- Valor Econômico
A reforma da previdência precisa ser feita, mas nem todos seus efeitos serão benéficos. É a partir da sabedoria de capitalizar sobre as oportunidades de crescimento trazidas pela reforma e de combater suas externalidades negativas que se construirá um país melhor
Em recente artigo publicado no Estado de S. Paulo, "A lacroeconomia de Piketty", 13/7/2019, os economistas Pedro Fernando Nery, Paulo Tafner, e Armínio Fraga fazem uma crítica ácida de um ponto de vista sobre a reforma da previdência ("A quem interessa aumentar a desigualdade?", 11/7/2019 publicado no Valor pelo economista francês Thomas Piketty, junto com Marc Morgan, Amory Gethin e Pedro Paulo Zahluth Bastos.
No artigo inicial, Piketty e seus co-autores argumentam que a reforma da previdência, na versão proposta pelo governo e na versão aprovada pela Câmara tornará o Brasil um país ainda mais desigual. Os autores observam que 91% da economia da reforma está concentrada na assistência social e no regime geral, onde 90% dos trabalhadores recebem até 2 salários mínimos. O artigo não traz nenhuma novidade do ponto de vista da análise dos dados, mas explica de forma bastante didática que a reforma vai "atrasar e até inviabilizar a aposentadoria de milhões de brasileiros pobres, com custos imediatos para a igualdade social. É justo afirmar que, da forma que foi escrito e que repercutiu, o artigo seja talvez o ataque mais contundente contra a Reforma da Previdência publicado até agora por um grupo de acadêmicos, tendo quebrado a aparência de quase-unanimidade em favor da reforma entre economistas especializados no assunto. Talvez isso explique em parte a virulência das críticas ao seu ponto de vista.
Nery, Tafner e Fraga prometem derrubar o argumento de Piketty e seus co-autores de duas formas: apontando supostos "erros" e "equívocos factuais" no texto e atacando a credibilidade do economista francês.
No entanto, apesar de afirmar que o texto do Piketty estaria repleto de erros factuais, Nery, Tafner e Fraga apontam somente um: a descrição equivocada das regras atuais de aposentadoria. Trata-se de seguinte frase do artigo: "Nas regras atuais, a primeira alternativa para aposentadoria é somar um tempo mínimo de contribuição (30 anos para mulheres e 35 para homens) com sua idade para alcançar um período de 86 anos para mulheres e 96 para homens, que aumentará a cada dois anos até chegar à soma 90/100 em 2027." Acertadamente, Nery, Tafner e Fraga apontam que a fórmula 85/95 trata do cálculo do benefício, não da elegibilidade para conseguir a aposentadoria. Sendo que o que os três tratam como um erro capital deveria ser mais razoavelmente caracterizado como uma imprecisão no texto. Isso por que no mesmo parágrafo em que trata da regra 85/95 Piketty e co-autores destacam como desvantagem das regras atuais o "fator previdenciário," usado para reduzir o valor do benefício. Mais do que isso, no parágrafo seguinte, os autores diferenciam entre aposentadoria parcial e aposentadoria integral. Fica bastante claro, pelo contexto da frase apontada como erro por Nery, Tafner e Fraga, que os autores estavam se referindo aos requisitos da aposentadoria integral quando escreveram "a primeira alternativa para aposentadoria."
Uma pequena mudança no texto teria garantido mais clareza. Mas entre uma defeituosa redação e as alegações de "equívocos factuais que beiram o constrangedor" feitas por Nery e seus co-autores há uma grande diferença. Ainda mais quando se trata somente de uma única frase que poderia ter sido facilmente consertada com a adição de uma só palavra.
Mais grave que o exagero em relação aos supostos erros do artigo me parece a tentativa de atacar a credibilidade do autor francês através da difamação das suas obras e linha de pensamento. Nery e co-autores identificam Piketty como autor de "O Capital no Século XXI, no qual há precioso zelo por análises de séries históricas, muita contabilidade, e pouca economia." Trata-se obviamente de um ataque descabido. Paul Krugman, vencedor do Prêmio Nobel em Economia, descreveu a mesma obra como sendo "o livro de economia mais importante do ano e talvez da década." Robert Solow, outro vencedor do Nobel reconhecido pelo seu trabalho na teoria do crescimento econômico, descreveu o livro como sendo uma "nova e importante contribuição" a sua área de estudo.
Nery e seus co-autores alegam que a confusão feita por Piketty em relação às regras da aposentadoria "é há muito difundida por economistas da Unicamp." Esse comentário, cujo único objetivo parece ser tentar associar Piketty a uma escola de pensamento que não tem nenhuma ligação com a sua obra ou formação acadêmica, denota o infeliz sectarismo que afeta a discussão de reformas econômicas imprescindíveis para o país. Para economistas liberais, qualquer argumento de alguma forma apoiado por economistas ligados à Unicamp é patentemente errado; para economistas da Unicamp, qualquer argumento da Escola de Chicago deve ser rebatido.
É bem paradoxal ler no último parágrafo de Nery e co-autores: "alguém 'lacra' quando faz afirmações de efeito, que geram curtidas fáceis de sua bolha, mas sem profundidade. A escolha por lacrar implica a renúncia à discussão séria." Me parece que a crítica ao ponto de vista formulado por Piketty sofre justamente desse diagnóstico. Nem o suposto erro na descrição das regras de aposentadoria, nem a referência à Unicamp, nem frases de efeito ("terrivelmente desinformado", "alarmismo descabido", "disparate tão alienígena em nosso debate que beira o delírio", etc.) surtiram efeito em derrubar o argumento central do Piketty: a reforma da previdência irá aumentar a desigualdade. Isso não quer dizer que o argumento de Piketty não deva ser questionado, e muito menos que uma reforma da Previdência nos moldes da que foi proposta pelo Paulo Guedes e aprovada no Câmara não deveria acontecer.
A meu ver, uma crítica justa e sincera deveria ser esta: independentemente do impacto sobre a desigualdade social, o Brasil precisa garantir seu equilíbrio fiscal através de uma reforma da previdência. Uma reforma da previdência robusta do ponto de vista da economia, necessária e viável de ponto de vista político, inevitavelmente irá resultar num crescimento da desigualdade por conta da composição atual do gasto previdenciário. Ela precisa ser feita mesmo assim. Se trata nada mais e nada menos que escolher entre uma sociedade mais igualitária, mas cada vez mais empobrecida por conta de desequilíbrios estruturais, e uma sociedade menos igualitária, mas mais rica e com boas perspectivas para crescimento.
Mesmo sendo essa a conclusão mais razoável desse debate, o impacto da reforma sobre a igualdade social precisa ser reconhecido, cautelosamente estudado e vigorosamente mitigado. Sendo já uma das sociedades mais desiguais do planeta, o Brasil não pode simplesmente tolerar, em nome do desenvolvimento econômico, níveis crescentes de desigualdade sem estratégias de médio e longo-prazo para combatê-la. A reforma da previdência precisa ser feita o quanto antes, mas nem todos seus efeitos serão benéficos para a sociedade. É a partir da sabedoria de capitalizar sobre as oportunidades de crescimento trazidas pela reforma e de combater suas externalidades negativas que poderá construir-se um Brasil melhor.
*Andrei Roman é CEO do Atlas Político.
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