No
país de Jair Bolsonaro, os pobres e desempregados, que vão enfrentar inevitável
redução de renda, podem esperar
No país do presidente Jair Bolsonaro, os pobres e desempregados podem esperar. Sem qualquer plano factível para enfrentar a inevitável redução da renda de milhões de seus compatriotas em razão do fim do auxílio emergencial, Bolsonaro escolheu a negação: comporta-se ora como se o problema não fosse dele, ora como se os pobres afinal não existissem.
Não
se pode dizer que o presidente seja incoerente. Para quem jura que em 1970
participou da repressão à luta armada durante a ditadura militar – mesmo que se
possa comprovar facilmente que, na época, ele tinha apenas 15 anos de idade –
não é difícil inventar que governa o País das Maravilhas.
Movido
por devaneios desse tipo desde que tomou posse, Bolsonaro é uma inesgotável
fonte de fantasias a respeito dos feitos de sua administração e do país que
preside. Não fossem os “inimigos” do Brasil – a oposição, a imprensa, os
governadores, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, a OMS, a ONU, os países
europeus, a China, o coronavírus, a libertinagem no carnaval e o que mais
aparecer –, estaríamos gozando a glória do pleno desenvolvimento econômico,
social e moral.
No
Brasil de Bolsonaro, por exemplo, não há racismo. Sem dedicar uma única palavra
de conforto à família de um homem negro brutalmente assassinado por seguranças
brancos num supermercado de Porto Alegre, crime que chocou o País, o presidente
preferiu dizer que vivemos em harmonia racial e que o lugar de quem denuncia o
racismo é o “lixo”.
Também
no Brasil de Bolsonaro, não há devastação da Amazônia e do Pantanal e nunca se
protegeu tanto o meio ambiente como em seu governo. Todas as críticas de
governos estrangeiros e da imprensa a respeito do inegável avanço do
desmatamento, diz o presidente, são fruto de uma campanha internacional
destinada a manchar a imagem do País e prejudicar sua economia.
Na
Shangri-lá exuberante de Bolsonaro, só “moleques” e “maricas” têm medo da
pandemia de covid-19, pois afinal bastam algumas doses de cloroquina, o elixir
bolsonarista, para derrotar o coronavírus. No começo, Bolsonaro qualificou a
doença como “gripezinha”; agora, a ameaça de recrudescimento da pandemia é
tratada pelo presidente como “conversinha”. De diminutivo em diminutivo,
Bolsonaro – que trocou de ministro da Saúde até que encontrasse um que lhe
fizesse todas as vontades, que faz campanha descarada contras as medidas de
prevenção e que agora se empenha em desestimular a vacinação – esquiva-se da
responsabilidade pela tragédia dos 170 mil mortos e de uma economia em
frangalhos.
No
mundo encantado de Bolsonaro, ao contrário, a economia do Brasil está sempre
prestes a “decolar” e “voltou com muita força”, nas palavras de seu auxiliar
Paulo Guedes. A esta altura, porém, quem lida com dinheiro e não gosta nem um
pouco de perdê-lo tem demonstrado enorme dificuldade em acreditar nos
prognósticos panglossianos do ministro da Economia e de seu chefe a respeito da
recuperação do País e do encaminhamento de reformas e privatizações. Os
terríveis números sobre inflação, escalada da dívida e desemprego deveriam
bastar para desautorizar o otimismo não raro delirante do Palácio do Planalto.
Assim,
aparentemente incapaz de encarar o mundo real em toda a sua aspereza, Bolsonaro
nada tem a oferecer ao País para mitigar a crise que ele, ao contrário, ajuda a
alimentar. Rejeitando todas as soluções que implicam algum grau de desgaste
político e eleitoral, pois não pensa em outra coisa a não ser em sua
sobrevivência no cargo e em sua reeleição, o presidente parece convencido de
que, para resolver os problemas, basta fingir que eles não existem.
Esse
estado de negação pode funcionar para os fanáticos que acreditam que Bolsonaro
é o taumaturgo cujo toque haverá de curar a escrófula moral do País. Para todos
os outros brasileiros, em especial os que não têm como compartilhar da ilusão
bolsonarista porque estão concentrados demais em obter a próxima refeição,
resta esperar que os demais Poderes, bem como as forças organizadas da
sociedade, trabalhem o mais rápido possível para restabelecer a razão.
Mais um incidente diplomático – Opinião | O Estado de S. Paulo
Eduardo
Bolsonaro se sente à vontade para ofender a China porque nada lhe acontece
É muito prejudicial ao País que o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) presida a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) da Câmara dos Deputados.
Em
2018, os seus eleitores podem ter julgado que ele reunia as condições
necessárias para o exercício de um mandato parlamentar, mas seu comportamento
ofensivo e irresponsável no trato com outras nações mostra que o deputado não
está à altura da presidência de uma das mais importantes comissões permanentes
da Casa. Compete à CREDN, por exemplo, apreciar projetos de lei, tratados internacionais
e outras proposições referentes às áreas de defesa e de política externa
brasileiras. Compete à comissão, ainda, o acompanhamento e a fiscalização das
ações do Poder Executivo no âmbito daquelas áreas, como dispõe a Constituição.
As
reiteradas aleivosias do deputado Eduardo Bolsonaro podem servir muito bem como
combustível para incendiar os ânimos das hostes bolsonaristas nas redes
sociais, altamente inflamáveis por natureza, mas, ao fim e ao cabo, têm causado
enormes danos à imagem do Brasil e elevado de forma significativa o risco de
prejuízos financeiros para o País.
O
mais recente incidente diplomático causado pelo filho “03” do presidente Jair
Bolsonaro – certamente não terá sido o último – envolveu mais uma vez a China,
nada menos do que o maior parceiro comercial do Brasil. Em uma série de
mensagens publicadas no Twitter, logo depois apagadas, o deputado Eduardo
Bolsonaro acusou o Partido Comunista da China e empresas chinesas de praticar
“espionagem cibernética”. As acusações feitas pelo parlamentar não se
sustentam. Baseiam-se em teorias conspirativas e têm como pano de fundo a
disputa comercial e geopolítica entre os Estados Unidos e a China para venda de
equipamentos da rede 5G em todo o mundo.
A
gravidade do ato hostil do deputado Eduardo Bolsonaro pode ser medida pelo tom
da resposta do porta-voz da embaixada da China no Brasil, a mais incisiva até o
momento (o “03” é useiro e vezeiro nas ofensas ao país asiático). Em
comunicado, a embaixada chinesa recomendou que Eduardo Bolsonaro, sem citá-lo
nominalmente, evite “ir longe demais no caminho equivocado” de atribular a
relação entre os dois países. Caso contrário, prossegue a embaixada, “deverá
arcar com as consequências negativas e carregar a responsabilidade histórica de
perturbar a normalidade da parceria China-Brasil”.
A
embaixada chinesa teve o cuidado de lembrar o que está em jogo. “Ao longo dos
46 anos de relações diplomáticas, a parceria sino-brasileira conheceu um rápido
desenvolvimento graças aos esforços de ambas as partes. A China tem sido o
maior parceiro comercial do Brasil há 11 anos consecutivos, e é também o país
com mais investimentos no Brasil”, diz o comunicado. Entre os meses de janeiro
e outubro deste ano, as exportações do Brasil para a China somaram US$ 58,5
bilhões, correspondentes a um terço de todas as exportações do País. É disso
que se trata do ponto de vista econômico.
A
irresponsabilidade do deputado Eduardo Bolsonaro, ao se engajar em atos e
palavras de hostilidade contra países dos quais não tem suficiente conhecimento,
conflita com a melhor tradição diplomática brasileira e fere os princípios que
regem as relações exteriores do Brasil consagrados na Constituição. Até quando?
Talvez o deputado se comporte com tamanho desassombro reiteradas vezes, a
despeito dos males que causa ao País, porque receba mais incentivos do que
admoestações de seu pai, assim como um filho malcriado cujas travessuras mais
entretêm do que constrangem.
O
atrevimento do presidente da CREDN causa fissuras em relações externas
construídas ao longo de muitos anos, pautadas pela confiança e pelo respeito
mútuos. Caso Eduardo Bolsonaro continue a fazer o que faz, repetidamente, sem
que nada nem ninguém lhe aplique o devido corretivo, tais fissuras podem se
tornar rachaduras irreparáveis.
A regulamentação do Fundeb – Opinião | O Estado de S. Paulo
Ao
manter regras, relator evitou que recursos do ensino público sejam repassados
ao privado
Apresentado pelo deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), o parecer sobre o projeto de regulamentação do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que foi aprovado em agosto pelo Congresso, manteve o dispositivo que autoriza o repasse de recursos públicos para escolas privadas apenas na educação infantil (creche e pré-escola), na educação no campo (rural) e na educação especial – e, assim mesmo, quando não houver vagas na rede pública.
O
único acréscimo é com relação à educação profissional de ensino médio. Em seu
parecer, o relator introduziu um dispositivo que permite que recursos do Fundeb
possam ser destinados a escolas particulares sem fins lucrativos que atuem
nessa modalidade.
Foi
mais uma derrota política sofrida pela área educacional do governo Bolsonaro,
que vinha, desde 2019, acenando com a possibilidade de aumentar repasses de
recursos públicos para escolas privadas de ensino básico. Essa era uma antiga
reivindicação de instituições escolares mantidas por entidades religiosas e
filantrópicas. E como em 2020 as receitas do ensino privado foram afetadas pelo
aumento da inadimplência decorrente da pandemia, certos empresários do setor
passaram a pressionar o governo para que, na regulamentação do novo Fundeb,
fosse ampliada indistintamente para toda a educação básica a autorização para
receber recursos do Fundeb.
Desde
então, essas pretensões e pressões vêm sendo duramente criticadas por
promotores e procuradores do Ministério Público (MP), técnicos de Tribunais de
Contas e ONGs do setor educacional. Para os membros do MP, se o Legislativo
acolher as pretensões das autoridades educacionais do governo, do empresariado
do setor educacional e de instituições confessionais, filantrópicas e
comunitárias, ficará aberto o caminho para a terceirização do ensino público.
Entre outros motivos, porque Estados e municípios não precisariam mais investir
na construção e gestão de escolas, como é determinado pela Constituição. Além
de se eximir de suas obrigações legais, Estados e municípios financiariam
escolas particulares num período de crise, em detrimento do ensino
público.
Já
para os técnicos dos Tribunais de Contas, o uso indiscriminado de recursos
educacionais para a oferta de vagas por escolas particulares em redes
conveniadas na educação básica obrigatória é vedado por vários dispositivos
constitucionais, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação e pelo Plano
Nacional de Educação, instituído pela Lei n.º 13.005/14. Além disso, não faz
sentido alargar o alcance das hipóteses legais que permitem repasses de
dinheiro público a escolas privadas por meio de uma regulamentação que colide
com o espírito do novo Fundeb, aprovado por emenda constitucional. Seria uma
afronta ao princípio da hierarquia das leis, dizem eles.
As
críticas das ONGs do setor educacional vão na mesma linha. Segundo elas, a
maior parte das escolas privadas conveniadas com as redes públicas de ensino
básico está localizada nas cidades mais ricas do País. Por isso, eventuais
concessões para beneficiar instituições confessionais, filantrópicas e
comunitárias não beneficiariam os municípios mais pobres – ao contrário,
aumentariam as desigualdades do sistema educacional, colidindo assim com o
espírito e os objetivos do novo Fundeb.
O
deputado Felipe Rigoni teve o bom senso de preservar quase tudo o que foi
previsto pela emenda constitucional que criou o novo Fundeb. Além disso,
conseguiu garantir que o processo operacional das transferências dos recursos
para os Estados e municípios já esteja submetido às novas regras no próximo
ano. Por isso, o relatório, que deverá ser votado nos próximos dias, foi muito
bem recebido pelos pedagogos especializados em ensino básico. Seu grande mérito
foi evitar a captura, pelo setor educacional privado, da principal fonte de
financiamento do ensino público.
Erário não deve cobrir déficit em fundos de estatais – Opinião | | O Globo
Rombo
em 12 dessas entidades chega perto de R$ 21 bilhões. O contribuinte não pode
pagar a conta
O
déficit de um conjunto de 12 fundos de pensão de estatais da União acaba de ser
calculado pelo Ministério da Economia. São nada menos que R$ 20,6 bilhões,
rombo que simboliza a incúria das corporações públicas com o dinheiro do
contribuinte. O levantamento sobre a situação desses fundos revela que o buraco
resulta de um erro cometido repetidas vezes na criação de planos de
aposentadoria para os empregados, inspirados nas regras em vigor para o
funcionalismo público que, como comprova a situação da Previdência, são
insustentáveis no longo prazo.
A
situação dos fundos deriva do impacto do modelo de “benefício definido”, em que
os aposentados recebem um valor preestabelecido, independentemente de haver
dinheiro para pagar. Era assim que funcionavam as aposentadorias até que o
Plano Real forçou tais fundos a implementar ajustes. Eles criaram novos planos
e aumentaram contribuições, mas o déficit atuarial — previsão de arrecadação
menos os pagamentos devidos no futuro — continua gigantesco. Os novos planos
passaram a ser de “contribuição definida”, como na previdência privada, e
também de “contribuição variável”. Mas os antigos funcionam como um ralo para
onde escoam bilhões. Prova disso é a situação dos fundos de funcionários de
Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Correios, Eletrobras e Petrobras.
Em
artigo no GLOBO, o ex-ministro Roberto Campos já alertava há anos que o BB
transferia mais dinheiro ao fundo dos funcionários (Previ), do que pagava em
dividendos ao Tesouro. Pois hoje a Previ tem um rombo de R$ 4,5 bilhões, porque
mantém cinco planos do tipo “benefício definido”, em que estão 124 mil
beneficiários, quase todos já aposentados. Na Petrobras, o Petros carrega um
déficit de R$ 3,1 bilhões pela mesma razão. Seus quatro planos que garantem o
valor da aposentadoria têm 70 mil participantes e somam um rombo de R$ 3,3
bilhões. A história se repete na Caixa Econômica (déficit de R$ 5,4 bilhões),
no BNDES (R$ 1,4 bilhão), na Eletrobras e nos Correios.
Cabe
perguntar, sobre as duas últimas estatais, como serão tratados os passivos dos
fundos quando forem privatizadas. Nos Correios, o déficit de R$ 6,8 bilhões é
causado quase na totalidade por 42% de 80 mil funcionários que optaram pelo
“benefício definido” e já se aposentaram. Na Eletrobras, os nove planos que
garantem o valor da aposentadoria têm 27 mil inscritos, dos quais 82% já
recebem a aposentadoria. Têm um buraco de R$ 1 bilhão.
Os
fundos das estatais se tornaram grandes investidores do capitalismo de
compadrio nacional. Foram usados politicamente, especialmente pelos governos
petistas interessados em turbinar “investimentos estratégicos” em setores como
telecomunicações, energia ou infraestrutura. Também se tornaram foco de
inúmeros esquemas de corrupção. Se não trouxeram o retorno para pagar os
benefícios, porque não adotaram critérios de mercado, os administradores é que
devem arcar com a responsabilidade pela gestão temerária. Não faz sentido
repassar a conta ao contribuinte mais uma vez.
Fracasso após retomada do Alemão resulta do uso político da segurança – Opinião | O Globo
Ocupado
durante megaoperação dez anos atrás, complexo de favelas voltou a ser dominado
pelo tráfico
No
dia 25 de novembro de 2010, a população fluminense acompanhava pela TV, com
avidez típica de um blockbuster,
as cenas eletrizantes da ocupação dos Complexos da Penha e do Alemão pelas
forças de segurança. Como resposta a uma série de ataques do tráfico que
levaram terror à capital fluminense, o governo decidiu ocupar as favelas da
região, principal bunker do crime organizado. Ganharam o mundo as imagens de
blindados avançando sobre vias estreitas e bandidos batendo em retirada.
Inegavelmente,
a retomada do Alemão pelo Estado, simbolizada no hasteamento da bandeira
nacional no alto do morro, foi um marco na segurança do Rio. Mostrou que, com
planejamento, inteligência e ações integradas, era possível vencer o tráfico.
Na esteira da ocupação, vieram as UPPs, o teleférico, o cinema e uma série de
serviços de que o Alemão foi privado por anos. Era, enfim, a esperada
cidadania.
Por
tudo isso, é desalentador perceber que, dez anos depois, quem bateu em retirada
foi o Estado. Como mostrou reportagem do GLOBO no domingo, as facções retomaram
seus pontos, e tudo voltou ao anormal. “Hoje, quem domina aquele território não
é o Estado. É o tráfico”, afirma o secretário de Polícia Civil, Allan
Turnowski. Acuados, policiais da UPP mal patrulham a área. Prisões e apreensões
de droga despencaram nos últimos quatro anos. O teleférico, cartão-postal do
novo Alemão, está parado. Correios, cinema, banco, até a delegacia foram
embora. Restou a velha cidade partida.
A
derrocada do plano de segurança do Alemão e de outras comunidades do Rio é um
exemplo do que pode ocorrer quando o setor é contaminado pela política, quando
projetos não têm continuidade. Segurança deveria ser agenda de Estado, não de
governo. Com fins eleitoreiros, Sérgio Cabral e o sucessor, Luiz Fernando
Pezão, ambos presos por corrupção, expandiram demasiadamente o projeto das
UPPs, mesmo sabendo que não havia estrutura para isso. O fracasso era questão
de tempo. Serviu apenas à propaganda oficial, embalada pelos versos de “Juízo
Final”, de Nelson Cavaquinho (“O sol há de brilhar mais uma vez...”). O tempo
fechou há anos, e não só no Alemão.
Na
reportagem sobre a década perdida na segurança, a fotografia da moradora
Vanessa Sales Félix, grávida, é a imagem do que o Alemão poderia ser. A foto de
sua filha, Ágatha Félix, fantasiada de Mulher Maravilha, é o retrato
contundente do que verdadeiramente é. Nascida quatro meses após a ocupação, num
ambiente que prometia dias melhores, Ágatha morreu em 20 de setembro do ano
passado, atingida por uma bala perdida dentro de uma Kombi. Tinha 8 anos. O
disparo a esmo partiu do fuzil de um PM, da mesma polícia que viera para
pacificar.
Remediar o estrago – Opinião | Folha de S. Paulo
Governo
enfim se mexe para campanha e plano de vacinação, mas Bolsonaro é risco
Se
nada mais sair errado, na próxima semana o governo dará dois passos para
começar a desfazer o estrago perpetrado por Jair Bolsonaro na imagem pública da
vacinação contra a Covid-19. Um surto atrasado de realismo e responsabilidade;
antes tarde do que nunca.
Espera-se
nos próximos dias o planejamento de imunização do Ministério da Saúde, como
noticiou o jornal O Globo. Poucos detalhes vieram a lume, além de que se
seguirão as bases do Plano Nacional de Imunização, o bem-sucedido braço do Sistema
Único de Saúde.
Quanto
mais cedo o plano fosse apresentado, mais profundo seria o exame por
especialistas e melhor a chance de ser aperfeiçoado e conquistar apoio da
sociedade. O ministro Eduardo Pazuello, porém, parecia hesitar diante desse
óbvio e urgente movimento.
O
presidente da República, afinal, fez de tudo para semear descrédito na
imunização. Movido pelo temor de que a Coronavac rendesse crédito eleitoral ao
adversário João Doria (PSDB), governador de São Paulo, Bolsonaro lança suspeita
sobre todas as vacinas.
A
procrastinação no Planalto levou o Supremo Tribunal Federal a marcar para 4 de
dezembro julgamento de ações de partidos de oposição que pedem detalhes do
planejamento para vacinação.
Antes
disso, a Advocacia-Geral da União agiu para barrar informações sobre tal plano
solicitadas pelo Tribunal de Contas da União —em agosto.
O
segundo passo tardio na direção correta foi prometido pelo ministério também
para a primeira semana de dezembro: campanha de
conscientização sobre eficácia e segurança das vacinas contra a
Covid-19, quando forem autorizadas pela Anvisa.
Em
boa hora, porque a confiança da população nelas vem caindo, como constatou
pesquisa Datafolha em quatro capitais.
Ambos
os movimentos ainda podem ser revertidos, decerto, se houver nova recaída
presidencial na desrazão. Seria ingênuo desconsiderar a truculência de
Bolsonaro com subalternos quando estes tomam decisões técnicas e criteriosas
—basta lembrar a defenestração de dois titulares da pasta.
Sob
gestão de Pazuello, general com fama de especialista em logística, o ministério
se curvou aos caprichos do chefe e, pior, mostrou pífio desempenho na
coordenação de outros órgãos.
Milhões
de testes diagnósticos pegam poeira em armazéns, enquanto se anuncia nova alta
da epidemia, e o governo federal nem mesmo consegue despender as verbas
extraordinárias alocadas para combater o coronavírus.
Não
espanta que, de atraso em atraso, avancem as mortes.
Humano e genial – Opinião | Folha de S. Paulo
Dentro
e fora dos campos, o argentino Maradona uniu o admirável e o equivocado
Morto nesta
quarta-feira (25), Diego Armando Maradona Franco simbolizou como
nenhum outro jogador a relação entre o que acontece dentro das quatro linhas do
futebol e o mundo além delas.
Se
Pelé foi o nome à frente da transformação do esporte num fenômeno global, o
argentino capitaneou a reação ao negócio multimilionário. Vocalizou demandas
sindicais dos atletas e apontou repetidamente a corrupção de seus dirigentes
—sem deixar de se aliar a eles quando lhe interessava.
A
transformação em ícone da esquerda latino-americana, denotada pela famosa
tatuagem de Che Guevara, materializou-se com o empréstimo de sua imagem ao regime
cubano, com o apoio ao chavismo e ao kirchnerismo e com protestos contra o
governo americano.
Maradona
desenvolveu extraordinária ligação sentimental com seu país. Não há de ser
coincidência que sua maior atuação, e uma das mais famosas de qualquer atleta
em qualquer esporte, tenha se dado na partida em que a Argentina eliminou a
Inglaterra na Copa de 1986 —apenas quatro anos depois de os ingleses humilharem
os argentinos na Guerra das Malvinas.
Fora
da política, acabou por converter sua vida em uma das mais conhecidas histórias
de envolvimento com drogas. Os sucessivos altos e baixos, com internações em
hospitais e frequente proximidade com a morte, decerto resultaram em efeito
mais didático do que muitas campanhas de saúde sobre a dependência química.
Teve
tempo ainda para se envolver com a máfia italiana, o que resultou em outro
episódio no qual as linhas do gramado do futebol ficaram borradas por questões
fora delas. Segundo uma tese de investigação, a Camorra levou o Napoli, clube
onde Maradona mais brilhou, a entregar um campeonato.
Quando
esteve livre de obstáculos extracampo, Maradona ajudou a consolidar as
características que fazem do futebol uma das mais celebradas criações humanas.
Durante duas décadas, escreveu uma história repleta de jogadas imprevisíveis e
de momentos lúdicos.
É
provável que ninguém tenha tido papel individual tão importante numa Copa como
o desempenhado pelo argentino em 1986.
Como
sói acontecer com os gênios, carregou o admirável e o equivocado em ligação
muito próxima. No papel de ídolo que cabe às estrelas do futebol, serve de
exemplo e antiexemplo. Que a história dê a Maradona o tratamento que merece
—humano nos erros e acertos fora de campo, genial dentro dele.
Onda de otimismo bate mais forte na bolsa brasileira – Opinião | Valor Econômico
É
provável que mais uma folga dada pelo cenário externo seja desperdiçada
As
ondas de otimismo dos mercados financeiros recentes e a atual diferem. Há no
curto prazo a possibilidade de vacinação segura em massa contra a covid-19 e
ela também chegou à bolsa brasileira. Com o ingresso de R$ 26,7 bilhões até o
dia 23, o Ibovespa alcançou o maior nível de pontos em nove meses e acumulou
alta de 16,85% no mês, a maior do ano. A distensão dos mercados foi ampliada
pela vitória de Joe Biden e a saída de cena de um fator maiúsculo de
instabilidade, o presidente Donald Trump. Os mercados olham à frente com
confiança, mas podem mudar de ideia. No caso do Brasil, o movimento de alta não
parece sustentável.
Com
a principal arma para assegurar a volta à normalidade econômica e social à mão
- vacinas seguras e eficientes -, a busca por rentabilidade levantou as bolsas
de países sob desconfiança e com desequilíbrios econômicos. A bolsa brasileira
(em dólar) foi a que mais se valorizou, com 24,81%, seguida pela da instável
Turquia (24%), do México, Rússia e África do Sul. À medida que os preços dos
ativos se realocam haverá diferenciação, mas o movimento de aceitação do risco
não vem dos fundamentos destes países, mas de fora.
Os
países emergentes subiram na escala de atratividade dos investidores externos,
com o índice MSCI de bolsas subindo 50% em relação ao vale de março, durante a
pandemia. Eles despejaram US$ 22 bilhões nos mercados de ações apenas em
novembro, segundo o IIF (FT, ontem). Pesquisa do Bank of America revela que um
em cada dois administradores de fundos colocou os emergentes no topo da lista
de prioridades.
Os
investidores estão colocando preços em ativos com base naquilo que pode dar
certo em um mundo que se livrará da covid-19 possivelmente em 2021. Reavaliarão
suas premissas assim que algo der errado, e há boas doses de risco à frente.
Mais estímulos fiscais e continuidade ou ampliação dos estímulos monetários com
os democratas no poder nos EUA deveriam assegurar, por exemplo, a queda do
dólar, que beneficiaria os emergentes em geral e os mais atolados em dívidas em
particular (não é o caso do Brasil), além de dar alívio a dívidas das empresas.
No
entanto, o contágio da covid-19 está se intensificando na Europa, nos Estados
Unidos e, possivelmente, no Brasil. Ainda que as medidas de contenção sejam
agora menos severas e provoquem menores danos econômicos, retardarão a
retomada, enfraquecendo-a no quarto trimestre. A perspectiva de um Senado
republicano nos EUA, se concretizada, tornará bem mais difícil a aprovação de
pacotes fiscais à altura das necessidades, como ocorreu em novembro.
Mesmo
em um cenário em que tudo vá bem, pode haver instabilidade. Com a vacina, o
setor de serviços, que tem reagido com menor intensidade que a produção na
retomada, deverá encontrar seu ritmo normal, o que torna possível uma
antecipação no calendário da inflação e reversão dos sinais do Fed de que irá
com juros perto do zero até 2024. Com recuperação mais robusta, a volta da
simples especulação sobre quando o Fed voltará a elevar os juros tende a
provocar sobressaltos maiores em um mundo muito mais endividado do que antes da
pandemia.
No
curto prazo, o otimismo dos mercados é benéfico ao Brasil. A queda do dólar,
cuja duração oscilará ao sabor das soluções fiscais que surgirem no horizonte,
pode reverter parte da forte pressão sobre os preços em um momento em que a
alta da inflação se mostra mais prolongada do que o previsto - embora distante
da meta. A busca do risco ajuda a rolagem da dívida pública. Em outubro o
volume da dívida mobiliária interna em mãos de investidores estrangeiros já
subiu de 9,44% para 9,79%, com aporte de R$ 25 bilhões.
Com
algum arrefecimento da pressão cambial sobre a inflação, os juros poderão
continuar por mais tempo em seus baixos níveis atuais e a rolagem da dívida se
tornar menos custosa e mais suave do que foi nos últimos meses. No entanto, os
juros longos se descolaram dos curtos, sinalizando que a Selic a 2% não é
sustentável e que a inflação será maior, ambos sustentados pela desconfiança
sobre a sustentabilidade fiscal do Brasil. Essa desconfiança só abrandará
quando cessar (se cessar) a indecisão do governo, especialmente a do
presidente, sobre rumos para as contas fiscais, o teto de gastos (ou
alternativa crível a ele) e as reformas, que não andam.
É provável que mais uma folga dada pelo cenário externo seja desperdiçada, embora seja mais uma oportunidade de acertar o prumo e voltar ao crescimento.
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