quinta-feira, 26 de novembro de 2020

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

No País das Maravilhas – Opinião | O Estado de S. Paulo

No país de Jair Bolsonaro, os pobres e desempregados, que vão enfrentar inevitável redução de renda, podem esperar

No país do presidente Jair Bolsonaro, os pobres e desempregados podem esperar. Sem qualquer plano factível para enfrentar a inevitável redução da renda de milhões de seus compatriotas em razão do fim do auxílio emergencial, Bolsonaro escolheu a negação: comporta-se ora como se o problema não fosse dele, ora como se os pobres afinal não existissem.

Não se pode dizer que o presidente seja incoerente. Para quem jura que em 1970 participou da repressão à luta armada durante a ditadura militar – mesmo que se possa comprovar facilmente que, na época, ele tinha apenas 15 anos de idade – não é difícil inventar que governa o País das Maravilhas.

Movido por devaneios desse tipo desde que tomou posse, Bolsonaro é uma inesgotável fonte de fantasias a respeito dos feitos de sua administração e do país que preside. Não fossem os “inimigos” do Brasil – a oposição, a imprensa, os governadores, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, a OMS, a ONU, os países europeus, a China, o coronavírus, a libertinagem no carnaval e o que mais aparecer –, estaríamos gozando a glória do pleno desenvolvimento econômico, social e moral.

No Brasil de Bolsonaro, por exemplo, não há racismo. Sem dedicar uma única palavra de conforto à família de um homem negro brutalmente assassinado por seguranças brancos num supermercado de Porto Alegre, crime que chocou o País, o presidente preferiu dizer que vivemos em harmonia racial e que o lugar de quem denuncia o racismo é o “lixo”.

Também no Brasil de Bolsonaro, não há devastação da Amazônia e do Pantanal e nunca se protegeu tanto o meio ambiente como em seu governo. Todas as críticas de governos estrangeiros e da imprensa a respeito do inegável avanço do desmatamento, diz o presidente, são fruto de uma campanha internacional destinada a manchar a imagem do País e prejudicar sua economia.

Na Shangri-lá exuberante de Bolsonaro, só “moleques” e “maricas” têm medo da pandemia de covid-19, pois afinal bastam algumas doses de cloroquina, o elixir bolsonarista, para derrotar o coronavírus. No começo, Bolsonaro qualificou a doença como “gripezinha”; agora, a ameaça de recrudescimento da pandemia é tratada pelo presidente como “conversinha”. De diminutivo em diminutivo, Bolsonaro – que trocou de ministro da Saúde até que encontrasse um que lhe fizesse todas as vontades, que faz campanha descarada contras as medidas de prevenção e que agora se empenha em desestimular a vacinação – esquiva-se da responsabilidade pela tragédia dos 170 mil mortos e de uma economia em frangalhos. 

No mundo encantado de Bolsonaro, ao contrário, a economia do Brasil está sempre prestes a “decolar” e “voltou com muita força”, nas palavras de seu auxiliar Paulo Guedes. A esta altura, porém, quem lida com dinheiro e não gosta nem um pouco de perdê-lo tem demonstrado enorme dificuldade em acreditar nos prognósticos panglossianos do ministro da Economia e de seu chefe a respeito da recuperação do País e do encaminhamento de reformas e privatizações. Os terríveis números sobre inflação, escalada da dívida e desemprego deveriam bastar para desautorizar o otimismo não raro delirante do Palácio do Planalto.

Assim, aparentemente incapaz de encarar o mundo real em toda a sua aspereza, Bolsonaro nada tem a oferecer ao País para mitigar a crise que ele, ao contrário, ajuda a alimentar. Rejeitando todas as soluções que implicam algum grau de desgaste político e eleitoral, pois não pensa em outra coisa a não ser em sua sobrevivência no cargo e em sua reeleição, o presidente parece convencido de que, para resolver os problemas, basta fingir que eles não existem.

Esse estado de negação pode funcionar para os fanáticos que acreditam que Bolsonaro é o taumaturgo cujo toque haverá de curar a escrófula moral do País. Para todos os outros brasileiros, em especial os que não têm como compartilhar da ilusão bolsonarista porque estão concentrados demais em obter a próxima refeição, resta esperar que os demais Poderes, bem como as forças organizadas da sociedade, trabalhem o mais rápido possível para restabelecer a razão.

Mais um incidente diplomático – Opinião | O Estado de S. Paulo

Eduardo Bolsonaro se sente à vontade para ofender a China porque nada lhe acontece

É muito prejudicial ao País que o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) presida a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) da Câmara dos Deputados.

Em 2018, os seus eleitores podem ter julgado que ele reunia as condições necessárias para o exercício de um mandato parlamentar, mas seu comportamento ofensivo e irresponsável no trato com outras nações mostra que o deputado não está à altura da presidência de uma das mais importantes comissões permanentes da Casa. Compete à CREDN, por exemplo, apreciar projetos de lei, tratados internacionais e outras proposições referentes às áreas de defesa e de política externa brasileiras. Compete à comissão, ainda, o acompanhamento e a fiscalização das ações do Poder Executivo no âmbito daquelas áreas, como dispõe a Constituição.

As reiteradas aleivosias do deputado Eduardo Bolsonaro podem servir muito bem como combustível para incendiar os ânimos das hostes bolsonaristas nas redes sociais, altamente inflamáveis por natureza, mas, ao fim e ao cabo, têm causado enormes danos à imagem do Brasil e elevado de forma significativa o risco de prejuízos financeiros para o País.

O mais recente incidente diplomático causado pelo filho “03” do presidente Jair Bolsonaro – certamente não terá sido o último – envolveu mais uma vez a China, nada menos do que o maior parceiro comercial do Brasil. Em uma série de mensagens publicadas no Twitter, logo depois apagadas, o deputado Eduardo Bolsonaro acusou o Partido Comunista da China e empresas chinesas de praticar “espionagem cibernética”. As acusações feitas pelo parlamentar não se sustentam. Baseiam-se em teorias conspirativas e têm como pano de fundo a disputa comercial e geopolítica entre os Estados Unidos e a China para venda de equipamentos da rede 5G em todo o mundo.

A gravidade do ato hostil do deputado Eduardo Bolsonaro pode ser medida pelo tom da resposta do porta-voz da embaixada da China no Brasil, a mais incisiva até o momento (o “03” é useiro e vezeiro nas ofensas ao país asiático). Em comunicado, a embaixada chinesa recomendou que Eduardo Bolsonaro, sem citá-lo nominalmente, evite “ir longe demais no caminho equivocado” de atribular a relação entre os dois países. Caso contrário, prossegue a embaixada, “deverá arcar com as consequências negativas e carregar a responsabilidade histórica de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil”.

A embaixada chinesa teve o cuidado de lembrar o que está em jogo. “Ao longo dos 46 anos de relações diplomáticas, a parceria sino-brasileira conheceu um rápido desenvolvimento graças aos esforços de ambas as partes. A China tem sido o maior parceiro comercial do Brasil há 11 anos consecutivos, e é também o país com mais investimentos no Brasil”, diz o comunicado. Entre os meses de janeiro e outubro deste ano, as exportações do Brasil para a China somaram US$ 58,5 bilhões, correspondentes a um terço de todas as exportações do País. É disso que se trata do ponto de vista econômico.

A irresponsabilidade do deputado Eduardo Bolsonaro, ao se engajar em atos e palavras de hostilidade contra países dos quais não tem suficiente conhecimento, conflita com a melhor tradição diplomática brasileira e fere os princípios que regem as relações exteriores do Brasil consagrados na Constituição. Até quando? Talvez o deputado se comporte com tamanho desassombro reiteradas vezes, a despeito dos males que causa ao País, porque receba mais incentivos do que admoestações de seu pai, assim como um filho malcriado cujas travessuras mais entretêm do que constrangem.

O atrevimento do presidente da CREDN causa fissuras em relações externas construídas ao longo de muitos anos, pautadas pela confiança e pelo respeito mútuos. Caso Eduardo Bolsonaro continue a fazer o que faz, repetidamente, sem que nada nem ninguém lhe aplique o devido corretivo, tais fissuras podem se tornar rachaduras irreparáveis.

A regulamentação do Fundeb – Opinião | O Estado de S. Paulo

Ao manter regras, relator evitou que recursos do ensino público sejam repassados ao privado

Apresentado pelo deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), o parecer sobre o projeto de regulamentação do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que foi aprovado em agosto pelo Congresso, manteve o dispositivo que autoriza o repasse de recursos públicos para escolas privadas apenas na educação infantil (creche e pré-escola), na educação no campo (rural) e na educação especial – e, assim mesmo, quando não houver vagas na rede pública. 

O único acréscimo é com relação à educação profissional de ensino médio. Em seu parecer, o relator introduziu um dispositivo que permite que recursos do Fundeb possam ser destinados a escolas particulares sem fins lucrativos que atuem nessa modalidade. 

Foi mais uma derrota política sofrida pela área educacional do governo Bolsonaro, que vinha, desde 2019, acenando com a possibilidade de aumentar repasses de recursos públicos para escolas privadas de ensino básico. Essa era uma antiga reivindicação de instituições escolares mantidas por entidades religiosas e filantrópicas. E como em 2020 as receitas do ensino privado foram afetadas pelo aumento da inadimplência decorrente da pandemia, certos empresários do setor passaram a pressionar o governo para que, na regulamentação do novo Fundeb, fosse ampliada indistintamente para toda a educação básica a autorização para receber recursos do Fundeb. 

Desde então, essas pretensões e pressões vêm sendo duramente criticadas por promotores e procuradores do Ministério Público (MP), técnicos de Tribunais de Contas e ONGs do setor educacional. Para os membros do MP, se o Legislativo acolher as pretensões das autoridades educacionais do governo, do empresariado do setor educacional e de instituições confessionais, filantrópicas e comunitárias, ficará aberto o caminho para a terceirização do ensino público. Entre outros motivos, porque Estados e municípios não precisariam mais investir na construção e gestão de escolas, como é determinado pela Constituição. Além de se eximir de suas obrigações legais, Estados e municípios financiariam escolas particulares num período de crise, em detrimento do ensino público. 

Já para os técnicos dos Tribunais de Contas, o uso indiscriminado de recursos educacionais para a oferta de vagas por escolas particulares em redes conveniadas na educação básica obrigatória é vedado por vários dispositivos constitucionais, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação e pelo Plano Nacional de Educação, instituído pela Lei n.º 13.005/14. Além disso, não faz sentido alargar o alcance das hipóteses legais que permitem repasses de dinheiro público a escolas privadas por meio de uma regulamentação que colide com o espírito do novo Fundeb, aprovado por emenda constitucional. Seria uma afronta ao princípio da hierarquia das leis, dizem eles. 

As críticas das ONGs do setor educacional vão na mesma linha. Segundo elas, a maior parte das escolas privadas conveniadas com as redes públicas de ensino básico está localizada nas cidades mais ricas do País. Por isso, eventuais concessões para beneficiar instituições confessionais, filantrópicas e comunitárias não beneficiariam os municípios mais pobres – ao contrário, aumentariam as desigualdades do sistema educacional, colidindo assim com o espírito e os objetivos do novo Fundeb.

O deputado Felipe Rigoni teve o bom senso de preservar quase tudo o que foi previsto pela emenda constitucional que criou o novo Fundeb. Além disso, conseguiu garantir que o processo operacional das transferências dos recursos para os Estados e municípios já esteja submetido às novas regras no próximo ano. Por isso, o relatório, que deverá ser votado nos próximos dias, foi muito bem recebido pelos pedagogos especializados em ensino básico. Seu grande mérito foi evitar a captura, pelo setor educacional privado, da principal fonte de financiamento do ensino público.

Erário não deve cobrir déficit em fundos de estatais – Opinião | | O Globo

Rombo em 12 dessas entidades chega perto de R$ 21 bilhões. O contribuinte não pode pagar a conta

O déficit de um conjunto de 12 fundos de pensão de estatais da União acaba de ser calculado pelo Ministério da Economia. São nada menos que R$ 20,6 bilhões, rombo que simboliza a incúria das corporações públicas com o dinheiro do contribuinte. O levantamento sobre a situação desses fundos revela que o buraco resulta de um erro cometido repetidas vezes na criação de planos de aposentadoria para os empregados, inspirados nas regras em vigor para o funcionalismo público que, como comprova a situação da Previdência, são insustentáveis no longo prazo.

A situação dos fundos deriva do impacto do modelo de “benefício definido”, em que os aposentados recebem um valor preestabelecido, independentemente de haver dinheiro para pagar. Era assim que funcionavam as aposentadorias até que o Plano Real forçou tais fundos a implementar ajustes. Eles criaram novos planos e aumentaram contribuições, mas o déficit atuarial — previsão de arrecadação menos os pagamentos devidos no futuro — continua gigantesco. Os novos planos passaram a ser de “contribuição definida”, como na previdência privada, e também de “contribuição variável”. Mas os antigos funcionam como um ralo para onde escoam bilhões. Prova disso é a situação dos fundos de funcionários de Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Correios, Eletrobras e Petrobras.

Em artigo no GLOBO, o ex-ministro Roberto Campos já alertava há anos que o BB transferia mais dinheiro ao fundo dos funcionários (Previ), do que pagava em dividendos ao Tesouro. Pois hoje a Previ tem um rombo de R$ 4,5 bilhões, porque mantém cinco planos do tipo “benefício definido”, em que estão 124 mil beneficiários, quase todos já aposentados. Na Petrobras, o Petros carrega um déficit de R$ 3,1 bilhões pela mesma razão. Seus quatro planos que garantem o valor da aposentadoria têm 70 mil participantes e somam um rombo de R$ 3,3 bilhões. A história se repete na Caixa Econômica (déficit de R$ 5,4 bilhões), no BNDES (R$ 1,4 bilhão), na Eletrobras e nos Correios.

Cabe perguntar, sobre as duas últimas estatais, como serão tratados os passivos dos fundos quando forem privatizadas. Nos Correios, o déficit de R$ 6,8 bilhões é causado quase na totalidade por 42% de 80 mil funcionários que optaram pelo “benefício definido” e já se aposentaram. Na Eletrobras, os nove planos que garantem o valor da aposentadoria têm 27 mil inscritos, dos quais 82% já recebem a aposentadoria. Têm um buraco de R$ 1 bilhão.

Os fundos das estatais se tornaram grandes investidores do capitalismo de compadrio nacional. Foram usados politicamente, especialmente pelos governos petistas interessados em turbinar “investimentos estratégicos” em setores como telecomunicações, energia ou infraestrutura. Também se tornaram foco de inúmeros esquemas de corrupção. Se não trouxeram o retorno para pagar os benefícios, porque não adotaram critérios de mercado, os administradores é que devem arcar com a responsabilidade pela gestão temerária. Não faz sentido repassar a conta ao contribuinte mais uma vez.

Fracasso após retomada do Alemão resulta do uso político da segurança – Opinião | O Globo

Ocupado durante megaoperação dez anos atrás, complexo de favelas voltou a ser dominado pelo tráfico

No dia 25 de novembro de 2010, a população fluminense acompanhava pela TV, com avidez típica de um blockbuster, as cenas eletrizantes da ocupação dos Complexos da Penha e do Alemão pelas forças de segurança. Como resposta a uma série de ataques do tráfico que levaram terror à capital fluminense, o governo decidiu ocupar as favelas da região, principal bunker do crime organizado. Ganharam o mundo as imagens de blindados avançando sobre vias estreitas e bandidos batendo em retirada.

Inegavelmente, a retomada do Alemão pelo Estado, simbolizada no hasteamento da bandeira nacional no alto do morro, foi um marco na segurança do Rio. Mostrou que, com planejamento, inteligência e ações integradas, era possível vencer o tráfico. Na esteira da ocupação, vieram as UPPs, o teleférico, o cinema e uma série de serviços de que o Alemão foi privado por anos. Era, enfim, a esperada cidadania.

Por tudo isso, é desalentador perceber que, dez anos depois, quem bateu em retirada foi o Estado. Como mostrou reportagem do GLOBO no domingo, as facções retomaram seus pontos, e tudo voltou ao anormal. “Hoje, quem domina aquele território não é o Estado. É o tráfico”, afirma o secretário de Polícia Civil, Allan Turnowski. Acuados, policiais da UPP mal patrulham a área. Prisões e apreensões de droga despencaram nos últimos quatro anos. O teleférico, cartão-postal do novo Alemão, está parado. Correios, cinema, banco, até a delegacia foram embora. Restou a velha cidade partida.

A derrocada do plano de segurança do Alemão e de outras comunidades do Rio é um exemplo do que pode ocorrer quando o setor é contaminado pela política, quando projetos não têm continuidade. Segurança deveria ser agenda de Estado, não de governo. Com fins eleitoreiros, Sérgio Cabral e o sucessor, Luiz Fernando Pezão, ambos presos por corrupção, expandiram demasiadamente o projeto das UPPs, mesmo sabendo que não havia estrutura para isso. O fracasso era questão de tempo. Serviu apenas à propaganda oficial, embalada pelos versos de “Juízo Final”, de Nelson Cavaquinho (“O sol há de brilhar mais uma vez...”). O tempo fechou há anos, e não só no Alemão.

Na reportagem sobre a década perdida na segurança, a fotografia da moradora Vanessa Sales Félix, grávida, é a imagem do que o Alemão poderia ser. A foto de sua filha, Ágatha Félix, fantasiada de Mulher Maravilha, é o retrato contundente do que verdadeiramente é. Nascida quatro meses após a ocupação, num ambiente que prometia dias melhores, Ágatha morreu em 20 de setembro do ano passado, atingida por uma bala perdida dentro de uma Kombi. Tinha 8 anos. O disparo a esmo partiu do fuzil de um PM, da mesma polícia que viera para pacificar.

Remediar o estrago – Opinião | Folha de S. Paulo

Governo enfim se mexe para campanha e plano de vacinação, mas Bolsonaro é risco

Se nada mais sair errado, na próxima semana o governo dará dois passos para começar a desfazer o estrago perpetrado por Jair Bolsonaro na imagem pública da vacinação contra a Covid-19. Um surto atrasado de realismo e responsabilidade; antes tarde do que nunca.

Espera-se nos próximos dias o planejamento de imunização do Ministério da Saúde, como noticiou o jornal O Globo. Poucos detalhes vieram a lume, além de que se seguirão as bases do Plano Nacional de Imunização, o bem-sucedido braço do Sistema Único de Saúde.

Quanto mais cedo o plano fosse apresentado, mais profundo seria o exame por especialistas e melhor a chance de ser aperfeiçoado e conquistar apoio da sociedade. O ministro Eduardo Pazuello, porém, parecia hesitar diante desse óbvio e urgente movimento.

O presidente da República, afinal, fez de tudo para semear descrédito na imunização. Movido pelo temor de que a Coronavac rendesse crédito eleitoral ao adversário João Doria (PSDB), governador de São Paulo, Bolsonaro lança suspeita sobre todas as vacinas.

A procrastinação no Planalto levou o Supremo Tribunal Federal a marcar para 4 de dezembro julgamento de ações de partidos de oposição que pedem detalhes do planejamento para vacinação.

Antes disso, a Advocacia-Geral da União agiu para barrar informações sobre tal plano solicitadas pelo Tribunal de Contas da União —em agosto.

O segundo passo tardio na direção correta foi prometido pelo ministério também para a primeira semana de dezembro: campanha de conscientização sobre eficácia e segurança das vacinas contra a Covid-19, quando forem autorizadas pela Anvisa.

Em boa hora, porque a confiança da população nelas vem caindo, como constatou pesquisa Datafolha em quatro capitais.

Ambos os movimentos ainda podem ser revertidos, decerto, se houver nova recaída presidencial na desrazão. Seria ingênuo desconsiderar a truculência de Bolsonaro com subalternos quando estes tomam decisões técnicas e criteriosas —basta lembrar a defenestração de dois titulares da pasta.

Sob gestão de Pazuello, general com fama de especialista em logística, o ministério se curvou aos caprichos do chefe e, pior, mostrou pífio desempenho na coordenação de outros órgãos.

Milhões de testes diagnósticos pegam poeira em armazéns, enquanto se anuncia nova alta da epidemia, e o governo federal nem mesmo consegue despender as verbas extraordinárias alocadas para combater o coronavírus.

Não espanta que, de atraso em atraso, avancem as mortes.

Humano e genial – Opinião | Folha de S. Paulo

Dentro e fora dos campos, o argentino Maradona uniu o admirável e o equivocado

Morto nesta quarta-feira (25), Diego Armando Maradona Franco simbolizou como nenhum outro jogador a relação entre o que acontece dentro das quatro linhas do futebol e o mundo além delas.

Se Pelé foi o nome à frente da transformação do esporte num fenômeno global, o argentino capitaneou a reação ao negócio multimilionário. Vocalizou demandas sindicais dos atletas e apontou repetidamente a corrupção de seus dirigentes —sem deixar de se aliar a eles quando lhe interessava.

A transformação em ícone da esquerda latino-americana, denotada pela famosa tatuagem de Che Guevara, materializou-se com o empréstimo de sua imagem ao regime cubano, com o apoio ao chavismo e ao kirchnerismo e com protestos contra o governo americano.

Maradona desenvolveu extraordinária ligação sentimental com seu país. Não há de ser coincidência que sua maior atuação, e uma das mais famosas de qualquer atleta em qualquer esporte, tenha se dado na partida em que a Argentina eliminou a Inglaterra na Copa de 1986 —apenas quatro anos depois de os ingleses humilharem os argentinos na Guerra das Malvinas.

Fora da política, acabou por converter sua vida em uma das mais conhecidas histórias de envolvimento com drogas. Os sucessivos altos e baixos, com internações em hospitais e frequente proximidade com a morte, decerto resultaram em efeito mais didático do que muitas campanhas de saúde sobre a dependência química.

Teve tempo ainda para se envolver com a máfia italiana, o que resultou em outro episódio no qual as linhas do gramado do futebol ficaram borradas por questões fora delas. Segundo uma tese de investigação, a Camorra levou o Napoli, clube onde Maradona mais brilhou, a entregar um campeonato.

Quando esteve livre de obstáculos extracampo, Maradona ajudou a consolidar as características que fazem do futebol uma das mais celebradas criações humanas. Durante duas décadas, escreveu uma história repleta de jogadas imprevisíveis e de momentos lúdicos.

É provável que ninguém tenha tido papel individual tão importante numa Copa como o desempenhado pelo argentino em 1986.

Como sói acontecer com os gênios, carregou o admirável e o equivocado em ligação muito próxima. No papel de ídolo que cabe às estrelas do futebol, serve de exemplo e antiexemplo. Que a história dê a Maradona o tratamento que merece —humano nos erros e acertos fora de campo, genial dentro dele.

Onda de otimismo bate mais forte na bolsa brasileira – Opinião | Valor Econômico

É provável que mais uma folga dada pelo cenário externo seja desperdiçada

As ondas de otimismo dos mercados financeiros recentes e a atual diferem. Há no curto prazo a possibilidade de vacinação segura em massa contra a covid-19 e ela também chegou à bolsa brasileira. Com o ingresso de R$ 26,7 bilhões até o dia 23, o Ibovespa alcançou o maior nível de pontos em nove meses e acumulou alta de 16,85% no mês, a maior do ano. A distensão dos mercados foi ampliada pela vitória de Joe Biden e a saída de cena de um fator maiúsculo de instabilidade, o presidente Donald Trump. Os mercados olham à frente com confiança, mas podem mudar de ideia. No caso do Brasil, o movimento de alta não parece sustentável.

Com a principal arma para assegurar a volta à normalidade econômica e social à mão - vacinas seguras e eficientes -, a busca por rentabilidade levantou as bolsas de países sob desconfiança e com desequilíbrios econômicos. A bolsa brasileira (em dólar) foi a que mais se valorizou, com 24,81%, seguida pela da instável Turquia (24%), do México, Rússia e África do Sul. À medida que os preços dos ativos se realocam haverá diferenciação, mas o movimento de aceitação do risco não vem dos fundamentos destes países, mas de fora.

Os países emergentes subiram na escala de atratividade dos investidores externos, com o índice MSCI de bolsas subindo 50% em relação ao vale de março, durante a pandemia. Eles despejaram US$ 22 bilhões nos mercados de ações apenas em novembro, segundo o IIF (FT, ontem). Pesquisa do Bank of America revela que um em cada dois administradores de fundos colocou os emergentes no topo da lista de prioridades.

Os investidores estão colocando preços em ativos com base naquilo que pode dar certo em um mundo que se livrará da covid-19 possivelmente em 2021. Reavaliarão suas premissas assim que algo der errado, e há boas doses de risco à frente. Mais estímulos fiscais e continuidade ou ampliação dos estímulos monetários com os democratas no poder nos EUA deveriam assegurar, por exemplo, a queda do dólar, que beneficiaria os emergentes em geral e os mais atolados em dívidas em particular (não é o caso do Brasil), além de dar alívio a dívidas das empresas.

No entanto, o contágio da covid-19 está se intensificando na Europa, nos Estados Unidos e, possivelmente, no Brasil. Ainda que as medidas de contenção sejam agora menos severas e provoquem menores danos econômicos, retardarão a retomada, enfraquecendo-a no quarto trimestre. A perspectiva de um Senado republicano nos EUA, se concretizada, tornará bem mais difícil a aprovação de pacotes fiscais à altura das necessidades, como ocorreu em novembro.

Mesmo em um cenário em que tudo vá bem, pode haver instabilidade. Com a vacina, o setor de serviços, que tem reagido com menor intensidade que a produção na retomada, deverá encontrar seu ritmo normal, o que torna possível uma antecipação no calendário da inflação e reversão dos sinais do Fed de que irá com juros perto do zero até 2024. Com recuperação mais robusta, a volta da simples especulação sobre quando o Fed voltará a elevar os juros tende a provocar sobressaltos maiores em um mundo muito mais endividado do que antes da pandemia.

No curto prazo, o otimismo dos mercados é benéfico ao Brasil. A queda do dólar, cuja duração oscilará ao sabor das soluções fiscais que surgirem no horizonte, pode reverter parte da forte pressão sobre os preços em um momento em que a alta da inflação se mostra mais prolongada do que o previsto - embora distante da meta. A busca do risco ajuda a rolagem da dívida pública. Em outubro o volume da dívida mobiliária interna em mãos de investidores estrangeiros já subiu de 9,44% para 9,79%, com aporte de R$ 25 bilhões.

Com algum arrefecimento da pressão cambial sobre a inflação, os juros poderão continuar por mais tempo em seus baixos níveis atuais e a rolagem da dívida se tornar menos custosa e mais suave do que foi nos últimos meses. No entanto, os juros longos se descolaram dos curtos, sinalizando que a Selic a 2% não é sustentável e que a inflação será maior, ambos sustentados pela desconfiança sobre a sustentabilidade fiscal do Brasil. Essa desconfiança só abrandará quando cessar (se cessar) a indecisão do governo, especialmente a do presidente, sobre rumos para as contas fiscais, o teto de gastos (ou alternativa crível a ele) e as reformas, que não andam.

É provável que mais uma folga dada pelo cenário externo seja desperdiçada, embora seja mais uma oportunidade de acertar o prumo e voltar ao crescimento.

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