quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Gabriela Prioli - O canto das três raças

- Folha de S. Paulo

O negacionismo mata

Somos um país racista. Em tempos em que a política se afirma pela negação do óbvio, precisamos ser diretos.

Para constatar, basta olhar para o mundo com olhos de ver: nossos espaços de poder são brancos. Todos. Avaliem as fotos dos ministros de Estado, dos integrantes do Congresso, dos ministros do STF, políticos, donos de grandes empresas. Todos. Inclusive aqueles recentemente presos por corrupção. Quantas pessoas passaram a associar a branquitude ao mau uso do dinheiro público?

Nenhuma. Dirão que associar a cor da pele de alguém à maior ou menor propensão para cometer determinado crime é racismo. E é. Por que admitimos então o discurso daqueles que justificam o trocar de calçada porque "os negros são maioria entre os presos"? Aparentemente, ninguém "trocou de calçada" ao escolher os seus candidatos.

E não, o problema não é só a divisão econômica que assola esse país de abismos sociais. Dissemos há pouco que os espaços de poder são brancos num país que só é branco pela metade. A base da nossa pirâmide social é negra. E, atentem, não por acaso: a exclusão que atinge pessoas negras considera a cor da pele porque, historicamente, foi a cor da pele o critério para a exclusão.

O discurso que segrega, como pretendem alguns críticos, não é aquele que reconhece o racismo que se impõe como realidade, mas aquele que nega o racismo estrutural.

Para o presidente e o vice, não há racismo nesta terra que tem palmeiras onde canta o sabiá. Nas palavras de Jair, "brancos, negros e índios edificaram o corpo e o espírito de um povo rico e maravilhoso". Esqueceu de contar a parte em que negros e índios, obrigados a participar na construção de algo, não partilharam dos frutos dessa construção. É só voltar à constatação do início da coluna.

O negacionismo mata de diferentes maneiras. Poucas coisas são tão exaustivas quanto afirmar o óbvio.
Como diria Clara Nunes, "todo o povo desta terra, quando pode cantar, canta de dor".

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