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Talvez eu tenha sido o cineasta mais ‘chanchadeiro’ do Cinema Novo
O Cine Academia é um clube de cinema criado pela Academia Brasileira de Letras, em parceria com a Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM), e com o apoio do Grupo Itaú de Cinemas. No ano passado, quando foi inaugurado, o Cine Academia exibiu filmes de Mário Peixoto, Humberto Mauro e Nelson Pereira dos Santos. Agora, a partir deste mês de março, promove um ciclo chamado “Este mundo é um pandeiro”, nome de um clássico da comédia carioca, que acabou servindo também como título de um livro sobre “a chanchada de Getúlio a JK”, obra do ensaísta, crítico e curador do ciclo Sérgio Augusto.
O primeiro filme do novo ciclo, exibido na semana passada, foi “Carnaval Atlântida”, de 1952, dirigido por um dos craques da chanchada, José Carlos Burle. Um filme com grandes estrelas do gênero como Oscarito, Grande Otelo, Eliana, Cyll Farney, José Lewgoy e Maria Antonieta Pons, a inesquecível atriz e rumbeira hispano-americana.
A palavra “chanchada”, que nomeia genericamente aquela série de comédias musicais de grande sucesso popular, produzidas no Rio de Janeiro, entre meados dos anos 1940 e fins dos 50, era uma adaptação abrasileirada e pejorativa da italiana “cianciata”, gíria romana para baixa qualidade, uma “conversa jogada fora”. Na época de ouro da chanchada, realizadores e técnicos do cinema italiano se encontravam em São Paulo, contratados pela Vera Cruz, companhia financiada por um Matarazzo para elevar o nível do cinema brasileiro com “filmes sérios”. Os ítalo-paulistas acabaram se tornando os principais suspeitos pela classificação pejorativa das comédias cariocas.
As chanchadas foram sempre maltratadas pela crítica em geral, relegadas ao último plano do cinema mundial como total porcaria. Alguns jornalistas mais finos da época pediam até mesmo que os governos exercessem censura àqueles filmes, diante de sua má qualidade narrativa, técnica e moral. Na melhor das hipóteses, a má qualidade não era devida à formação dos cineastas; para os mais espertos, ela representava a mediocridade da sociedade de onde os filmes saíam e voltavam fazendo tanto sucesso.
Com a distância fria do tempo e a ajuda dos debates depois das projeções, podemos tentar compreender o sucesso popular desses filmes e o desprezo que sofriam das elites culturais do país. Talvez possamos até descobrir valores que nunca foram percebidos por causa do linchamento sistemático que sofriam.
Os cineastas de minha geração, imediatamente posterior àquela, colaboraram, por diferentes motivos, com impedir que a chanchada fosse reconhecida em seu tempo. Às vezes, por motivos nobres, como o da rejeição à reprodução de filmes americanos, musicais ou não, versões capengas de Frank Capra, Billy Wilder ou Vincente Minnelli (Cecil B. DeMille chegou a inspirar um personagem de “Carnaval Atlântida”, um produtor chamado Cecílio B. De Milho). Ou então pela ocupação sistemática das salas com público enorme e fiel, dificultando a distribuição de filmes menos “divertidos”, como os nossos. Mas, na maioria das vezes, as chanchadas eram repudiadas por puro oportunismo crítico.
Assim que comecei a fazer filmes, prestei homenagens discretas, às vezes disfarçadas, às chanchadas que me ajudaram a venerar o cinema. Seja no título de meu episódio em “Cinco vezes favela”, de 1962, seja nos primeiros longas-metragens que fiz a seguir, como “A grande cidade” e “Os herdeiros”. Assim como passei a escancarar essas homenagens em “Quando o carnaval chegar”, “Xica da Silva” e “Chuvas de verão”. Acho que eu talvez tenha sido o cineasta mais “chanchadeiro” do Cinema Novo.
Hoje, não se trata de querer que o cinema brasileiro volte à chanchada, ande para trás em busca de um período perdido por ignorância, pretensão e descuido. Mas que compreendamos o que a chanchada, herdeira do teatro de revista e do rádio, significou para a cultura popular do país. Citado por Sérgio Augusto em seu livro sobre o gênero, lembro a tese do crítico americano Dwight Macdonald, afirmando que “o cinema, malgrado o nariz torcido dos pedantes, repetia em escala planetária o fenômeno teatral da era elizabetana, produzindo espetáculos populares sem a obsessão da posteridade”. Como comentou o próprio Sérgio Augusto, usando uma gíria daqueles anos 1950, “Macdonald acertou na pinta”.
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