Por
cem anos ou mais a Economia Política inglesa vem sendo dominada por uma
ortodoxia. Isso não quer dizer que tenha prevalecido uma doutrina imutável. Ao
contrário.
Tem
havido uma progressiva evolução da doutrina. Mas seus pressupostos, sua
atmosfera, seu método têm continuado surpreendentemente iguais, e tem sido observável
uma notável continuidade através de todas as mudanças. Nessa ortodoxia, nessa
transição contínua foi que eu me formei. Eu a aprendi, eu a ensinei, eu a
escrevi.
Para
os que observam de fora, provavelmente ainda pertenço a ela. Os historiadores
da doutrina irão considerar este livro como pertencente essencialmente à mesma tradição.
Mas ao escrevê-lo, e em outra obra recente que levou a ele, senti-me rompendo
com essa ortodoxia, numa forte reação contra ela, fugindo de alguma coisa, conquistando
uma emancipação. E esse estado de espírito de minha parte é a explicação de
certas falhas do livro, em particular o tom controvertido de alguns trechos e
seu ar de ser dirigido muito aos que detêm um ponto de vista específico e pouco
ad urbem et orbem. Eu estava querendo convencer meu próprio ambiente e não me
dirigi de modo suficientemente direto à opinião dos de fora. Agora, três anos
depois, tendo-me acostumado à nova pele e quase me esquecido do cheiro da
velha, devo, como se estivesse escrevendo de novo, esforçar-me para livrar-me
dessa falha, estabelecendo minha posição de maneira mais definida.
Digo tudo isso em parte para explicar-me e em parte para desculpar-me perante os leitores franceses; na França não houve uma tradição ortodoxa com a mesma autoridade sobre a opinião contemporânea como houve em meu país. Nos Estados Unidos, a posição é bastante semelhante à da Inglaterra, mas na França, como no resto da Europa, não tem havido uma escola dominante desse tipo desde a extinção da escola dos economistas liberais franceses que estiveram em seu apogeu há vinte anos (apesar de terem alcançado uma idade tão provecta que, bem depois de sua influência ter desaparecido, coube-me, quando comecei a trabalhar como jovem redator do Economic Journal, escrever os necrológios de muitos deles
—
Levasseur, Molinari, Leroy-Bealieu). Se Charles Gide tivesse atingido a mesma
influência e o mesmo prestígio de Alfred Marshall, a posição de vocês,
franceses, seria mais semelhante à nossa. Do modo como as coisas ocorreram,
seus economistas são ecléticos, demasiado (achamos nós, às vezes) desenraizados
do pensamento sistemático. Talvez isso possa fazê-los mais acessíveis ao que
tenho a dizer. Isso pode porém também resultar em que meus leitores às vezes
fiquem imaginando a que me refiro quando estou falando, com aquilo que alguns
de meus críticos ingleses consideram um mau uso da língua, da escola “clássica”
de pensamento e dos economistas “clássicos”. Pode ser útil a meus leitores
franceses, portanto, que eu tente indicar bem resumidamente o que considero as
principais differentiae de minha perspectiva.
Dei a minha teoria o nome de teoria geral. Com isso quero dizer que estou preocupado principalmente com o comportamento do sistema econômico como um todo — com a renda global, com o lucro global, com o volume global da produção, com o nível global de emprego, com o investimento global e com a poupança global, em vez de com a renda, o lucro, o volume da produção, o nível do emprego, o investimento e a poupança de ramos da indústria, firmas ou indivíduos em particular. E afirmo que foram cometidos erros importantes ao se estender para o sistema como um todo as conclusões a que se tinha chegado de forma correta com relação a uma parte desse sistema tomada isoladamente.
Permitam-me
apresentar exemplos daquilo a que me estou referindo. Minha assertiva de que
para o sistema como um todo o volume de renda que é poupado, no sentido de que
não é gasto no consumo corrente, é e tem necessariamente que ser exatamente
igual ao volume do novo investimento líquido, tem sido considerada um paradoxo
e tem provocado controvérsia generalizada. A explicação para isso
indubitavelmente se encontra no fato de que essa relação de igualdade entre
poupança e investimento, que necessariamente se verifica com relação ao sistema
como um todo, não se verifica com relação a um indivíduo em particular. Não há
razão absolutamente por que o novo investimento pelo qual sou responsável tenha
que apresentar qualquer relação com o montante de minha poupança pessoal. De
forma bem legítima consideramos a renda de um indivíduo independente daquilo
que ele próprio consome e investe. Mas isso, tenho que salientar, não deve nos
levar a desprezar o fato de que a demanda resultante do consumo e do
investimento de um indivíduo é a fonte da renda de outros indivíduos, de forma
que as rendas em geral não são independentes — muito pelo contrário — da
disposição dos indivíduos a despender e a investir, e já que por sua vez a
inclinação dos indivíduos a despender e a investir depende de sua renda,
estabelece-se uma relação entre a poupança global e o investimento global que
pode facilmente ser demonstrada, além de qualquer possibilidade de refutação razoável,
como sendo de igualdade exata e necessária.
Encarada
de forma justa, essa é uma conclusão banal. Mas ela põe em movimento uma cadeia
de raciocínio de onde se seguem questões mais substanciosas. Fica demonstrado que,
de modo geral, o montante real da produção e o nível real do emprego dependem
não da capacidade de produzir ou do nível de renda preexistentes, mas das
decisões correntes de produzir, que dependem por sua vez das decisões correntes
de investir e das expectativas presentes do consumo corrente e do consumo
previsto. Ademais, assim que conhecemos a propensão a consumir e a poupar (como
eu a batizei), isto é, o resultado para a comunidade como um todo das
inclinações psicológicas individuais quanto a como dispor de dadas rendas,
podemos calcular que nível de renda, e portanto que nível de produção e de emprego,
está em equilíbrio lucrativo com um dado nível de novo investimento, a partir
do que se desenvolve a doutrina do multiplicador. Ou ainda, torna-se evidente
que
o
aumento da propensão a poupar provocará ceteris paribus a contração da renda e
do volume da produção, enquanto um aumento do estímulo a investir fará com que se
expandam. Estamos portanto em condições de analisar os fatores que determinam a
renda e a produção do sistema como um todo — temos, no sentido mais exato, uma
teoria do emprego. Desse raciocínio surgem conclusões que são particularmente
relevantes para os problemas de finanças públicas e de políticas governamentais
em geral e do ciclo econômico.
Outro
aspecto especialmente característico deste livro é
a
teoria da taxa de juros. Nos últimos tempos muitos economistas têm afirmado que
o montante de poupança atual determina a oferta de capital disponível, que o
ritmo de investimento corrente governa sua demanda e que a taxa de juros é, por
assim dizer, o fator de equilíbrio de preços determinado pelo ponto de
interseção entre a curva da oferta da poupança e a curva da demanda do investimento.
Mas se a poupança global é necessariamente
e
em todas as circunstâncias exatamente igual ao investimento global, é evidente
que essa explicação não se sustenta. Temos que ir procurar a solução em outra
parte.
Eu
a encontro na ideia de que é função da taxa de juros preservar o equilíbrio não
entre a demanda e a oferta de novos bens de capital mas entre a demanda e a
oferta de dinheiro, isto é, entre a demanda pela liquidez e os meios de
satisfazer essa demanda. Nesse ponto retorno à doutrina dos economistas
antigos, anteriores ao século XIX.
Montesquieu,
por exemplo, enxergou essa verdade com considerável clareza1 — Montesquieu que
foi o verdadeiro equivalente francês de Adam Smith, o maior de seus economistas,
muito acima dos fisiocratas em termos de inteligência penetrante, clareza de
ideias e bom senso (que são qualidades que um economista deveria ter). Devo deixar
porém para o texto do livro a demonstração em detalhe de como tudo isso
funciona.
Batizei
este livro A Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda; a terceira
característica para a qual quero chamar atenção é o tratamento da moeda e dos
preços. A análise seguinte registra minha fuga final das confusões da teoria
quantitativa, em que antes me emaranhara.
Considero
que o nível de preços como um todo é determinado precisamente da mesma maneira
que os preços individuais, isto é, sob a influência da oferta e da demanda. As
condições técnicas, o nível dos salários, o grau de capacidade ociosa das
unidades de produção e da mão-de-obra, e o estado do mercado e da concorrência determinam
as condições de oferta dos produtores tomados individualmente e dos produtos
como um todo. As decisões dos empresários, que originam a renda dos produtos
tomados individualmente, e as decisões desses indivíduos quanto à disposição
dada a essa renda determinam as condições de demanda. E os preços — tanto os
preços tomados individualmente como o nível de preços — aparecem como a
resultante desses dois fatores.
A
moeda e a quantidade da moeda não constituem influências diretas a essa altura
do processo. Elas já fizeram seu trabalho numa etapa anterior da análise. A quantidade
da moeda determina a oferta de recursos líquidos e, consequentemente, a taxa de
juros, e, em conjunto com outros fatores (particularmente a confiança), o
estímulo a investir, o que por sua vez fixa o nível de equilíbrio da renda, da
produção e do emprego e (a cada etapa em conjunto com outros fatores) o nível
de preços como um todo através das influências da oferta e da demanda assim
estabelecidas.
Acredito
que a economia em toda parte, até recentemente, tenha sido dominada, muito mais
do que compreendida, pelas doutrinas associadas ao nome de J.-B. Say. É verdade
que a “lei dos mercados” dele já foi abandonada há tempo pela maioria dos economistas,
mas eles não se livraram de seus postulados básicos, particularmente de sua
ideia errônea de que a demanda é criada pela oferta. Say estava supondo
implicitamente que o sistema econômico está sempre operando com sua capacidade
máxima, de forma que uma atividade nova apareceria sempre em substituição e não
em suplementação a alguma outra atividade. Quase toda a teoria econômica
subsequente tem defendido, no sentido de que ela tem exigido, esse mesmo
pressuposto. No entanto, uma teoria com essa base é claramente incompetente
para enfrentar os problemas do desemprego
e
do ciclo econômico. Talvez eu possa exprimir melhor a meus leitores franceses o
que apregoo sobre este livro dizendo que na teoria da produção ele é uma
ruptura radical com as doutrinas de J.-B. Say e que na teoria dos juros ele é
um retorno às doutrinas de Montesquieu.
*J.
M. Keynes
20
de fevereiro de 1939
King’s
College Cambridge
Editora
Nova Cultura,p. 9, 1985.
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