Só análise técnica deve determinar queda de juros
O Globo
Não fosse a pressão de Lula sobre BC,
contração na atividade e no crédito poderia justificar início de cortes
A pressão do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva e de seus ministros para que o Banco Central (BC) reduza a Selic dos
atuais 13,75% já encontra eco no mercado financeiro. Diversos gestores têm
feito investimentos apostando em juros mais baixos antes do previsto (fim do
ano). Parte do mercado prevê uma freada brusca da economia. O PIB cresceu 2,9%
em 2022, mas houve contração de 0,2% no quarto trimestre, sinal de
desaceleração.
Outro sinal relevante vem do mercado de crédito privado. Depois de quebrar recordes no ano passado, as emissões de dívidas corporativas despencaram 64%, de R$ 18,7 bilhões em janeiro para R$ 6,6 bilhões em fevereiro, como revelou reportagem do GLOBO. O crédito bancário também está em contração, diante da dificuldade de arcar com o custo do dinheiro, determinado pela Selic.
Se o cenário de queda nos investimentos e
no consumo desaguar em estagnação, as pressões inflacionárias diminuirão,
abrindo espaço para a queda mais rápida dos juros. Por enquanto, a maioria dos
analistas não aposta nessa hipótese. O último Boletim Focus, do BC, prevê que o
PIB crescerá 0,85%, a Selic fechará o ano a 12,75%, e o primeiro corte ocorrerá
apenas em novembro. Mas a expectativa de que os juros possam começar a ser
cortados mais cedo, antes apenas um desejo de Lula, começa a ganhar corpo entre
economistas.
A confirmação de um PIB próximo de zero
certamente aumentará a pressão sobre o presidente do BC, Roberto Campos Neto.
Como toda pressão política, ela vem embalada em argumentos nem sempre
convincentes, embora sempre convenientes. O governo alega que a inflação
brasileira fechou 2022 abaixo da americana e da europeia, mas esquece que são
inflações de características distintas. Excluindo os itens voláteis, como
energia ou alimentos, o núcleo da inflação brasileira está em 8,7%, ante 6% nos
Estados Unidos e 5% na Zona do Euro, segundo análise recente do FMI. Isso
também precisa ser levado em consideração na decisão do BC sobre a Selic.
Dois fatores alimentam as expectativas de
inflação: o desequilíbrio nas contas públicas e a incapacidade de crescimento
robusto e sustentado. Era com isso que o governo deveria se preocupar. O
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fez bem ao antecipar para este mês a
apresentação de uma nova regra fiscal. Se ela for confiável, o governo
imediatamente colherá previsões menores de inflação, pois os agentes econômicos
estarão convencidos de que os gastos inflados da União não aquecerão
artificialmente a demanda e elevarão os preços.
Noutra frente, o governo precisa formar
logo uma base de apoio no Congresso para aprovar a reforma tributária. A
simplificação na cobrança de impostos livraria o país de amarras que atrasam o
crescimento. É óbvio que nada seria instantâneo, mas isso também ajudaria a
promover a reversão de expectativas. Nesse cenário virtuoso, o BC certamente
teria espaço para iniciar o ciclo de redução de juros. Na verdade, esse espaço
existiria naturalmente, não fossem a pressão e as declarações de Lula sobre
economia, que interferem nas expectativas. Os responsáveis pela política
monetária têm o dever de combater a inflação com base em análises técnicas
independentes. Em vez de pressioná-los, o governo precisa começar a governar.
Indicação para a presidência da Previ
ofende a lei e o bom senso
O Globo
Governo Lula pôs no topo do maior fundo de
pensão da América Latina sindicalista sem nenhuma experiência
Causou indignação a indicação do
sindicalista João Luiz Fukunaga para a presidência da Previ, o cobiçado fundo
de previdência dos funcionários do Banco do Brasil (BB). Com ativos de R$ 250
bilhões e 200 mil cotistas, a Previ é o maior fundo de pensão da América
Latina. Falta a Fukunaga, porém, qualquer familiaridade com o setor para
exercer a função. A Superintendência Nacional de Previdência Complementar
(Previc) exige para o posto a experiência de três anos em cargo similar.
Fukunaga não tem um dia sequer em nenhuma função parecida.
Formado em História, ele começou a carreira
como professor no ensino médio. Entrou para o BB como escriturário em 2008.
Desde então, dedicou a maior parte do tempo a atividades sindicais. Em 2012,
foi secretário do Sindicato dos Bancários de São Paulo, depois coordenador
nacional da Comissão de Negociação dos Funcionários do BB. Sua ocupação mais
recente foi auditor sindical do BB. Levantava informações para a negociação
salarial entre o banco e os funcionários. Sua ascensão à presidência da Previ
contou, de acordo com relatos, com apoio do ex-tesoureiro do PT João Vaccari
Neto, condenado e preso por lavagem de dinheiro na Operação Lava-Jato.
No roteiro insólito que levou Fukunaga ao
topo da Previ, chama a atenção a rapidez. Ele foi indicado ao cargo em 24 de
fevereiro. No mesmo dia, o conselho deliberativo aprovou seu nome. A
habilitação aconteceu já no dia 27. No dia seguinte, assumiu a presidência, com
mandato até 2026. É verdade que o regulamento da Previ não estabelece prazo
mínimo para habilitar um indicado ao cargo — o máximo são 30 dias —, mas é
evidente que análises-relâmpago atropelam critérios técnicos.
As manobras para sacramentar a nomeação não
passaram despercebidas. A Federação das Associações de Aposentados e
Pensionistas do Banco do Brasil (Faabb) pediu esclarecimentos à Previc e à
Previ sobre a escolha de Fukunaga. O grupo Mais, que representa funcionários
aposentados do BB, endossou as críticas ao dizer que a Previc feriu o
regulamento ao aprovar a indicação sem a experiência comprovada de no mínimo
três anos.
A escolha de Fukunaga repete um padrão nos
governos petistas. Marca a volta de um sindicalista ao comando da Previ (o
último a ocupar o posto foi Sérgio Rosa, entre 2003 e 2010). Não haveria
problema se, além de sindicalista, o indicado tivesse o conhecimento e a
experiência exigidos para a função. O uso político do cargo certamente
resultará em prejuízos ao fundo multibilionário. O passado traz diversos
exemplos disso. Basta lembrar que a Previ fez aportes de R$ 180 milhões na Sete
Brasil, empresa criada no papel para fornecer sondas à Petrobras que naufragou
com as ambições petistas.
Com pouco mais de dois meses de mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já mostrou nos casos da Petrobras e do BNDES que restrições legais para ele não são obstáculo a indicações políticas. O caso da Previ, porém, chegou a um ponto que parece escárnio.
Subsídios temerários
Folha de S. Paulo
Experiência recomenda rejeição à proposta
de retomar empréstimos favorecidos do BNDES
É preocupante o teor da entrevista
concedida à Folha por Nelson Barbosa, diretor de Planejamento do
BNDES, dando conta que o governo petista buscará novamente oferecer
subsídios para empréstimos a setores selecionados.
A prática, levada ao paroxismo no governo
Dilma Rousseff (PT), produziu danos à economia. Entre 2008 e 2014, a União
repassou ao BNDES cerca de 9,5% do PIB em títulos, e o banco usou os recursos
para conceder financiamentos com taxas abaixo das de mercado.
A diferença entre o custo de captação e o
dos empréstimos, que podia chegar a 7%, na prática significava uma
transferência de dinheiro público para as empresas beneficiadas —algumas das
quais, como a JBS, se tornaram gigantes mundiais e enriqueceram seus
acionistas.
Não houve, entretanto, benefícios para a
sociedade. A esperada escalada de investimentos não aconteceu. Com o
esgotamento da capacidade orçamentária do Tesouro Nacional, houve um
progressivo ajuste a partir do governo Michel Temer (PMDB), com diversas iniciativas.
Os recursos passaram a ser devolvidos
antecipadamente para o Tesouro; foi aprovada no Congresso a lei que criou a TLP
(taxa de longo prazo), uma referência para o custo dos empréstimos do BNDES sem
subsídios; o banco se transmutou de financiador de grandes conglomerados para
estruturador de projetos.
Em paralelo, e não por acaso, o mercado de
capitais se expandiu fortemente. As empresas de alguma dimensão passaram a
buscar recursos diretamente com emissões de debêntures e outros títulos —uma
evidência de que esse mercado pode se sustentar sozinho.
Barbosa agora prega mudanças como a revisão
da TLP, a volta de subsídios e a ampliação dos empréstimos do banco, o que
exigirá busca de liquidez em mercado. A proposta é que isso ocorra por meio de
um novo título isento de Imposto de Renda, a Letra de Crédito de
Desenvolvimento (LCD), como já são as letras imobiliárias (LCI) e do setor
agrícola (LCA).
Embora sempre se possam aperfeiçoar
mecanismos de captação, não convém que o BNDES tenha um papel particular nisso,
pois o mercado como um todo seria distorcido. O melhor, na verdade, seria
equalizar a tributação de todos os instrumentos financeiros de renda fixa, não
aumentar as possibilidades de isenção.
Quanto aos subsídios e à escolha por Brasília
de setores a recebê-los, trata-se de caminho temerário, mais ainda à luz da
experiência histórica fracassada, que não se limita à ruína do governo Dilma.
Até é possível argumentar que certas áreas,
como saneamento, possam gerar retornos sociais que justifiquem recursos
públicos. Se este for o caso, o que em si é controverso, melhor que a decisão
política seja explicitada no Orçamento.
Visto revisto
Folha de S. Paulo
Isenção não alavancou o turismo, ainda
medíocre dados os atrativos do Brasil
A decisão do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) de reverter
isenções de vistos de entrada no país para visitantes da
Austrália, do Canadá, dos EUA e do Japão corrige mais uma distorção da aloprada
política externa do mandatário anterior. Volta a prevalecer o consagrado
princípio da reciprocidade.
Introduzida
unilateralmente por Jair Bolsonaro (PL) em 2019, a dispensa do passe
de entrada em território nacional contradizia a política tradicional do Itamaraty
de impô-lo a cidadãos dos países que exigem vistos de brasileiros.
O então presidente adotou a medida às
vésperas de viajar para encontrar-se com seu aliado americano Donald Trump.
Justificou-se o ato com projeções fantasiosas de aumento no embarque de
turistas de nações ricas para o Brasil.
Havia mais subserviência do que cálculo na
ação. O fluxo de visitantes demonstra a vacuidade das projeções bolsonaristas:
até houve incremento de 12% entre 2018 e 2019, de 391 mil turistas para 439
mil, mas em 2022 vieram apenas 355 mil norte-americanos, menos do que antes da
pandemia.
Do Japão aportaram por aqui no ano passado
meros 16,8 mil visitantes, contra 59 mil em 2018.
Revogar a isenção de vistos não deverá,
assim, afetar a visitação por estrangeiros, de resto anêmica. Há uma
desproporção evidente entre o prestígio da cultura e da natureza brasileiras e
a corrente de turistas que o país consegue receber.
A conta turismo, que coteja gastos de
brasileiros no exterior com os de estrangeiros aqui, não deixa dúvidas. Neste
século, com exceção de 2003 e 2004, o saldo sempre foi negativo, com déficits
de US$ 1,4 bilhão a US$ 18,7 bilhões (a variação se deve a fatores flutuantes
como a taxa de câmbio).
O fim da obrigatoriedade do visto foi uma
tentativa de solução fácil para o fraco turismo num país com atrativos como os
do Brasil.
Um mínimo de competência para diagnosticar
mazelas que desestimulam visitação —não só de estrangeiros, mas o turismo
interno— identificaria índices de criminalidade, infraestrutura precária e
saneamento deficiente como barreiras mais prováveis.
Está certo Lula ao revogar a isenção de vistos, tanto do ponto de vista diplomático quanto do escasso impacto sobre o turismo —que ainda precisa ser aprimorado.
CPI é atestado de fraqueza do governo
O Estado de S. Paulo.
Se a investigação do 8 de Janeiro pelo
Congresso é tão indesejada pelo Palácio do Planalto, que o governo trabalhe
mais e melhor para construir e organizar sua base de apoio
O Palácio do Planalto tem cortado um
dobrado para barrar a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)
para investigar a tentativa de golpe de Estado no 8 de Janeiro. Partidos de
oposição ao governo já reuniram mais assinaturas do que o mínimo necessário
para levar a CPI adiante, tanto na Câmara (191) como no Senado (35). Em reação,
o presidente Lula da Silva foi às compras e passou a negociar cargos no segundo
escalão da administração pública federal em troca da convicção de alguns dos
signatários.
O tempo vai dizer se esse toma lá dá cá
evitará a instalação da CPI, mas algumas coisas já estão bastante claras. Em
primeiro lugar, está-se diante de um governo politicamente debilitado, pois
incapaz de articular uma base de apoio congressual mínima para barrar o
movimento da oposição ainda no nascedouro. O Palácio do Planalto dissemina a
ideia segundo a qual a instalação de uma CPI “neste momento” – como se houvesse
um “momento apropriado” para a instalação de qualquer CPI – atrapalharia as
votações de projetos importantes para o País, como os que tratam da nova âncora
fiscal e da reforma tributária.
De antemão, cabe perguntar: que projetos
seriam esses? O governo ainda não os apresentou ao País – nem qual será o novo
arcabouço fiscal que substituirá o teto de gastos nem tampouco o modelo de
reforma tributária que defende. Ademais, se não reúne quantidade de votos nem
sequer para abafar a instalação de uma CPI tão indesejável, o governo não
deveria acalentar otimismo quanto às perspectivas de aprovação de qualquer
projeto de seu interesse.
Em segundo lugar, se os requisitos
constitucionais para sua instalação estão preenchidos, a CPI do 8 de Janeiro
naturalmente deve ser instalada pelo presidente do Congresso. No regime
democrático, as comissões parlamentares de inquérito são instrumentos legítimos
à disposição da oposição. O próprio número de assinaturas mínimas para sua
instalação indica que se trata de um mecanismo de defesa das minorias
parlamentares. Se ao governo não interessa o avanço de determinada CPI, que
trabalhe mais e melhor para construir e organizar sua base de apoio no
Congresso.
Por último, mas não menos importante,
interessa muitíssimo à sociedade saber tudo o que, de fato, está por trás dos
infames atos golpistas do 8 de Janeiro, da preparação ao desfecho trágico. É
bem verdade que já há investigações em curso na esfera jurídico-penal, mas isso
em nada interdita a abertura de uma nova frente de investigação de natureza
política, sobretudo porque, convenhamos, o mundo político foi profundamente
afetado pelo assalto às sedes dos Poderes da República. Se atos como aqueles
praticados no 8 de Janeiro não ensejam a instalação de uma CPI, o que, afinal,
haveria de ensejar?
Essa constatação conduz à necessária
responsabilidade do Congresso nesse momento grave. A CPI, caso venha a ser
instalada, deve se prestar a investigar atos concretos praticados pelos
golpistas, identificando e denunciando cada um deles na medida de suas
responsabilidades e, principalmente, oferecendo ao País, ao final dos
trabalhos, novos marcos legislativos aptos a coibir a ocorrência de eventos
similares no futuro. A comissão presta-se ao inquérito, não ao tumulto.
Como sói acontecer em qualquer comissão
parlamentar de inquérito, decerto haverá o show protagonizado por congressistas
histriônicos mais interessados nas manchetes dos jornais e na bagunça das redes
sociais do que na investigação propriamente dita. É do jogo político. No caso
particular da eventual CPI do 8 de Janeiro, é óbvio que o interesse da oposição
é atribuir a responsabilidade pelos tumultos ao governo que mal havia começado,
acusando o ministro da Justiça, Flávio Dino, de suposta omissão e levantando
suspeitas de que petistas infiltrados organizaram a bagunça, para disso extrair
vantagens políticas. Caso se preste a isso, a CPI será uma descomunal perda de
tempo. Infelizmente, não será a primeira.
Revolução no mundo do trabalho é coisa
séria
O Estado de S. Paulo.
Atitudes simplistas e maniqueístas do
governo ante o desafio complexo do trabalho por aplicativos prejudicam os
esforços para encontrar uma regulação justa e eficiente para todos
Toda nova tecnologia traz novas
oportunidades, riscos e desafios. Na Quarta Revolução Industrial, com seus
paradigmas disruptivos de interconectividade e automação, todos eles são
abundantes. Em particular, a regulação da chamada economia “gig”, em que
serviços pontuais e temporários são contratados através de plataformas
digitais, tem sido objeto de debate em todo o mundo.
Os benefícios para os consumidores são
evidentes. Ao toque de um botão, qualquer um pode fazer um traslado, receber ou
enviar uma encomenda ou contratar os serviços de uma faxineira, um contador ou
um designer gráfico. Para os fornecedores de serviços, a intermediação das
plataformas com a demanda reduz muito o tempo perdido. Muitos valorizam a
autonomia e a flexibilidade.
No modelo-padrão, os trabalhadores são
considerados autônomos. Os críticos acusam as plataformas de explorar o
trabalho desses freelancers, impondo obrigações, como o uso de uniformes ou
metas de produtividade, mas sem os encargos empregatícios, como aposentadoria,
licenças remuneradas ou segurosaúde ou desemprego. Em outras palavras, trata-se
de uma precarização do trabalho.
Como solução, em geral apontam que os
trabalhadores deveriam ser equiparados a empregados. Mas isso teria seus ônus.
Muitos trabalhadores perderiam a liberdade e a flexibilidade que valorizam,
como, por exemplo, trabalhar com múltiplas plataformas ao mesmo tempo ou
trabalhar meio período. As plataformas teriam de reorganizar seu modelo de
negócios. Dependendo da legislação, os preços para os consumidores poderiam
subir demais; e os ganhos para os trabalhadores, diminuir demais, eventualmente
inviabilizando o negócio para todos.
Há outras opções, como normatizar uma
categoria intermediária entre o empregado-padrão e o autônomo-padrão, criar
mecanismos de negociação coletiva similares aos sindicatos ou estabelecer um
sistema de horas para determinar se o trabalhador é empregado ou autônomo.
Todas essas opções têm seus benefícios – mas também seus custos.
É difícil negar que o status quo favorece
os consumidores e as plataformas em detrimento dos trabalhadores. Mas
identificar o problema é muito mais fácil do que encontrar soluções. Assim tem
sido no mundo inteiro e no Brasil não é diferente. Por isso mesmo, a
preocupação do governo em oferecer soluções é bemvinda. Mas a maneira
simplista, prepotente e maniqueísta com que as tem proposto é lamentável e
contraproducente.
Recentemente, o presidente Lula da Silva
comparou a economia gig a um “regime de escravos”: “As empresas de aplicativo
exploram os trabalhadores como jamais em outro momento da história”. O ministro
do Trabalho, Luiz Marinho, desdenhou: “Se a plataforma Uber for embora do
Brasil é problema da Uber, não nosso”. Não, senhor ministro, isso seria um
problema para os milhares de usuários e trabalhadores que contam com
plataformas como a Uber para facilitar suas atividades e gerar renda. A
sugestão caricata de Marinho de que os Correios poderiam substituir a Uber,
provendo tecnologias que quebram cabeças no Vale do Silício, só expõe a
leviandade com que a questão tem sido tratada.
Problemas novos e complexos exigem soluções
novas e complexas. A maneira com que o governo trata do problema novo e
complexo da economia digital ecoa a maneira com que o governo Bolsonaro tratava
de outro problema novo e complexo: as mudanças climáticas. É a mesma
arrogância, o mesmo reducionismo, o mesmo recurso a paradigmas forjados no
século passado.
Uma arquitetura equilibrada do trabalho por
aplicativos exigirá intensos debates e negociações entre as partes envolvidas e
um trabalho cuidadoso do poder público para intermediar e regular essas
relações. Todo esse processo depende de alguns princípios, sobretudo mais
transparência e responsabilização por parte das plataformas e mais poderes de
associação por parte dos trabalhadores. Ao apelar ao batido expediente do “nós
contra eles” – nesse caso, tratando as plataformas como predadores e os
trabalhadores como a sua presa –, o governo só prejudica os esforços para
encontrar um modelo justo, eficiente e rentável para todos.
Sem tolerância com prisões ilegais
O Estado de S. Paulo.
Ao determinar audiência de custódia em todo
tipo de prisão, STF protege direitos fundamentais
Em 2015, na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 347, o Supremo Tribunal Federal (STF) qualificou o
sistema penitenciário nacional como “estado de coisas inconstitucional”. Era o
reconhecimento de que muitas ações do poder público nessa seara infringiam a
Constituição, violando direitos fundamentais. Entre as medidas corretivas,
tendo por base acordos internacionais firmados pelo Brasil, o STF estabeleceu a
obrigação de juízes e tribunais realizarem, num prazo de 24 horas do momento da
prisão, a audiência de custódia. O ato consiste na apresentação do preso à
autoridade judiciária, para avaliar sua condição física – coibindo eventual
tortura praticada contra ele – e verificar a legalidade da prisão e a
necessidade de sua manutenção.
No mesmo ano, o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) editou a Resolução 213/15, regulamentando a audiência de
custódia. Entre suas disposições, fixou que a apresentação do preso à
autoridade judicial no prazo de 24 horas também deveria ocorrer nos casos de
prisão cautelar ou definitiva. O procedimento não era, portanto, restrito aos
casos de prisão em flagrante.
Tudo isso parecia muito cristalino – a
Constituição de 1988 define que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada
pela autoridade judiciária” (art. 5.º, LXV). Ainda assim, sofreu muita resistência
por parte de vários tribunais. Por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro (TJ-RJ) determinou a realização de audiência de custódia apenas
nos casos de prisão em flagrante.
Diante da resistência em cumprir as
orientações do STF e do CNJ, o Congresso reagiu e aprovou a Lei 13.964/2019, o
Pacote Anticrime. Além de definir critérios mais estritos em relação à prisão
preventiva, incentivando a aplicação por parte do juiz de medidas cautelares
diversas da prisão, a nova lei previu expressamente a obrigatoriedade da
audiência de custódia em todos os casos de prisão.
No início de março, julgando uma ação da
Defensoria Pública da União contra as restrições criadas pelo TJ-RJ, o plenário
do STF, por unanimidade, determinou que todos os tribunais e juízos do País
devem realizar, no prazo de 24 horas, audiência de custódia em todas as
modalidades de prisão.
Foi uma decisão acertada do STF. Como
lembrou o relator, ministro Edson Fachin, a audiência de custódia “não
configura simples formalidade burocrática”, mas “relevante ato processual
instrumental à tutela de direitos fundamentais”. O bom funcionamento do sistema
de Justiça exige controles, aptos a identificar abusos e ilegalidades, que não
ocorrem apenas em prisões em flagrante.
Mas a tarefa do STF não terminou. Cabe à Corte suspender a liminar do ministro Luiz Fux que, desde janeiro de 2020, impede a plena vigência da Lei 13.964/2019, em relação tanto ao juiz de garantias quanto aos efeitos da não realização da audiência de custódia. As melhorias do sistema de Justiça sempre suscitam oposição, mas nem por isso elas devem ser abandonadas. O papel do STF é precisamente garantir sua implementação.
BC monitora aperto no crédito, mas não vê
crise
Valor Econômico
Uma crise de crédito generalizada estaria
ainda fora do horizonte de curto prazo
O risco de crédito tende a crescer se
houver “frustração substancial do desempenho da atividade econômica”, mas por
enquanto não há nada que se assemelhe a uma crise aguda nos canais de irrigação
de recursos para a economia, concluiu o Comitê de Estabilidade (Comef) do Banco
Central. A avaliação do BC é feita mais do outro lado do balcão, ou seja, do
impacto sobre os bancos de problemas de inadimplência de pessoas físicas e
jurídicas. Desse ponto de vista, não há com o que se preocupar, a menos que o
crescimento previsto para o ano se transforme em uma grande recessão, o que não
é o cenário mais provável até agora.
O peso do tombo dado pelas Americanas no
mercado, que teve impacto importante nas provisões de créditos duvidosos dos
bancos, reduziu a rentabilidade das instituições e já foi praticamente
absorvido, segundo o BC. Mesmo que o caso da empresa do varejo contagiasse toda
a cadeia de produção e fornecimento, um cenário considerado extremo pelo BC, “o
impacto consolidado é insignificante e não se verificaria desenquadramento de
capital em qualquer instituição financeira”.
Não há asfixia na oferta de crédito para os
tomadores, apesar de as instituições financeiras terem redobrado a cautela nos
últimos meses. “O apetite ao risco na concessão de crédito às famílias e às
empresas de menor porte apresentou redução, porém permanece elevado”, avalia o
Comef. Nas modalidades mais arriscadas do sistema de empréstimos, como cartão
de crédito e crédito não consignado, as concessões continuam elevadas, o que,
se não traz problemas de curto prazo, mas pode sinalizar dificuldades no médio
prazo. As empresas de menor porte viram uma desaceleração na oferta de
recursos, embora isso ainda não seja qualitativamente suficiente para
caracterizar uma “alteração relevante nos critérios de concessão”, segundo o
BC.
Com os pedidos de recuperação judicial de
grandes empresas, fato que o BC não menciona, mas alude a ele, houve
deterioração dos preços de ativos no mercado de capitais, o que aumentou sua
volatilidade, os spreads e a aversão ao risco. Esses efeitos, mais o da redução
do crescimento do crédito, no entanto, “não representam preocupação no médio
prazo, embora existam incertezas a serem acompanhadas”, segundo o BC.
Há desaceleração evidente em várias
modalidades, mas, no caso das empresas, a redução foi “marginal”. A válvula
complementar do mercado de capitais para várias formas de financiamento das
empresas não se fechou, e, mesmo com menor fluxo, “se mantém como fonte relevante,
principalmente para as grandes empresas”.
O comércio da região Sudeste tem sido
particularmente atingido pela retração de vendas, acentuada no quarto
trimestre. mostra outro relatório do BC, o Boletim Regional. “Apesar do
resultado positivo no ano, houve perda de ritmo em todos os setores no segundo
semestre, indicando arrefecimento no início de 2023”, aponta o BC. O comércio
ampliado na região caiu 1,4% em 2022. A performance da indústria do Sudeste foi
medíocre, com exceção da produção de petróleo e derivados. Houve queda forte no
último trimestre, e o nível de dezembro “foi o mais baixo desde julho de 2020”
na região.
Ainda que o caso Americanas não tenha
relação com o aperto monetário, mas, muito provavelmente, com fraudes, o
impacto de sua crise potencializou vulnerabilidades conjunturais das empresas
varejistas, as mais afetadas pelos efeitos cumulativos das altas de juros. Isso
foi mais verdadeiro para a economia paulista que para a fluminense e a mineira.
A perspectiva do BC é que, com o aumento da
inadimplência, maior comprometimento com dívidas da renda familiar e menor
capacidade de pagamento das micro e pequenas empresas, e de algumas de grande
porte, o risco de crédito “deve permanecer elevado no médio prazo”. Por isso, o
aperto nos critérios de concessão, para o BC, tende a diminuir o ritmo de
evolução dos ativos problemáticos.
Uma crise de crédito generalizada estaria
ainda fora do horizonte de curto prazo. Nessas circunstâncias, a pressão
baseada em uma suposta ameaça de quebra geral de empresas para que os juros
sejam reduzidos antes do previsto, ou seja, no primeiro trimestre, tem poucas
chances de prosperar. Mas um mergulho na recessão pode mudar esse quadro. Os
efeitos do aperto monetário, para o BC, são esses mesmos.
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