EUA
vão ao triste patamar das repúblicas latino-americanas
Donald
Trump começou o espetáculo da sua partida deixando “House of Cards” no chinelo.
Seu telefonema de uma hora para o secretário de Estado da Geórgia, Brad
Raffensperger (um republicano), seria rejeitado por qualquer roteirista de
séries de TV. Foi desconjuntado, alternou momentos de prepotência e delírio. Ao
seu estilo, puxou a carta do Apocalipse: “O povo da Geórgia está zangado, o
país está zangado”. Falou três vezes em “tumultos”. Ameaçou e fez-se de vítima,
queixando-se do que “vocês fizeram com o presidente”.
Na
essência, Trump acha que ganhou a eleição na Geórgia por mais de cem mil votos
e telefonou para que Raffensperger contasse o resultado, arrumando-lhe 11.779
votos. Repetiu 11 vezes esse número ou o milhar arredondado. Numa das últimas
menções foi patético: “E agora? Eu só preciso de 11 mil votos. Pessoal, eu só
preciso de 11 mil votos. Tenham paciência”.
O
telefonema termina de uma forma bizarra.
Raffensperger:
“Obrigado pelo seu tempo, presidente”.
Trump:
“Ok. Obrigado, Brad”.
(Não cabe a um interlocutor encerrar uma conversa com o presidente dos Estados Unidos.)
Raffensperger
sabia com quem estava lidando. Não deu outra. No domingo, Trump soltou um tuíte
dizendo que ele não sabia de nada porque não queria ou porque não podia. O
secretário de Estado respondeu: “Respeitosamente, presidente Trump, o que o
senhor está dizendo é falso. A verdade aparecerá”. Horas depois o áudio
apareceu no “Washington Post”.
Faltavam
18 dias para a posse de Joe Biden e terminara o primeiro capítulo da série “Os
últimos dias de Trump”. Começou o segundo, menos pitoresco e muito mais grave.
Dez ex-secretários da Defesa mandaram uma carta ao “Post” dizendo que a eleição
já acabou e que os militares devem ficar fora dessa encrenca. Entre os
signatários, Richard Cheney e Donald Rumsfeld. A dupla tem mais de 40 anos de
experiência em Washington e patrocinou as guerras de George W. Bush. Dois
republicanos que não comiam mel, comiam abelha. Suas assinaturas mostram que o
núcleo tradicional do partido afastou-se de Trump.
Atitude
inédita, o manifesto colocou os Estados Unidos no triste patamar das repúblicas
latino-americanas. Como nenhum dos signatários tem biografia de vivandeira, é
razoável supor que havia algo no ar além dos aviões de carreira. Sabe-se, por
exemplo, que um general da reserva, integrante do pelotão palaciano, circulou a
ideia de colocar os Estados Unidos sob lei marcial, e um assessor de Trump
falou num possível adiamento da posse de Biden.
O
que está acontecendo em Washington é o maior espetáculo da Terra. Coisa nunca
vista, com promessa de novas emoções.
Felizmente,
o comportamento do secretário de Estado da Geórgia e dos ex-secretários de
Defesa mostra que as instituições dos Estados Unidos funcionam. Vai daí que no
dia 20 de janeiro irá ao ar o último capítulo. Não se sabe o que Trump fará.
Ele pode imitar John Adams, que foi-se embora da cidade na noite da véspera da
posse de Thomas Jefferson.
Poderia também sair da Casa Branca para um prédio que fica a uns poucos minutos de carro. Lá funciona a Associação Americana de Psiquiatria.
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