O Estado de S. Paulo.
É tentador deixar o sistema representativo de lado e substituí-lo por suposta democracia direta, ignorando suas limitações e o risco totalitário que comporta
Segundo matéria de Guilherme Balza no O Globo de 2 de março, o Ministério do Planejamento, de Simone Tebet, estaria se preparando para fazer ressurgir das cinzas os mecanismos de orçamento participativo. Adotado pela prefeitura do PT de Olívio Dutra em Porto Alegre nos anos 90, o sistema ficou famoso no início, até ser abandonado tempos depois. Pelo projeto, ao invés de ser simplesmente revisto e aprovado pelo Poder Legislativo, a partir de proposta formulada pelo Poder Executivo, o orçamento federal seria formulado a partir de uma sucessão de fóruns nacionais e regionais formados por representantes de organizações da sociedade civil, consultas a uma plataforma digital online e reuniões plenárias por todo o País. Para Simone Tebet, que quase desapareceu do cenário político depois que foi nomeada para o Ministério do Planejamento, seria a oportunidade para percorrer o País, ganhar visibilidade e se fortalecer politicamente.
O que tornou famosa a experiência de Porto
Alegre, que percorreu o mundo, foi que ela parecia pôr na prática o ideal da
democracia direta, em que, como na Grécia antiga, os cidadãos tomavam suas
decisões em praça pública, diferentemente da democracia representativa, em que
são os eleitos, e não os eleitores, que resolvem como gastar os recursos
públicos. Temas como habitação, transportes, educação, saúde e outros eram
discutidos pela população, que se informava e tornava explícitas suas demandas
e prioridades, que o governo depois deveria implementar. O outro lado da
valorização da mobilização e deliberação popular, que inspirou este sistema,
foram as notórias limitações das instituições representativas, em que
vereadores e deputados, uma vez eleitos, atuam em benefício próprio ou de
determinados grupos de interesse, e não da população como um todo.
A experiência de Porto Alegre acabou se
esgotando por uma série de razões. Só uma parte pequena dos orçamentos pode ser
objeto de deliberação popular, já que os gastos de pessoal, infraestrutura e
muitos outros são fixos. Na prática, não é o povo que participa dessas
deliberações, mas os militantes mais ativos da sociedade organizada, que nem
sempre representam fielmente os interesses e valores da população mais
silenciosa. As demandas são sempre muitas, mas os recursos são sempre
limitados, há que estabelecer prioridades e atender a necessidades técnicas e
de planejamento de médio e longo prazos que exigem elaboração complexa e não
podem ser resolvidos em assembleias populares.
O orçamento participativo pode, no máximo,
ser experimentado nas prefeituras, para decisões locais, mas dificilmente em
nível regional ou nacional, pelo grande número de pessoas envolvidas e a
complexidade dos temas. A experiência de Porto Alegre já estava se esgotando
quando Lula foi eleito em 2002, e os governos do PT nunca tentaram replicá-la
no governo federal. Em seu lugar, foi estimulada a criação de conselhos e
fóruns nacionais como os de educação, saúde, segurança pública e muitos outros
que, em princípio, deveriam funcionar como pontes de ligação entre a sociedade
civil e o governo em suas diferentes instâncias.
Na educação, o fórum teve um papel central
na elaboração das diferentes versões do Plano Nacional para o setor, e existe
hoje, no Congresso, a proposta de institucionalização de um sistema nacional de
educação cujo foco é a criação de inúmeras “instâncias de negociação” para
administrar as relações entre os governos nacional, estaduais e municipais
nesta área. O Plano Nacional de Educação nunca serviu efetivamente para
melhorar a educação do País, embora tivesse contribuído para aumentar seus
custos, e nada faz crer que o tal “sistema nacional” de educação que está em
vias de ser aprovado possa produzir melhores resultados.
Por mais interessantes e educativas que
possam ser estas experiências de participação e deliberação direta, elas não
substituem a necessidade de um Executivo tecnicamente competente, capaz de usar
os orçamentos como instrumentos de política pública de médio e longo prazos,
nem de um Legislativo capaz de colocar as prioridades da sociedade, e não os
interesses privados ou corporativos de cada deputado, em primeiro lugar.
A Câmara dos Deputados, com representantes
eleitos por um sistema eleitoral defeituoso e notória pelos escândalos que
começam com os “anões do orçamento”, dos anos 80, e culminam no orçamento
secreto, de 2022, não inspira confiança e contamina o Executivo, ao vender caro
seu apoio. Assim, é forte a tentação de deixar o sistema representativo de lado
e substituí-lo pela suposta democracia direta, ignorando suas óbvias limitações
e o risco totalitário que ela comporta.
Nas eleições de 2022, Simone Tebet representou
uma tentativa de resistir ao populismo, abrindo espaço para um sistema político
representativo renovado. Sabemos que não conseguiu ir muito longe, ficando a
esperança de que, num governo de coalizão, ela contribuísse para a renovação e
o aperfeiçoamento do sistema político, dando ao processo orçamentário a
importância política e a qualidade técnica que ele precisa ter. Ressuscitar o
velho orçamento participativo não parece ser o melhor caminho para isso.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências
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