Uma
onda de mal-estar inunda esse país sem bússola, sem auxílio nem plano de
vacinação, hostil ao agravamento da miséria
Em
política, quase sempre a memória serve de algo. E as evidências, quando se
pensa em políticas públicas, caminham ao lado de gestões eficientes. Pois vamos
a elas. Em setembro de 2020, o IBGE antecipou a publicação da Pesquisa de
Orçamentos Familiares (POF) feita em 2017- 2018. Soube-se, na ocasião, que
cerca de 85 milhões de brasileiros sofriam, já naquela época, de “algum grau de
insegurança alimentar em 36,7% dos domicílios”.
O
nível de segurança alimentar do país chegava a seu patamar mais baixo desde que
havia começado a ser medido, em 2004, a partir da criação do Ministério de
Desenvolvimento Social (MDS), o gestor do Bolsa Família. Os dados atestavam que
10,3 milhões de pessoas viviam situações de “privação severa de alimentos”
nesse período. Pelo menos 6,5 milhões de crianças com menos de cinco anos de
idade moram em domicílios onde há algum grau de insegurança alimentar.
Lembrete: esse era um cenário anterior à pandemia.
Para além das inúmeras variáveis da escala que o IBGE usa para medir insegurança alimentar leve, moderada ou severa, é bom ser direto: insegurança alimentar é prenúncio da fome, ou a fome propriamente dita, sem disfarce. No dramático 2020, a sociedade brasileira e todos os gestores públicos tomaram conhecimento, oficialmente, pelo IBGE, de que o Brasil retornara ao Mapa da Fome, antes do impacto da covid-19.
Se
os dados nacionais não são suficientes para suscitar alguma sensibilidade, como
tem ficado claro nesta opaca era brasileira iniciada em 2018, vamos então a
outros, complementares. De 2004 a 2013, o Brasil apresentou uma redução gradual
dos níveis de insegurança alimentar, de acordo com dados da Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Em 2017-2018, no entanto,
a curva da insegurança alimentar é crescente e galopante. Em abril do ano
passado, com o mundo desorientado e sob o impacto do avanço de um vírus
desconhecido, o Relatório Global de Crises Alimentares do Programa Mundial de
Alimentação (PMA), da ONU e da FAO, estimava que 265 milhões de pessoas em todo
o mundo seriam vítimas da insegurança alimentar, agravada pela covid-19.
Veio
mais um alerta da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal),
em junho de 2020: a pandemia de covid-19 colocaria 83,4 milhões em situação de
extrema pobreza, aumentando a incidência da fome. Para quem se esqueceu do que
foi a luta contra a fome na década de 90, os vídeos de Betinho e sua Ação da
Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida estão disponíveis nas redes,
assim como os ensaios do Fome Zero, no início dos anos 2.000.
A
tragédia brasileira atual no ano da covid-19 foi pausada com a irrigação do
auxílio emergencial de R$ 600 a mais de 66 milhões de brasileiros. Ainda assim,
as evidências continuaram, insistentes, batendo à nossa porta.
Entre
os dias 19 a 22 de junho do ano passado, o DataFavela, instituto que pesquisa a
situação de vida dos 13,8 milhões de brasileiros que vivem em “aglomerados
subnormais”, para os que gostam de sutilezas, fez uma sondagem sobre a
percepção da pandemia. A pesquisa mostrou que 87% dos moradores das favelas
sentiam o impacto do aumento de gastos, pois seus filhos deixaram de ir para a
escola; 35% das famílias já tinham perdido toda a renda e 45% declararam que
viviam com menos da metade da renda familiar normal. Mais: 76% admitiram que faltou
dinheiro para comprar comida.
Gestores
públicos incompetentes ou mal intencionados desprezam evidências. Enquanto Jair
Bolsonaro pulava ao mar no litoral paulista e inovava na arte de produzir
aglomerações também aquáticas em plena explosão dos casos de covid-19 no
território que finge governar, lideranças políticas sérias tentavam negociar
com o governo federal saídas para a prorrogação do estado de calamidade pública
e, consequentemente, do auxílio emergencial em 2021.
Nada
resume melhor o sentimento de um país atropelado pelos fatos do que o meme,
espalhado nas redes sociais pós-Réveillon, de Iemanjá desesperada puxando a
mala de rodinha em terra firme após a aventura marítima de Bolsonaro no fim de
ano. Uma onda de mal-estar inunda esse país sem bússola, hostil ao agravamento
da miséria.
Prefeitos
que tomaram posse no dia 1º de janeiro pediram a vacina, mas nenhum citou a
fome. Legiões de população de rua nos grandes centros estão aí para não deixar
dúvidas do que virá. Talvez essa evidência tenha ajudado a sensibilizar o
prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), que após passar toda a campanha sem
se comprometer com um benefício emergencial - “não se trata de um leilão de
transferência de renda; o importante é focar na geração de emprego e renda e na
retomada econômica da cidade”, disse ao Valor - tomou posse prometendo estudos para
implementar um auxílio.
“O
endividamento vinculado ao socorro é mais barato. O que seria dessa crise se
não tivéssemos o auxílio, a contrapartida do seguro-desemprego a empresas?
Teríamos perto de 10% de queda do PIB. O desemprego seria muito maior, com
fome, caos e descontrole”, disse o governador do Piauí, Wellington Dias (PT),
negociador da Frente Nacional de governadores que tenta buscar, em Brasília, a
extensão da calamidade e da renda emergencial. Diálogos sem eco.
Com as condições impostas pelo Mapa da Fome, Bolsonaro segue exímio na arte de surpreender negativamente e editou, no último dia de 2020, medida provisória restringindo o pagamento do BPC (Benefício de Prestação Continuada), dado a idosos acima de 65 anos e portadores de deficiência, apenas aos que recebem até um quarto do salário mínimo. Não temos auxílio em 2021, nem plano de imunização, nem seringas, nem vacina, e meio milhão de pessoas deixarão de receber o BPC. Não é à toa que os orixás estão de malas prontas. Ao menos Bolsonaro reconheceu que não consegue fazer nada. Além de, claro, nadar contra a corrente.
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