- Folha de S. Paulo
Um século depois da frase de Gilberto Amado, os problemas reaparecem em nova roupagem
“No Brasil, desaforo é que é combate. Luta política é descompostura.” A afirmação é de Gilberto Amado, em “Presença na Política”, de 1958. Ele se referia aos anos 1920, quando chamava a atenção dos colegas congressistas para os graves problemas do processo orçamentário do país —mas era solenemente ignorado.
Suas denúncias não tinham efeito mesmo que reproduzisse o diagnóstico alarmista da Missão Inglesa de 1924, que apontava dois problemas principais: as “caudas orçamentárias” (abertura de créditos adicionais para cobrir despesas sem previsão de receita, aprovadas por parlamentares nos últimos dias de votação) e o endividamento externo brutal de alguns estados. A questão a ser enfrentada era como impedir que o Legislativo desfigurasse o Orçamento, em processos tipo tragédia dos comuns que discuti aqui.
Parte dos problemas foram resolvidos com a reforma constitucional de 1926, proibindo a inclusão de emenda sem previsão de receita. E seguiram-se outras medidas: a lei 4320/1964, a Constituição de 1988, e a LRF (lei 101/2000). Um século depois, os problemas reaparecem em nova roupagem. Vários estados estão quebrados, e o equacionamento do problema é federal, o que equivale a dizer que passa pela socialização de custos.
Mas não se deve pensar em duas agendas, a do Executivo e a do Legislativo. Quando há governo de coalizão estável e coordenação forte, alinham-se os interesses, malgrado os incentivos distintos com que se deparam Executivo (que é premiado eleitoralmente pelo controle da inflação e emprego) e Legislativo (que é premiado pelos benefícios que trazem para suas bases de sustentação política). Os partidos da base beneficiam-se do sucesso do governo de que fazem parte, embora sempre exista incentivos para o comportamento oportunista de parlamentares. Se há coalizão estável e coordenação forte, os parlamentares pensam em termos de fluxo de benefícios que poderão auferir ao longo do mandato.
Quando não há alinhamento de interesses, instaura-se um curto-prazismo generalizado, pelo qual a preocupação com a sustentabilidade fiscal diminui e os parlamentares focam o ganho imediato.
O conflito em curso sobre o controle do Orçamento reflete um quadro criado pela ausência de coalizão estável. Trata-se de um dilema criado pelo governo ao atar as próprias mãos: a rejeição à velha política de montagem de coalizões formais de apoio foi uma das razões do sucesso eleitoral do presidente. Tem que fingir que a rejeita mesmo quando a pratica.
O país fez progressos na área orçamentária em cem anos, mas o discurso político como descompostura e desaforo adquiriu inédita estridência.
*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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