Ilustríssima / Folha de S. Paulo
Regra eleitoral obsoleta inviabiliza
enraizamento dos partidos na sociedade e fragiliza democracia
[RESUMO] Quando a democracia é alvo de
ataques, além de defendê-la é necessário revigorá-la, afirma cientista
político. Atual modelo de votação proporcional sem ordenamento da lista de
candidatos, combinado com grandes distritos eleitorais (estados), incentiva a
competição interna desenfreada, danifica a coesão partidária e inviabiliza o
vínculo de eleitores e partidos. País deveria adotar o modelo de listas
ordenadas, em que se vota nas siglas, como forma de partidarizar a sociedade.
Edmund Burke,
o pai do conservadorismo, jamais poderia imaginar que o seu
conceito de "livre representação" encontraria o paroxismo nos
trópicos brasileiros.
No "Discurso aos Eleitores de
Bristol" (1774), declarou aos que o sufragaram ao Parlamento britânico que
o exercício do seu mandato estaria desvinculado deles, e somente obedeceria aos
desígnios que ele próprio identificasse, não aceitando espelhar a vontade dos
representados.
Pesquisas mostram, quatriênio após
quatriênio, o Congresso brasileiro como o pior avaliado entre os nossos três
Poderes —o Senado com nota melhor que a Câmara—, mas são rarefeitas ou muito
superficiais as discussões a respeito.
Cita-se com frequência entre os problemas o
excessivo fracionamento das bancadas, mas se tangencia sua extensão e
origem. A
fragmentação real, na verdade, é muitas vezes maior que a medida pela
distribuição das representações partidárias, na qual o país é recordista.
Isso porque cada parlamentar leva consigo
a consciência de que obteve seu mandato em uma lógica fundamentalmente
individualizada, pois a maioria absoluta das legendas inexiste na mente do
eleitor.
O ditame da Constituição de 1988 ao configurar nossa democracia consagrou o papel dos partidos, vedando a possibilidade de candidaturas avulsas, reservando-lhes no conjunto o monopólio da representação da sociedade. Entretanto, hoje eles são quase todos hidropônicos, como aqueles vegetais cujas raízes sem solo ficam mergulhadas em líquidos nutrientes.
Neste último caso, vez por outra a
expectativa se frustra, e o apoio prometido sobe no telhado. Em que país do
mundo um governo entrante anunciaria pela manhã que uma legenda ocuparia três
pastas do seu ministério para, à tarde do mesmo dia, o líder parlamentar
afirmar que ele e os colegas votariam de modo independente? E como é que se
naturaliza algo assim?
No momento em que boa parte do país se
mobiliza para coibir ataques à institucionalidade democrática, é imperioso
reconhecer que, além de defendê-la, será imprescindível fortalecê-la, pois é
exatamente a fragilidade que oportuniza o proselitismo e a sanha dos seus
inimigos.
E isso convoca a participação de todos
—políticos, sociedade civil e meios de comunicação— para revigorá-la. Há vários
fatores que explicam as patologias do nosso sistema político, mas um deles tem
um papel central nessa etiologia: o
modelo de lista proporcional "desordenada" que o Brasil pratica de
forma absolutamente singular nos seus detalhes, como mostraram
Lavareda (1991), Giusti (1994), Nicolau (2017) e Costa Porto (2022), e que é
nefasto por pelo menos cinco motivos.
1) Ele gera nos três níveis da federação
contextos de seleção darwiniana. Disputas renhidas com um copioso número de
concorrentes, o que, por si só, eleva às alturas o custo das mesmas. O triunfo
é reservado em muitos casos aos campeões do "extrativismo", sejam
eles de esquerda, centro ou direita.
Por essa designação, entenda-se a
capacidade de obter o máximo possível de recursos provenientes de emendas —no
caso dos incumbentes, que beneficiarão prefeitos que os retribuirão com
votos—, de doadores, do apoio de entidades, de organizações variadas, ou mesmo
da fortuna familiar.
Ao final da jornada, temos na Câmara
Federal, rigorosamente, 513 empreendedores individuais. De pouco adianta a ação
afirmativa. Mulheres tiveram direito a 30% do fundo eleitoral. Pouco afeitas
à briga de cotoveladas dessa competição, só elegeram 18% das vagas.
O extrativismo mencionado é, a princípio,
legal, mas nem sempre, como a imprensa já cansou de registrar. Por conta disso,
circulam rumores de campanhas orçadas ano passado em valores estratosféricos
—mais de R$ 10 milhões, de R$ 20 milhões, e até mais de R$ 50 milhões. Algumas
exitosas, outras não. O certo é que, embora haja também uma parcela expressiva
de recursos públicos envolvidos, é impossível a Justiça Eleitoral fiscalizar a
contento 28.274 contas.
Não pode ser saudável um modelo que, pelo
seu custo, induz à busca
desenfreada de recursos, e que não resistiria a um exame com lupa da
contabilidade dos concorrentes. Por quanto tempo a política
continuará a bailar na beira desse abismo?
2) O sistema alveja no cerne a coesão
partidária, ao transpor para o interior de cada legenda o grau máximo de
competição. O principal adversário do candidato não é um antagonista de outra
agremiação, mas o seu colega de partido que pode ocupar o lugar que lhe caberia
em função do número de cadeiras que supostamente será alcançado pela sigla.
A partir daí, o "vale tudo" se
estabelece, e a linha da cintura é ignorada. A crônica política fornece
exemplos à mão cheia de episódios de antropofagia entre correligionários.
3) Promove uma exacerbada personalização da
representação. Apenas 15 dias após a votação do primeiro turno em 2022, pesquisa Ipespe/Abrapel apontou que 50% dos
entrevistados não lembravam o nome do partido dos candidatos em quem tinham
votado para a Câmara Federal e assembleias estaduais. A pesquisa não checou se
os demais lembravam corretamente das siglas. Provavelmente parte significativa
não cumpriria esse requisito.
Outras pesquisas acadêmicas, como a do Eseb
(Estudo Eleitoral Brasileiro), em outros anos registraram que, 45 dias após a
eleição, só um terço dos entrevistados era capaz de citar o nome do candidato
proporcional em quem havia votado.
Imaginem as respostas que obteremos se
repetidas as duas perguntas um ano ou dois anos após a eleição. Escolhas
"desimportantes" geram rápido esquecimento. E a desconexão entre
candidatos e partidos não é inócua. Sem essa "amarra" o parlamentar
pode flutuar, trocando de aquário a cada "janela", ou contribuir para
fundir agremiações ou o que lhe for conveniente, autonomizado pela
invisibilidade da marca partidária.
4) O modelo deturpa papéis básicos dos
partidos na democracia. O papel de agregação e articulação de interesses
sociais é substituído pela justaposição das agendas de empreendedores
individuais. Perde-se a função de âncoras políticas estabilizadoras do regime,
porque sem conexão social não podem estruturar e orientar fatias da opinião
pública, organizando a informação política relevante. E muito menos podem
ajudar o cidadão a avaliar de forma sinóptica os candidatos ou questões em
tela.
A propaganda
eleitoral dos cargos legislativos é quase sempre mero pastiche
biográfico. Por isso, quando vista, não raro é recepcionada com
risos e deboche.
Vítima das listas desordenadas
disponibilizadas pelos cartórios partidários, o eleitor paulista, por exemplo,
no ano que passou teve que escolher, de última hora como quase todos fazemos,
um nome para deputado federal entre 1.540 candidatos, e mais um entre os 2.059
que buscavam a deputação estadual.
Há o mínimo de racionalidade nisso? Parte significativa
dos eleitos necessitará depois buscar um símbolo, uma marca, que auxilie sua
identificação nessa autêntica selva na próxima competição.
O caminho mais rápido será patrocinarem ou
se somarem a iniciativas populistas esdrúxulas, exequíveis ou não, que chamem
atenção e lhes credenciem individualmente aos olhos dos eleitores
desorientados. Essa pseudo solução individual só contribui para deslegitimar a
instituição. Quem tiver dúvidas, examine a relação de projetos em tramitação.
5) E, por fim, e ainda mais delicado, a
governabilidade fica à mercê da capacidade de "sedução" dos governos
e dos presidentes das casas ao nível individual. Para as questões correntes os
representantes ainda podem ser disciplinados pelos líderes partidários com a
ajuda do regimento.
No entanto, quando se tratam dos grandes
temas, em especial dos que exigem PECs, a tal disciplina se esvai e tudo passa
a depender de "incentivos laterais seletivos". Deles, todos lembramos
a problemática tipologia utilizada na Nova República, as emendas do
"orçamento secreto" sendo a versão mais recente sob investigação.
Por óbvio,
não há modelos de representação ideais, mas quando se cogitam mudanças a única
bússola razoável é identificar qual regra, além de mais factível, ajudaria
rapidamente a enfrentar a maior patologia do sistema —no nosso
caso, a hiper personalização dos mandatos parlamentares, causa e consequência
da inviabilização dos laços de representação dos partidos na sociedade. E, como
decorrência, da opacidade de parte considerável do jogo político que se dá
longe dos olhos da população.
O caminho plausível é o da adoção do
sistema proporcional de listas ordenadas, adotado em países culturalmente
parecidos com o nosso, como Portugal, Espanha, Argentina e Uruguai.
Ele não contradiz a Constituição, não
requerendo PEC. Pode ser viabilizado por lei ordinária, simples, sem muitas
firulas, deixando que ao longo do tempo os próprios partidos optem pelo modo de
aprovação das respectivas listas, apenas assegurando aos atuais detentores de
mandato uma posição destacada no ordenamento.
Alguém dirá que essa proposta foi rejeitada
em momentos anteriores, mas isso não serve como argumento dissuasório. Por acaso lá
atrás havia clareza de que a democracia estava em perigo? De que era preciso
reforçar, concretar, os pilares da representação?
Com a mudança, em um ou no máximo dois
ciclos eleitorais, teríamos um choque de partidarização, com as legendas
enraizadas no tecido social, correntes de opinião finalmente bem assentadas e a
óbvia consequência de diminuição do número de legendas, retirando-nos da triste
liderança mundial de fragmentação parlamentar.
Além dos benefícios gerais para o sistema
político, o que inclui campanhas 80% mais baratas, para a maioria dos segmentos
específicos não haveria qualquer prejuízo, ao contrário.
A esquerda, que por circunstâncias
históricas conta com alguma identificação partidária, poderia se rejuvenescer,
entronizando novos quadros que individualmente não conseguem encarar a forte
correnteza do modelo atual.
A direita
bolsonarista se beneficiaria pela capacidade de propelir ideologicamente listas
ordenadas. Os evangélicos descarregariam seus votos e consolidariam
listas que a hierarquia das igrejas apontasse.
Os partidos históricos de centro —MDB,
PSDB, Cidadania— teriam
finalmente capacidade de utilizar o recall e a marca que ainda detêm para
reconquistar bancadas que foram esvaziadas em disputas personalizadas.
Quanto ao novo centro (PSD) e a direita
liberal (União Brasil, Progressistas e outros) teriam a seu favor,
inicialmente, a popularidade dos muitos governadores, senadores e prefeitos
para turbinar as respectivas legendas.
Na lógica desse modelo, além de os
partidos se esforçarem para evitar o risco de "maçãs podres", todas
as listas se veriam compelidas utilitariamente a apresentar programas e
mensagens claras com os quais estariam naturalmente comprometidos seus
integrantes.
Assim, os eleitores saberiam, por exemplo,
se a bancada na qual votarão apoiará ou se oporá aos candidatos a governo nas
três esferas. Depois, ficaria muito mais fácil acompanhar minimamente o seu
desempenho durante a legislatura.
Essa transparência permitiria punir ou
gratificar a legenda na próxima eleição. Seria bom para todos, ou quase todos.
Os únicos prejudicados seriam os poucos políticos eventualmente dependentes da
opacidade do sistema atual.
E que, por isso, arrumam todo tipo de
desculpas para se opor à ideia. Embora
sabendo que, sem essa necessária partidarização da sociedade, a
democracia brasileira seguirá politicamente invertebrada, mais suscetível que
outras a vergar sob a demagogia e a violência dos seus inimigos.
*Doutor em ciência política e professor colaborador da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Presidente de honra da Abrapel (Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais)
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