Portas fechadas – Editorial | Folha de S. Paulo
Ao ameaçar diplomatas venezuelanos, Bolsonaro abre mão de papel construtivo
A mais recente investida do governo Jair Bolsonaro contra o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, tem tudo para fazer barulho e se mostrar tão estéril quanto as iniciativas anteriores nesse campo.
Na última quinta-feira (5), o Itamaraty abriu caminho para expulsar 17 funcionários venezuelanos que atualmente trabalham em postos diplomáticos no Brasil, avisando as autoridades do país vizinho que serão todos defenestrados se não forem chamados de volta.
Bolsonaro foi um dos primeiros chefes de Estado a reconhecer o líder oposicionista Juan Guaidó como presidente interino do país vizinho, há um ano, e apoiou as sanções econômicas impostas pelos EUA ao regime de Maduro.
Em junho, o mandatário aceitou as credenciais de uma advogada enviada por Guaidó como representante, gesto que se revelou inócuo diante da permanência dos funcionários indicados pelo chavista na embaixada em Brasília.
A medida tomada na semana passada certamente contribuirá para obstruir ainda mais os canais de que o Itamaraty dispõe para dialogar com os venezuelanos. Além disso, e pior, ameaça deixar sem amparo os brasileiros que vivem sob a derrocada do regime.
Embora a embaixada do Brasil em Caracas e os postos estabelecidos em outras cidades permaneçam abertos, ainda não se sabe como serão prestados os serviços de assistência consular.
Alheio aos efeitos práticos da iniciativa, Bolsonaro parece mais interessado no impacto político que ela terá entre seus seguidores mais fiéis e nos pontos que ele poderá ganhar com o presidente americano, Donald Trump, com quem se avistou no sábado (7).
Falar grosso com os venezuelanos, de todo modo, ajuda Bolsonaro a se contrapor a seus rivais na política doméstica, caso notório do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que saiu mais uma vez em defesa de Maduro.
Questionado sobre a situação política no país vizinho, Lula disse que Juan Guaidó merecia estar preso e sugeriu que o fato de Maduro não ter mandado o adversário para a cadeia deveria ser visto como prova do respeito do ditador pelas regras do jogo democrático.
Sobre a violência da repressão aos opositores do regime nos últimos meses, ou sobre as restrições impostas à atuação dos adversários, mais uma vez não se ouviu uma palavra do líder petista.
Lula está afastado do poder, mas sua condescendência com o autoritarismo de Maduro só contribui para fortalecer o chavismo em decadência. Ao dobrar a aposta no confronto e abrir mão de exercer um papel mais construtivo na vizinhança, Bolsonaro acaba por alcançar o mesmo resultado.
Populismo penal – Editorial | Folha de S. Paulo
Projeto que prevê cobrar de preso por estadia no cárcere não é justo nem eficaz
Impor a pessoas encarceradas as despesas decorrentes de sua própria prisão, como prevê projeto do senador Waldemir Moka (MDB-MS), cristalizará na letra da lei a incompetência estatal em oferecer soluções para o caos que acomete o sistema penitenciário.
O déficit no sistema prisional superlotado é de 312 mil vagas, segundo levantamento de 2019. As famílias de presos —a vasta maioria nos estratos mais pobres— já arcam com itens básicos que deveriam ser fornecidos pelo Estado, como produtos de higiene pessoal.
Isso viola o princípio, que data dos primórdios do Iluminismo, de que a pena não deveria se estender aos familiares do condenado.
Aprovado pela Comissão de Direitos Humanos, o substitutivo do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) detalha caminhos tortuosos para essa política pública.
De acordo com o texto, que ainda precisa passar pelo plenário do Senado e pela Câmara dos Deputados, ou o detento dispõe de recursos próprios para pagar pela estadia no cárcere ou terá de aceitar eventual trabalho oferecido pelo estabelecimento prisional.
Na primeira hipótese, a medida se aproxima de uma dupla pena pelo mesmo crime. Na segunda, do trabalho forçado.
Também se prevê que presos provisórios, que representam algo como 34% da população carcerária, arquem com essas obrigações. O dinheiro seria depositado em conta judicial e devolvido em caso de absolvição. Aqui a matéria ganha ares kafkianos, ao cobrar de presos que nem mesmo foram condenados pela lentidão do Judiciário.
Movido a populismo penal, o projeto cria demanda por trabalho em estabelecimentos prisionais —algo que o setor público hoje é incapaz de absorver. Apenas 20% dos presos trabalham, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, e 76% deles não são remunerados ou recebem menos do que três quartos do salário mínimo.
Compreende-se que proposituras do gênero possam seduzir parcelas da sociedade justamente indignadas com a violência ou a corrupção. Entretanto tal endurecimento punitivo está longe de ser política racional de segurança.
Os custos do sistema prisional cairiam com uma estratégia de encarceramento que priorizasse condenados perigosos, buscando penas alternativas para os demais. Nossos presídios superlotados são mais eficientes em fornecer mão de obra para facções criminosas.
A acertada antecipação da vacina contra gripe – Editorial | O Globo
Momento de mobilização em torno do coronavírus deve ser aproveitado para serem feitas outras imunizações
O Ministério da Saúde acerta ao antecipar, para o dia 23 de março, o início da vacinação contra a gripe, que estava prevista para começar apenas em abril. Na verdade, a estratégia está relacionada ao combate à Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2) surgido na China e que se espalha rapidamente pelo mundo inteiro, transformando-se em emergência internacional.
Evidentemente, a vacina não protege contra a Covid 19, mas pode facilitar o trabalho dos profissionais de saúde, tanto do ponto de vista do diagnóstico de pacientes que chegam às unidades com suspeita de terem contraído o coronavírus — à medida que podem descartar etapas na investigação —, quanto do ponto de vista logístico, já que em tese um número menor de pessoas procuraria os hospitais com sintomas de gripe.
As redes pública e privada costumam ficar lotadas no outono e no inverno com pacientes debilitados por doenças respiratórias. Portanto, a antecipação da vacinação contra a gripe poderia desafogar as unidades, deixando-as focadas no atendimento às pessoas com sintomas da Covid-19, doença nova, complexa, e sobre a qual pouco se sabe. O Ministério da Saúde encomendou ao Instituto Butantan 75 milhões de doses da vacina contra influenza.
O plano parece auspicioso, mas, para dar certo, será preciso que a equipe do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, demonstre a mesma agilidade vista nestas primeiras semanas de enfrentamento do coronavírus, em que informação, transparência, coordenação e respeito à Ciência chamam a atenção, contrastando com outros setores do governo Bolsonaro em que ideologias se sobrepõem à Ciência.
Não bastará disponibilizar as doses de vacina nos postos de saúde, pois a realidade tem comprovado que apenas isso não é suficiente, simplesmente porque as pessoas não comparecem. Os índices de vacinação contra a gripe e outras doenças têm ficado abaixo da meta nos últimos anos. O fenômeno ocorre também em outros países, e um dos motivos seria a disseminação de fake news e campanhas antivacina. Daí a importância de informações precisas, para combater a epidemia de mentiras, e de boas estratégias para elevar os índices de vacinação.
Deve-se aproveitar o momento de mobilização, tanto de autoridades de saúde — que vêm trabalhando de forma coordenada, o que é raro no país — e da população, para zerar esse passivo do atraso. Não é concebível que no ano passado o Brasil tenha registrado 796 mortes por H1N1 se existe vacina disponível contra a doença. Da mesma forma, é inadmissível que o sarampo — cujo grau de contágio é maior do que o do coronavírus — avance, enquanto doses da vacina permanecem estocadas nos postos, com risco de perder a validade. No momento em que o mundo vive a ameaça de uma pandemia, o Brasil precisa amadurecer.
É preciso mobilização política constante contra anistia a PMs – Editorial | O Globo
Perdoar esses movimentos ilegais é abrir caminho para que eles se disseminem por todo o país
Na última terça-feira, a Assembleia Legislativa do Ceará aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) estadual que veda a concessão de qualquer tipo de anistia ou perdão a policiais envolvidos em paralisação ou motim — dos 37 deputados presentes, apenas dois votaram contra, e um se absteve. A aprovação do texto enviado pelo governador Camilo Santana (PT) aconteceu dois dias depois do fim do motim de PMs que durou 13 dias e transformou o estado numa terra sem lei.
Segundo o G1, durante a paralisação dos policiais, foram registrados 312 assassinatos no estado, uma média de 24 por dia, praticamente o triplo do período anterior à greve. O motim dos PMs fez com que o Ceará tivesse o fevereiro mais violento desde 2013, contabilizando um total de 456 homicídios em 29 dias.
Se, por um lado, a PEC é um alento para impedir que policiais que desrespeitam a Constituição fiquem impunes, por outro, o problema está longe de ser resolvido. O lobby a favor de corporações de policiais é forte e conta com apoios de peso, como o do próprio presidente Jair Bolsonaro, para quem a paralisação dos PMs no Ceará foi uma greve, e não um motim. Aliás, Antônio Aginaldo de Oliveira, diretor da Força Nacional, enviada ao estado para reforçar a segurança, disse que os amotinados foram “gigantes” e “corajosos”.
Pelo menos duas propostas para anistiar policiais, bombeiros e agentes penitenciários que fazem greve tramitam na Câmara e no Senado. Outros projetos do tipo foram bem-sucedidos no Congresso, onde a bancada da segurança é atuante. Por ora, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, diz que não há ambiente na Casa para pautar anistia a policiais. Antes assim. Mas sabe-se que, na política, os ventos mudam rapidamente.
A Constituição proíbe que policiais militares e civis façam greve. Se alguma dúvida havia sobre isso, foi dirimida pelo STF em abril de 2017, ao julgar paralisação de policiais civis de Goiás. Por 7 votos a 3, os ministros declararam que greve de servidores públicos de órgãos de segurança é inconstitucional.
De fato, não se pode admitir movimento sindical armado. As cenas de amotinados com o rosto coberto, depredando viaturas e agindo como membros de facção, são inaceitáveis. Não custa lembrar que eles são pagos para proteger os cidadãos.
É preciso uma mobilização nacional, não só política, mas também de toda a sociedade, para que esses projetos de anistia não prosperem. Perdoar policiais que se voltam contra a população é a senha para que esses movimentos ilegais se disseminem pelo país, instalando o caos nas ruas. A polícia não pode se transformar em mais um problema de segurança pública.
A deterioração da infraestrutura – Editorial | O Estado de S. Paulo
Os investimentos federais em transporte vêm caindo desde 2012 e a previsão é de que em 2020 recuarão ao patamar de 2001. O dado levantado pela Confederação Nacional da Indústria expõe os efeitos deletérios das más políticas públicas no setor de infraestrutura e a urgência de fomentar condições para atrair o capital privado.
Investimentos em infraestrutura são cruciais para desenvolver a economia e garantir direitos fundamentais à população. Cerca de 100 milhões de brasileiros não têm acesso a esgoto, o que os expõe a toda sorte de moléstias que põem em risco o mais fundamental dos direitos: o direito à vida. Ao mesmo tempo, a precária estrutura de transportes mina a competitividade do agronegócio e da indústria, inviabilizando qualquer perspectiva de desenvolvimento nacional. Do norte ao sul do País, dez em dez empresários podem confirmar o ônus da má logística nacional para a produção e comercialização de seus produtos.
Os custos logísticos no Brasil correspondem a 12,3% do PIB, bem mais do que, por exemplo, nos Estados Unidos (7,8%). De acordo com o Fórum Econômico Mundial, num grupo de 137 países, o Brasil ocupa a 65.ª posição quanto à infraestrutura de transportes. O Banco Mundial estima que o Brasil poderia exportar cerca de 30% mais somente com melhorias logísticas. Os custos do transporte na exportação são maiores que as tarifas do protecionismo, e a rentabilidade dos produtos exportados tem caído consistentemente.
Segundo a InterB, consultoria especializada em infraestrutura, na década de 1980 o estoque de investimentos em infraestrutura representava cerca de 60% do PIB. Hoje corresponde a pouco mais que 35%. Em países desenvolvidos, este estoque responde por algo entre 65% a 85% do PIB. Entre 2001 e 2017, o investimento anual médio em saneamento básico ficou em 0,18% do PIB, quando o ideal seria 0,45%, e o investimento em transporte ficou em 0,67%, bem abaixo do ideal de 2%. Hoje os investimentos públicos e privados em infraestrutura totalizam cerca de 1,8% do PIB, muito aquém dos 4,15% estimados para elevar, em duas décadas, o estoque de infraestrutura ao nível dos anos 80 – o mínimo necessário para garantir a competitividade do setor produtivo e a oferta de serviços básicos à população.
Mas este crescimento quantitativo não virá do setor público, que, na melhor das hipóteses, pode qualificar os seus investimentos. Há anos os investimentos públicos são devorados pela Previdência e o custeio do funcionalismo. Quase 60% dos gastos da União se destinam a pensões e aposentadorias, quando o padrão mundial gira entre 20% e 25%. E os gastos não param de crescer, e os investimentos de encolher – tendência acelerada com a recessão. Em 2012, a União chegou a investir R$ 35,6 bilhões em transporte. Em 2020, serão apenas R$ 7,9 bilhões.
Além de cada vez menores, os investimentos do Estado são cronicamente ruins, como testemunha o festival de obras paradas no País. Segundo o TCU, das 38 mil obras federais, cerca de 14 mil (38%), totalizando R$ 144 bilhões em contratos, estão paralisadas, mormente por deficiências na elaboração e avaliação dos projetos. Isso sem falar do volume de recursos drenados pelos propinodutos dos quais se tem uma pálida ideia por operações como a Lava Jato.
Tudo isso escancara a necessidade de avançar a agenda contra a corrupção e pressionar o governo e o Parlamento por reformas que viabilizem as contas públicas. Além disso, eles precisam robustecer e acelerar os planos de concessões e privatizações, com regras equilibradas que garantam a um tempo rentabilidade e segurança aos investidores, e qualidade a custos razoáveis aos usuários. O maior fluxo de capital privado dará algum respiro ao poder público para eleger melhor suas prioridades e investir justamente nas áreas mais vulneráveis – isto é, cujo retorno é menos palpável e vem a longo prazo –, mas essenciais, como saúde e educação.
A ruptura digital e a democracia – Editorial | O Estado de S. Paulo
Qual o impacto da tecnologia sobre a democracia? Ela debilitará ou fortalecerá as principais instituições democráticas? Buscando respostas, o Pew Research Center consultou quase mil peritos em tecnologia, entre empresários, políticos, inovadores, cientistas e ativistas nos Estados Unidos. Quase 50% acreditam que na próxima década a tecnologia debilitará os aspectos centrais da democracia, enquanto 33% creem que ela os fortalecerá e 18% não vislumbram mudanças significativas.
“Aos anos de entusiasmo desenfreado sobre os benefícios da internet seguiu-se um período de choque tecnológico à medida que os usuários exploram a velocidade, o alcance e a complexidade da internet para propósitos nefastos”, ponderam os pesquisadores. “Nos últimos quatro anos – período das decisões do Brexit, das eleições presidenciais norte-americanas e várias outras –, a ruptura digital da democracia se tornou uma preocupação dominante.” A principal apreensão é com os impactos sobre os equilíbrios de poder e a confiança nas instituições.
Muitos creem que os poderosos se servirão da tecnologia para concentrar e legitimar seu domínio sobre as massas. Nessa perspectiva, os sistemas de vigilância e manipulação das redes sociais, combinados com a falta de fluência digital, produzem um público alienado e vulnerável a guerras de informação e engenharias eleitorais. A pressão sobre o jornalismo independente dos vídeos deep-fakes e outras táticas de desinformação tendem a atrofiar o pensamento crítico, multiplicando o tribalismo midiático – uma tendência intensificada pelo modo como as grandes empresas de tecnologia, voltadas por natureza ao lucro e não ao bem comum, exploram os dados dos usuários em favor de seu monopólio.
São vetores que tendem a desgastar a confiança nas instituições democráticas, desencadeando uma espiral de descrença e desespero que precipita a opinião pública na oscilação entre a apatia e o extremismo. Conforme a estudiosa de Harvard e do MIT Judith Donath, neste cenário “a democracia ficará em frangalhos” e os desastres criados ou facilitados pela tecnologia dispararão a “velha resposta” – a virada do povo movido pelo medo ao autoritarismo.
Mas há quem acredite que as pessoas são capazes de se adaptar e vencer esses desafios por meio da própria tecnologia. A inovação é inevitável, mas “há uma longa história da introdução de novas formas midiáticas criando um caos inicial e depois sendo assimiladas na sociedade como forças positivas”, disse Paul Saffo, pesquisador da Stanford MediaX. “Isso ocorreu com a imprensa no início dos anos 1500 e com os jornais há um século. Novas tecnologias são como animais selvagens – leva tempo para as culturas os domesticarem.”
Esta domesticação exige esforço no engajamento de educadores e gestores públicos para o letramento digital do público e o aprimoramento da ética entre os profissionais da tecnologia. Neste cenário, projeta Donath, “prevalece a democracia pós-capitalista. Oportunidades justas e equitativas são reconhecidas para o benefício de todos. A riqueza da automação é compartilhada entre toda a população. Investimentos em educação fomentarão o pensamento crítico e a criatividade artística, científica e tecnológica. Novos métodos forjarão cada vez mais a democracia direta – a Inteligência Artificial traduzirá a preferência dos eleitores em políticas públicas”.
O balanço sugere que a médio prazo as possibilidades estão abertas. A qualidade mesma das críticas ao abuso da tecnologia é prova de que é possível conceber e concretizar o seu bom uso em favor da democracia. Mas é certo que isso não acontecerá por um processo de evolução natural espontâneo. No horizonte imediato, o conflito de interesses e opiniões na arena civil deve se intensificar. Muito mais do que gozar os frutos das tecnologias nascentes, este é um tempo de cultivar suas raízes e defendê-las das ambições mais perversas.
A luta contra a dívida pública – Editorial | O Estado de S. Paulo
O conserto das contas públicas apenas começou e ainda vai dar muito trabalho, mas o governo está conseguindo frear o endividamento, um dos principais fatores de risco da economia brasileira. O passivo ainda é muito alto, mas a dívida bruta do governo geral, depois de ter chegado muito perto de 80% do Produto Interno Bruto (PIB), vem sendo mantida abaixo desse patamar, mesmo quando oscila para cima, como em janeiro. A melhora é em boa parte atribuível à redução da carga de juros, possibilitada pela ação do Banco Central (BC). Com juros menores e com o esforço de ajuste realizado pelo Executivo, os compromissos têm ficado menos pesados. Apesar disso, a proporção ainda é muito maior que a observada na maioria dos emergentes, mais próxima de 50%. Mas o quadro seria muito pior, se a tendência observada até há alguns meses fosse mantida. O número de janeiro, 76,1% do PIB, aparece nas contas consolidadas do setor público, elaboradas pelo Banco Central (BC).
Pelas novas estimativas do Tesouro Nacional, a dívida do governo geral estará em 77,9% do PIB no fim deste ano, ficará em 78,2% em 2021 e atingirá o pico em 2023, com a proporção de 79,4%. Em seguirá deverá recuar, atingindo 72,5% em 2029. Esse débito é do conjunto formado pelas administrações da União, dos Estados e dos municípios. A maior parte corresponde aos compromissos do poder central.
Será preciso mais para pôr a contas públicas em ordem, mas houve algum avanço em janeiro. Segundo o Tesouro, o governo central fechou o mês com um superávit primário de R$ 44,12 bilhões, 41% maior, descontada a inflação, que o de janeiro de 2019. Isso se explica principalmente por um ganho de receita acima do previsto. É cedo para dizer se esse ganho foi excepcional ou se representa uma nova tendência, advertiu o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida. Além disso, persistem algumas das mais sérias dificuldades, como a rigidez das despesas obrigatórias. Essas despesas – incluídos benefícios previdenciários e folha de pessoal – consumiram 94% da receita líquida (descontadas as transferências a Estados, municípios e regiões).
O superávit primário, no entanto, ocorre apenas em algumas fases do ano. Em 12 meses, o resultado primário, isto é, sem a conta de juros, foi um déficit de R$ 83,7 bilhões, equivalente a 1,11% do PIB. O limite para o governo central, neste ano, é um déficit primário de R$ 124,1 bilhões, correspondente a 1,70% do PIB.
Os técnicos do Tesouro calculam o resultado primário como diferença entre receitas e despesas. Os economistas do BC, responsáveis pelas contas consolidadas do setor público, determinam o resultado com base nas necessidades de financiamento. Por isso seus números podem divergir daqueles indicados pelo Tesouro. Segundo o BC, o governo central conseguiu em janeiro um superávit primário de R$ 45,47 bilhões. Em 12 meses o saldo ficou no vermelho em R$ 79,04 bilhões.
A explicação é a mesma conhecida há muito tempo. Com aperto de gastos e aumento de arrecadação, o Tesouro obteve superávit de R$ 136,59 bilhões, mas esse dinheiro sumiu no buraco formado pelo déficit da Previdência. Com o déficit previdenciário de R$ 214,78 bilhões nos 12 meses terminados em janeiro, o governo central ficou no vermelho. Acrescentadas as contas de Estados, municípios e de algumas estatais, o resultado primário do setor público em 12 meses foi um déficit de R$ 52,49 bilhões.
Somando-se a isso a despesa com juros, chega-se ao resultado nominal do setor público, um buraco de R$ 436,08 bilhões, equivalente a 5,98% do PIB. Essa relação foi de 6,36% nos 12 meses até novembro e baixou em seguida. Há uma melhora, mas ganhos bem mais sensíveis poderão ocorrer nos próximos anos, com os efeitos da reforma da Previdência e com algum ganho de flexibilidade orçamentária. A rigidez do Orçamento dificulta o controle do gasto e é um entrave à racionalidade da administração pública.
Agenda Brasil-EUA – Editorial | Valor Econômico
Concessões de lado a lado são parte do jogo e pode-se afirmar que tem sido um jogo de ganha-ganha no campo econômico e comercial
Em depoimento à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, na quinta-feira passada, o chanceler Ernesto Araújo disse que uma das características da atual política externa é “olhar para frente” e não mais “para o lado”. Nos governos anteriores, segundo o chefe do Itamaraty, o Brasil ficava sempre à espera da liderança dos outros e caminhava apenas em grupo, independentemente de suas convicções. “Hoje nós olhamos para frente com nossas ideias”, afirmou Araújo, emendando em seguida: “E para cima”.
O ministro esclareceu que se referia a Deus, à dimensão espiritual, mas não escapou da ironia dos senadores. Para cima, questionou imediatamente um deles na audiência pública, não quer dizer os Estados Unidos? Não há, afinal, um alinhamento automático entre o Palácio do Planalto e a Casa Branca? De certa forma, o governo Jair Bolsonaro já precisa arcar com a pecha de submisso ao presidente Donald Trump. No entanto, convém analisar com frieza a dinâmica recente das relações Brasília-Washington.
Nos últimos 15 meses, o Brasil obteve avanços e vitórias. A reabertura do mercado americano para a nossa carne bovina in natura e o acordo de cooperação militar conhecido pela sigla RDT&E, que permitirá às empresas brasileiras de defesa ter acesso a um fundo homônimo de quase US$ 100 bilhões anuais para o desenvolvimento conjunto de equipamentos de alta tecnologia na indústria bélica, são notícias animadoras.
Há que se destacar ainda as vantagens para o Brasil do acordo de salvaguardas tecnológicas, firmado com os Estados Unidos em março do ano passado e recém-promulgado, depois de tramitação no Congresso Nacional. Graças a ele, a base aeroespacial de Alcântara (MA) poderá ser usada para lançamentos comerciais, com a promessa de ganhos bilionários. Apesar de ter sido inicialmente preterido pela Argentina na corrida por uma vaga na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil também conseguiu apoio prioritário da gestão Trump à sua entrada na entidade, que é uma obsessão do atual governo.
Obviamente, essas conquistas não vieram de graça. O país se absteve do tratamento especial e diferenciado em negociações futuras no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Aumentou as cotas para importações de trigo e de etanol com tarifa zero, o que beneficia primordialmente os produtores dos Estados Unidos. Cidadãos americanos ficaram isentos unilateralmente da necessidade de visto de turista, rompendo a política brasileira de reciprocidade na área.
Concessões de lado a lado são parte do jogo e, como já se disse, alguém tem que estender a mão primeiro. O Brasil entregou mais no início, os Estados Unidos demoraram um pouco mais para ceder, mas pode-se afirmar que tem sido um jogo de ganha-ganha no campo econômico e comercial. A perspectiva de venda de 75 aeronaves A-29 Super Tucano para o Comando de Operações Especiais e a adesão brasileira à Iniciativa América Cresce, voltada ao fortalecimento da infraestrutura nos países latino-americanos, reforça essa percepção.
É exagero afirmar que as relações bilaterais foram negligenciadas em períodos anteriores, mas certamente ficaram abaixo do potencial - mesmo com a excelente química pessoal de Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton, de Luiz Inácio Lula da Silva e George W. Bush.
Acenos mútuos, proximidade política e coordenação de posições comuns em fóruns internacionais são bem-vindos. O apoio do Brasil à retórica “antiglobalista” da administração Trump ou o engajamento do Itamaraty na iniciativa em defesa da liberdade religiosa não deveria surpreender num governo com a legitimidade das urnas para adotar esse tipo de postura.
Que não se confunda, entretanto, essa promissora parceria econômico-comercial com atitudes desnecessárias: declarações de endosso à reeleição do atual ocupante da Casa Branca, uso de boné em apoio à campanha “Trump 2020”, frases que minimizam as necessidades de brasileiros indocumentados em território americano.
Muito menos com ações que fogem da nossa tradição diplomática e não representam a boa defesa dos nossos interesses: a transferência da embaixada em Israel para Jerusalém, possíveis incursões militares na vizinhança, negação das mudanças climáticas e ausência de protagonismo na área ambiental. O Brasil também deve se blindar contra pressões no 5G. Bolsonaro melhorou as relações do país com os Estados Unidos, e isso pode trazer inúmeros benefícios. Não é preciso perder tempo, energia e estoque de simpatia no mundo em iniciativas que só geram críticas sobre um indesejável alinhamento automático.
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