O Globo
Bolsonaro foi uma aberração, mas não faz
sentido repetir que 15% da população vive como se estivéssemos na Somália
O desemprego no Brasil em 2018 era de 12% e
a subutilização de mão de obra, de 24%. E, apesar dos números elevados, não se
falava em fome. Em 2022, essas taxas caíram para 9% e 21%, respectivamente. Em
2018, nosso índice de Gini da distribuição do rendimento domiciliar per capita
era de 0,55. E ninguém falava em fome.
Em 2021, ele tinha caído para 0,54 (uma pequena redução da desigualdade). O IBGE publica a Síntese de Indicadores Sociais (SIS). “Pobreza extrema” e “pobreza” podem ser medidos olhando para esses indicadores. A proporção de pessoas por classe de rendimento domiciliar per capita com menos de US$ 1,9 diários pela Paridade do Poder de Compra (PPC) aumentou de 4,7% em 2014 para 6,8% em 2018. E ninguém falava em fome.
Depois, entre 2018 e 2020, caiu para 5,7%.
Já a proporção de pessoas com menos de US$ 3,2 diários medidos por PPC aumentou
de 10,3% em 2014 para 13% em 2018. E a palavra “fome” continuou ausente dos
jornais. Depois, entre 2018 e 2020, caiu para 10,6%. Em 2021, aumentou, mas com
certeza em 2022 terá caído novamente, pela expansão do Auxílio Brasil.
Convido o leitor a fazer o seguinte
raciocínio: como é possível que, com um desemprego muito menor e indicadores
distributivos que, pelas mensurações do IBGE, mostrariam uma melhora, em 2022
no Brasil se tenha passado de repente a falar de 33 milhões de famintos?
Em parte, isso decorre de entender “fome”
como sinônimo de “insegurança alimentar”. Em parte, também, a resposta é clara:
“viés”.
Muitos leitores devem ter visto no YouTube
um vídeo de Lula, de 2014, onde ele diz que “uma vez eu estava num debate com
Jaime Lerner em Paris, falando que no Brasil tinha 25 milhões de crianças de
rua e aplaudido calorosamente pelos franceses. Então, quando terminei de falar,
o Lerner me puxou e me disse: ‘Lula, é impossível ter 25 milhões de crianças de
rua no Brasil, porque se fosse verdade a gente não poderia andar na rua’.
Bolsonaro foi uma aberração e mesmo daqui a
50 anos se falará das 700 mil mortes da pandemia, no contexto associado à
postura negacionista absurda do então presidente. Não faz sentido, porém, parte
da intelectualidade ter defendido (corretamente) em 2020 a necessidade de
seguir critérios científicos no combate à pandemia e, dois ou três anos depois,
repetir que 15% da população brasileira vive como se estivéssemos na Somália.
“Economia baseada em evidências” tem que
servir para tudo, não apenas para aquilo que é politicamente conveniente. E é
cristalino que o número de “33 milhões de famintos” foi exposto intensamente
pelo PT em 2022 com objetivos eleitorais.
Bolsonaro se foi e espero que não volte
nunca mais ao poder. Não obstante isso, entender a natureza da questão é
fundamental para a correta definição das políticas públicas de agora em diante.
Por quê? Porque se a população estiver convencida de que 15% dos brasileiros
vivem como somalis, faz sentido gastar rios de dinheiro para mitigar essa chaga
que afetaria tanta gente. Já se os miseráveis representarem 5% ou 6% da
população, as políticas terão que ser mais focalizadas, com uma utilização mais
eficientes dos recursos.
É óbvio que os R$ 600 do Auxílio Brasil
devem ser mantidos. De qualquer forma, ao contrário do que muitas vezes se
tende a pensar, o Brasil gasta uma enormidade de recursos com políticas
sociais. Os benefícios rurais (completamente subfinanciados) em 2023 serão de
mais de R$ 170 bilhões; o Bolsa Família será de mais de R$ 150 bilhões; o
seguro-desemprego, da ordem de R$ 70 bilhões; o Loas, de R$ 85 bilhões; etc.
E vários desses programas estão mal
formulados, levando a uma despesa muito maior do que o país poderia ter se
tivesse regras mais razoáveis. Por isso, a precisão é chave em se tratando de
políticas públicas. Séries históricas, submetidas ao crivo de especialistas,
são fundamentais para desenhar bons programas sociais. O resto é torcida.
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