de santos nos terreiros.
No plano literário, escreveu, durante um exílio voluntário na Europa, após o PCB ter tido o registro cassado, uma obra assumidamente stalinista: a trilogia "Os Subterrâneos da Liberdade", em que conta, nos moldes ditados pelo realismo socialista, os bastidores do PCB na clandestinidade e os embates com os adversários de sempre, os trotskistas.
Quando a obra foi publicada, em 1954, Amado já havia se decepcionado com o comunismo. "O desencanto com o stalinismo não começou numa data que se possa fixar", escreve Joselia. "Soou o primeiro alarme quando [ele e sua mulher, Zélia Gattai] visitaram Budapeste em 1949." Com base em informação adiantada pelo próprio autor, no autobiográfico "Navegação de Cabotagem", a estudiosa relata que Amado perdeu a ingenuidade ao tomar conhecimento de que a então recente execução de um líder comunista húngaro fora ancorada em confissão arrancada à base de tortura pela polícia política formada pelos mesmos agentes dos tempos da ocupação nazista.
Não foi com surpresa, portanto, que em 1956 Amado tomou conhecimento do relatório Khruschóv, em que o líder soviético denuncia os crimes de Stalin, morto em 1953. O escritor não afrontou publicamente o comunismo, como se sabe, mas desde então se afastou da militância e, se não renegou a obra, tachou-a de sectária, desencorajando um projeto para levá-la ao cinema.
A guinada viria em 1958, com "Gabriela, Cravo e Canela", prosa irreverente, picaresca, solar e lírica, que seria seu maior sucesso comercial e cuja história, vertida para TV e cinema, é conhecida mesmo por quem nunca leu o livro.
Um personagem superexposto, aliás, é sempre um obstáculo para biógrafos. Joselia Aguiar enfrentou o desafio inicial de se debruçar sobre um escritor cuja vida e obra já haviam sido objeto de dezenas de trabalhos e que deixara um esboço autobiográfico. Havia ainda os livros de memória de Zélia e uma biografia de 1961.
Com tanta informação disponível, a jornalista e historiadora poderia ter simplesmente desbastado e organizado o material disperso. Mas ela adicionou dificuldade à tarefa ao fazer quase 120 entrevistas ao longo de sete anos de pesquisa e redação, inclusive nos últimos dois, quando foi curadora da Flip. No período, granjeou a confiança da família Amado.
A garimpagem minuciosa e o filtro rigoroso permitem a correção de informações erradas, que pareciam verdadeiras à custa de tanta repetição. Dizia-se, por exemplo, que os primeiros livros de Amado haviam sido traduzidos para o russo por causa de sua militância. Foi o próprio autor, aliás, o responsável pelo equívoco, ao adiantar a informação, que acabou não se concretizando. Seus livros só chegariam a Moscou na metade do século, quando ele já se tornara um sucesso no Brasil.
"Jorge Amado - Uma Biografia" atesta a estatura do personagem, um dos grandes de seu tempo, que conviveu com seus pares em todos os cantos do mundo, do poeta Pablo Neruda ao filósofo Jean-Paul Sartre. Joselia anota o que há de mais relevante nessa trajetória superlativa, numa linguagem enxuta, vazada em cadência quase sincopada, com fartura de aspas justapostas, que no entanto não diminuem sua voz. Evita a armadilha de exercer a crítica literária, mas seleciona a recepção da obra sem indulgências, abrindo espaço também para quem o considerava seivoso, populista e piegas.
O livro é um porto seguro, a partir do qual, com repertório reabastecido, parte-se para ler, ou reler, Jorge Amado.
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Oscar Pilagallo é jornalista e autor de "História da Imprensa Paulista"
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