quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

O que pensa a mídia: Opiniões / Editoriais

Uma candidatura constrangedora – Opinião | O Estado de S. Paulo

É um acinte que a Câmara, cuja atual legislatura foi eleita sob o anseio de novo patamar de moralidade na vida pública, tenha sua presidência disputada pelo deputado Arthur Lira

É embaraçosa a normalidade com que tem sido aceita a candidatura do deputado Arthur Lira (Progressistas-AL) para a presidência da Câmara. Com o histórico do parlamentar, já é um tanto estranho que ele continue sendo líder do partido na Câmara. No entanto, nesses estranhos tempos, nada parece ser capaz de ruborizar seus apoiadores. Como se sabe, o seu mais ilustre apoiador é o presidente Jair Bolsonaro.

A proximidade do deputado Arthur Lira com questões penais vem de longa data. Em 2012, seu assessor parlamentar Jaymerson José Gomes foi detido pela Polícia Federal no Aeroporto de Congonhas, depois de passar pelo aparelho de raio X, com dinheiro escondido embaixo da roupa. Em relação a tais fatos, a Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou o deputado em 2018 por lavagem de dinheiro e corrupção.

Noutro caso, Arthur Lira foi acusado pelo Ministério Público Federal de chefiar na Assembleia Legislativa de Alagoas um esquema milionário de “rachadinha”, em que parte do salário dos funcionários do gabinete era destinada ao parlamentar. Segundo revelou o Estado, documentos indicam desvios da ordem de R$ 254 milhões, entre 2001 e 2007.

A Arthur Lira, a “rachadinha” teria gerado um rendimento mensal de R$ 500 mil. Recentemente se revelou que a Receita Federal, já em 2009, havia cobrado R$ 1,9 milhão do deputado relativo a impostos não pagos sobre recursos de origem desconhecida, precisamente no período em que o Ministério Público o acusa de operar o esquema de “rachadinha” em Alagoas.

Arthur Lira recorreu da multa do Fisco ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), mas seu recurso foi negado por unanimidade. Em 2017, o deputado aderiu ao Programa Especial de Regularização Tributária (Pert), reconhecendo o imposto cobrado. Atualmente, faz o pagamento parcelado.

A denúncia do Ministério Público Federal também relata a utilização de empresas para simular negócios com a Assembleia Legislativa de Alagoas. Segundo os procuradores, trata-se de manobra para “lavar” dinheiro desviado.

Além disso, Arthur Lira foi condenado em segunda instância na esfera cível por improbidade administrativa. Apesar da Lei da Ficha Limpa, conseguiu tomar posse em 2018 como deputado federal graças a uma liminar do Tribunal de Justiça de Alagoas.

Diante desse histórico, não cabe ao Palácio do Planalto dizer que apoia a candidatura de Arthur Lira para que as reformas sejam aprovadas ou para que sejam ampliados os excludentes de ilicitude para condutas ilegais de policiais. Seja qual for a agenda legislativa que o presidente da República queira promover nos próximos dois anos, é impossível que não haja, entre as mais de cinco centenas de deputados federais, outro parlamentar com uma ficha menos complicada do que a de Arthur Lira.

Mais do que favorecer determinada pauta no Legislativo, o presidente Jair Bolsonaro parece pretender, com o apoio à candidatura do líder do Progressistas, diminuir deliberadamente o patamar moral do Congresso. Caso consiga colocar na presidência da Casa um deputado que sabidamente praticou a “rachadinha” – Arthur Lira pagou até imposto em virtude dos valores recebidos por meio da prática ilegal –, talvez Jair Bolsonaro consiga que haja menos escândalo em torno das acusações contra seu primogênito, Flávio.

Mesmo com todas suas limitações e eventuais erros, a Operação Lava Jato teve um mérito inegável, reconhecido até por seus mais ferozes críticos. Ela instaurou uma nova sensibilidade em relação ao cumprimento da lei. O que antes era aceitável deixou de sê-lo. De alguma forma, com essa candidatura à presidência da Câmara, Arthur Lira e Jair Bolsonaro fazem movimento oposto ao da Lava Jato, transmitindo a mensagem de que, na política, tudo deveria ser tolerado, não importando a lei ou a decência.

É um acinte que a Câmara, cuja atual legislatura foi eleita com recorde histórico de renovação e sob o anseio de um novo e mais alto patamar de moralidade na vida pública, tenha sua presidência disputada pelo deputado Arthur Lira. O eleitor merece um mínimo de respeito.

Previsões cautelosas do mercado – Opinião / O Estado de S. Paulo

Projeções indicam recuperação lenta, mas com início de arrumação fiscal

Apesar da alardeada recuperação em V, o Brasil levará quase dois anos para voltar ao nível de produção de 2019, se os fatos confirmarem as novas expectativas do mercado, contidas no primeiro boletim Focus divulgado neste ano. Depois de ter encolhido 4,36% em 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) crescerá 3,40% em 2021 e 2,50% em 2022, segundo a mediana das projeções captadas pelo Banco Central (BC). Completado esse trajeto nada brilhante, o PIB de 2022 ficará apenas 1,36% acima do contabilizado três anos antes, no início do mandato do presidente Jair Bolsonaro. Se nenhuma grande transformação ocorrer, com a recuperação em V o País apenas confirmará sua posição entre os mais lentos na corrida global.

Muitos outros países também levarão mais de um ano para retomar a atividade anterior à pandemia. Essa previsão vale para economias avançadas, emergentes e em começo de desenvolvimento. Vários desses países, no entanto, avançaram mais velozmente que o Brasil em anos anteriores à crise da covid-19. Além disso, a vacinação contra o novo coronavírus já foi iniciada em dezenas de países. Essa vacinação é essencial para a segurança da retomada econômica.

Nenhum surto de otimismo aparece nas expectativas sintetizadas na pesquisa Focus. A perda econômica estimada para 2020 é pouco menor que a indicada no boletim da semana anterior (4,40%). Mas a mediana das projeções para 2021 também diminuiu, passando de 3,49% para 3,40%. Quatro semanas antes estava em 3,50%.

A indústria deverá contribuir muito modestamente para a retomada. A produção industrial, com aumento estimado em 4,78%, continuará bem abaixo do nível anterior à crise, depois da queda de 5% calculada para 2020. No último boletim divulgado em dezembro, o produto industrial de 2021 seria 5% maior que o do ano anterior.

O volume e o valor da produção brasileira continuarão, portanto, a depender excessivamente da agropecuária, o setor mais dinâmico e mais eficiente da economia nacional. Não há informações diretas sobre isso no boletim semanal publicado pelo BC. Mas o superávit comercial estimado em US$ 55,10 bilhões dependerá, com certeza, basicamente do agronegócio, como tem dependido há muitos anos.

A safra de grãos 2020-2021 deverá ser novo recorde, segundo o Ministério da Agricultura, mas isso dependerá, em boa parte, do sol, da chuva e dos ventos. Essas potestades têm exibido mau humor com frequência antes desconhecida. São reações, dizem especialistas em meteorologia, aos desaforos de quem favorece queimadas e outras agressões ao meio ambiente.

Os alertas têm sido inúteis. Não só em relação à pandemia, mas também diante dos desarranjos climáticos, o presidente Bolsonaro prefere o negacionismo e insiste em provocar os deuses do tempo. Com esse comportamento ele também confronta os importadores de produtos brasileiros e põe em risco muitos bilhões de dólares. A demora dos governos europeus em confirmar o acordo comercial com o Mercosul é uma conhecida consequência do antiambientalismo bolsonariano.

O crescimento econômico vai depender também do enfrentamento dos problemas fiscais. As finanças do governo foram duramente afetadas pelas medidas de combate aos efeitos da pandemia. Essas medidas foram necessárias, mas agora é preciso implantar um programa de ajuste das contas oficiais. Conter o aumento do endividamento público será uma tarefa especialmente importante, mas isso dependerá, em primeiro lugar, de um compromisso presidencial.

Sem esse compromisso, os investidores terão dificuldade para apostar na responsabilidade fiscal, ameaçada por ministros gastadores, por aliados fisiológicos e pelo empenho do presidente em garantir sua reeleição. Na virada do ano, o mercado manteve as principais estimativas do cenário fiscal, como o déficit primário (sem juros) equivalente a 10,60% do PIB em 2020 e a 3% em 2021. A projeção para este ano pressupõe uma política compatível com as expectativas dos financiadores do Tesouro. Esta é a principal demonstração de otimismo em relação ao novo ano.

Digitalização e equidade no ensino – Opinião | O Estado de S. Paulo

Brasil tem o desafio de criar uma cultura que valorize o ensino público e professores

A última análise da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) do Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa) foi realizada com dados de 2018, antes, portanto, da covid-19. Mas o estudo Políticas Efetivas, Escolas Bem-sucedidas tem especial interesse por enfatizar dois desafios agravados com a pandemia: a digitalização e a equidade.

“A leitura não é mais predominantemente uma questão de extrair informação; trata-se de construir o conhecimento, pensar criticamente e fazer juízos bem fundamentados”, disse o secretário-geral da OCDE, Angel Gurría. “Se a Inteligência Artificial destruirá ou criará mais empregos dependerá muito se nossa imaginação, consciência e senso de responsabilidade nos ajudarão a aproveitar a tecnologia”, observou Gurría. “Para quem tem os conhecimentos e habilidades corretas, a digitalização e a globalização têm sido libertadoras e excitantes; para os insuficientemente preparados, estas tendências podem significar um trabalho vulnerável e inseguro, e uma vida com poucas perspectivas.”

Tanto maior é o desafio para o Brasil, recorrentemente citado como exemplo de desigualdade na distribuição de recursos, notadamente os digitais. Um grande avanço foi o robustecimento do Fundeb. O financiamento, contudo, é condição necessária, mas nem de longe suficiente. A boa alocação de recursos é decisiva, e muitos diferenciais têm pouca ou nenhuma relação com a quantidade de dinheiro, mas com a qualidade da gestão. Com efeito, o desenvolvimento econômico dos países responde por apenas 28% da variação no rendimento escolar.

Se nos países da OCDE há em média um computador por aluno de 15 anos, no Brasil há um para cada quatro alunos. Mas não se trata apenas de prover mais computadores. Na verdade, exclusivamente por esse critério, os estudantes de escolas com mais computadores per capita tiveram desempenho menor do que naquelas onde há menos computadores. Claramente, o diferencial não é a quantidade, mas a qualidade dos dispositivos digitais.

No Brasil, entre as escolas economicamente abastadas, 68% dos alunos têm acesso a dispositivos qualificados, enquanto nas outras escolas são só 10%. Os dados mostram que uma banda larga potente e uma boa plataforma online são fatores imensamente mais relevantes do que a proporção de computadores portáteis ou a estrutura física das escolas.

Mas hoje, como sempre, o recurso mais valioso é a qualidade dos professores. “Os alunos de famílias pobres têm em geral uma única chance na vida, e é um grande professor numa boa escola”, advertiu Gurría. “Se perderem este barco, as oportunidades subsequentes de ensino tenderão a reforçar, antes que mitigar, as diferenças iniciais nos rendimentos escolares.”

Em síntese, o crucial é que os professores aprendam a utilizar a tecnologia para aprimorar o ensino. Por exemplo, os sistemas escolares nos quais há maior proporção de escolas com seu próprio protocolo de uso de dispositivos digitais apresentam desempenho superior em leitura, matemática e ciências. Além disso, em países de alto desempenho, mais escolas têm programas específicos para fomentar nos alunos um comportamento responsável na internet.

As evidências não deixam dúvida: a boa educação é a mola mestra de um círculo socioeconômico-cultural virtuoso – assim como a má educação resulta num círculo vicioso. Nos países de alto desempenho, as disparidades na distribuição de recursos entre escolas de alta e de baixa renda são bem menores. Independentemente de qual é o ovo e a galinha, o fato é que quanto mais pobre um país, mais desigual é o seu ensino e vice-versa.

Como disse Gurría, “conquistar maior equidade na educação não é só um imperativo de justiça social, mas também um modo de usar recursos mais eficazmente, aumentar o suprimento de habilidades para abastecer o crescimento econômico e promover a coesão social”. O Brasil enfrenta o grande desafio da alocação e da otimização de recursos. Mas superá-lo depende de vencer outro ainda maior: a criação de uma cultura que valorize o ensino público e seus professores.

Vacina em clínica privada poderia se somar ao SUS – Opinião | O Globo

Desde que não haja competição com setor público, não há por que não autorizar outros acordos

A Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC), que reúne 200 instituições privadas e representa 70% do setor, negocia a compra de 5 milhões de doses da Covaxin, vacina para a Covid-19 produzida pelo laboratório Bharat Biotech, cujo uso emergencial foi aprovado na Índia.

É natural que a notícia gere debates sobre a oferta de vacinas em clínicas particulares, enquanto o Ministério da Saúde ainda não dispõe de um cronograma factível para a vacinação no Brasil. De concreto, até agora, existe o acordo com a Universidade de Oxford e a AstraZeneca para produzir a vacina de ambas na fábrica da Fiocruz em Manguinhos e a importação de 2 milhões de doses prontas do laboratório Serum, também na Índia. Estão em andamento negociações para incluir as vacinas da Pfizer/BioNTech e da Sinovac (CoronaVac), esta última produzida pelo Butantan, em São Paulo.

Pode parecer tentador enxergar nas ações do setor privado uma tentativa de garantir a vacinação apenas a quem puder pagar. Mas essa é uma visão simplista. Não há necessariamente conflito entre as ações do Estado e das clínicas particulares. Se bem articuladas, elas podem muito bem ser complementares, sem resultar em privilégio.

É claro que o acesso à vacina contra a Covid-19 deve ser universal, garantido pelo SUS. Mas isso não exclui outras possibilidades. Quanto mais gente for vacinada, melhor. Evidentemente, deve-se tomar cuidado para evitar injustiças. Não dá para autorizar que grupos não vulneráveis sejam vacinados antes dos que correm maior risco. Mas o governo tem como regular o acesso a vacinas mesmo no setor privado.

Seria um erro deixar de aproveitar a competência e a capacidade da iniciativa privada para distribuir vacinas. É razoável que seja concedida permissão para que laboratórios e clínicas fechem acordos com fabricantes de vacinas, desde que cientificamente testadas e aprovadas pela Anvisa. A condição é que tais contratos não rivalizem com os do setor público. É o caso da vacina indiana negociada pela ABCVAC, em nenhum momento cogitada pelo Ministério da Saúde para o Programa Nacional de Imunização.

A justiça no acesso pode ser alcançada de pelo menos duas formas. Primeiro, permitindo a compra de vacinas que não despertam interesse do governo. Segundo, garantindo que as regras de aplicação sejam as mesmas adotadas na rede pública e sigam o mesmo cronograma, para assegurar prioridade aos grupos sob maior risco. Seria, assim, perfeitamente possível conciliar maior quantidade de acordos e vacinas com a distribuição justa das doses.

O governo também não deveria descartar a hipótese de pagar para o setor privado aplicar vacinas gratuitamente, como vem sendo feito em vários países. A resistência ideológica ao envolvimento da iniciativa privada na vacinação só trará mais atraso e contribuirá para aumentar ainda mais a contabilidade trágica do contágio e das mortes provocadas pelo novo coronavírus. A conta a fazer não é de subtrair, mas de somar.

Enriquecimento de urânio no Irã aumenta instabilidade no planeta – Opinião | O Globo

Não dá para garantir que a violação do acordo nuclear seja apenas jogo de cena para obter mais concessões

A quinze dias de sua posse, o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, se vê obrigado a lidar com uma herança espinhosa da gestão Donald Trump. Não a enésima manobra de Trump para manipular o resultado da eleição que será oficializado hoje no Congresso. Biden está diante do desafio explícito do Irã ao acordo nuclear firmado na gestão Barack Obama e rompido por Trump em 2018. As consequências para o equilíbrio geopolítico do Oriente Médio e do planeta poderão ser explosivas.

Um ano depois que um drone americano matou o líder da Guarda Revolucionária iraniana, Qasem Soleimani, o governo de Teerã passou a enriquecer urânio nas instalações subterrâneas de Fordo, sob a vigilância de inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica, no nível proibido de 20%. O Irã já violara o acordo em 2019, ao enriquecer quantidade maior do que a estipulada e ao romper o limite permitido, de 3,7%. Mas o nível de 20% é mais preocupante. Embora não seja incompatível com o uso pacífico em aplicações medicinais, representa um passo essencial no caminho dos 90% necessários para fazer a bomba atômica.

Como não bastasse a violação, os iranianos ainda capturaram um petroleiro de bandeira sul-coreana no Estreito de Ormuz, rota estratégica para o escoamento de óleo do Golfo Pérsico. “Nossas medidas são plenamente reversíveis ante o cumprimento total por todos”, escreveu o chanceler Javad Zarif numa rede social. Com tais palavras, quer coagir Biden a suspender as sanções impostas por Trump, condição para a retomada de conversas.

É verdade que as ações iranianas podem não passar de uma demonstração de força para obter concessões maiores do novo governo americano, que já se declarou favorável a voltar ao acordo. Só que o panorama no Oriente Médio é outro depois de Trump. Uma série de acordos entre Israel e países árabes formaram um sólido eixo anti-Teerã, com o beneplácito da Arábia Saudita.

Diante desse quadro, não dá para garantir que o Irã esteja fazendo jogo de cena. O regime dos aiatolás sempre considerou armamentos nucleares estratégicos para contrabalançar o poder bélico israelense e para equilibrar a influência dos sauditas. Mesmo quando aceitou o acordo com os americanos e outras potências, jamais abriu mão de tais pretensões, apenas as adiou em nome de interesses econômicos.

Biden tem a seu alcance um amplo leque de alternativas para conter os iranianos. Mas não controla os humores de uma teocracia onde a linha-dura saiu fortalecida depois que a confiança depositada nos americanos foi traída por Trump. Um Irã nuclear torna o Oriente Médio mais instável e aumenta a chance de novo conflito na região. Não é bom augúrio para o início de ano.

Vacina de onde vier – Opinião | Folha de S. Paulo

Desde que não compita com o SUS, setor privado pode ajudar a ampliar imunização

Por uma mistura de escolhas erradas, ideias estúpidas e incompetência governamental, o Brasil está vergonhosamente atrasado na vacinação de sua população contra a maior pandemia em um século.

Não é o caso de acrescentar mais um erro a essa montanha de incúrias e dificultar iniciativas empresariais capazes de ampliar a oferta de imunização no país —desde que elas ocorram de modo complementar e não predatório em relação ao esforço do setor público.

Em termos de escala e prioridade, não há dúvidas de que o foco das autoridades tem de ser o programa nacional, público e gratuito, para imunizar o mais depressa possível os grupos vulneráveis.

Só os brasileiros com 50 anos ou mais de idade, a faixa com maior propensão a desenvolver complicações graves da Covid-19, ultrapassam 50 milhões de pessoas. Agregam-se a essa conta outros grupos, como as pessoas mais jovens que atuam no setor da saúde ou que têm certas comorbidades.

Imunizar esse público gigantesco num curto período, o que se descortina como o maior desafio de vacinação da história brasileira —e tragicamente coincidente com um dos governos mais incapazes que a República já conheceu—, é a tarefa precípua das administrações federal, estaduais e municipais.

Ainda que o setor público vença os obstáculos ciclópicos à sua frente, restarão cerca de 100 milhões de adultos fora das linhas de prioridade da ação governamental. Seria um despropósito excluir o setor empresarial privado do esforço para atender nem que seja uma pequena parcela dessa demanda.

Com a chegada de novos imunizantes aprovados por autoridades sanitárias nos próximos meses e anos, empresas e famílias terão onde satisfazer o interesse de proteger os seus integrantes que estejam fora dos programas públicos. Um mercado mundial vai naturalmente se formar em torno desses produtos, como já acontece com a vacina da gripe, por exemplo.

Resguardada a cláusula de o privado não competir com compras do setor público, a diretriz deveria ser facilitar ao máximo a importação de vacinas aprovadas pela Anvisa. Mais capilarizado e eficiente, o ramo empresarial é flexível para lidar com preços mais altos e volumes mais baixos de ofertantes que de outra maneira seriam jogados para fora do mercado por grandes compradores governamentais.

Regras restritivas forjadas em gabinetes de Brasília —por um governo sem compromisso com a saúde pública— retirariam do país mais uma opção de aumentar o acesso da população à imunização.

O mercado privado mundial de vacinas existirá a despeito disso. É melhor tirar proveito inteligente dele do que virar-lhe as costas.

Memória falha – Opinião | Folha de S. Paulo

Precário, reconhecimento fotográfico não deveria, por si só, amparar condenações

Injustiças precisam ser olhadas de perto. Tiago Vianna Gomes, 28 anos, foi absolvido em 15 de dezembro pelo Superior Tribunal de Justiça após condenações em primeira e segunda instâncias por roubo de uma moto em 2017. A corte entendeu que não havia prova suficiente.

Negro e morador de Mesquita, na Baixada Fluminense, Gomes fora acusado por reconhecimento fotográfico. Com a imagem registrada em delegacia há pouco mais de quatro anos, o jovem passou a integrar um álbum de suspeitos, prática não regulada pela lei brasileira.

Acusado de receptação em 2016, e inocentado após ficar oito meses na prisão, ele viu mais e mais denúncias surgirem contra si, todas baseadas na foto. Foram nove processos judiciais e duas prisões por roubos que não cometera.

O caso pode ser extremo, mas não isolado. Acusado de roubo com arma de fogo, o violoncelista Luiz Carlos Justino, 23, foi encarcerado e depois posto em liberdade no Rio em setembro —a Justiça considerou não haver elementos suficientes para mantê-lo no sistema prisional e admitiu “grande possibilidade de erro” no reconhecimento fotográfico.

De fato, para além do racismo que se sobrepõe a garantias constitucionais como a presunção de inocência, a forma como a identificação de suspeitos se dá no Brasil ultrapassa o escárnio.

Álbuns de fotos, invariavelmente com maioria de jovens negros e pobres, não deveriam sustentar condenações penais, dadas as falhas e vieses inerentes à memória humana e comprovadas por estudos.

Por lei, o reconhecimento deve ser feito alinhando pessoas que tenham semelhanças com o suspeito, após a testemunha já tê-lo descrito. Tal regra do artigo 226 do Código de Processo Penal é raramente cumprida à risca —e, mesmo nesse caso, seria desejável a coleta de provas mais confiáveis, como DNA.

Esse rito é obrigatório, como decidiu corretamente o STJ em outubro de 2020, mesmo que adaptado para o caso de imagens.

Em todo caso, o “reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor”, decidiu o tribunal superior, “há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal”.

Prevalecem, dessa maneira, as devidas garantias processuais e evitam-se, ou ao menos atenuam-se, abusos em processos falhos de investigação e julgamento.

Perspectiva favorável para o balanço de pagamentos - Opinião | Valor Econômico

As projeções continuam a indicar superávit comercial em 2021

O Brasil deixou de enfrentar problemas no balanço de pagamentos e o cenário continua favorável também em 2021, segundo projeções dos especialistas. Para um país que atravessou muitas dificuldades nas suas contas externas durante longos períodos essa é, de fato, uma informação animadora, em parte graças ao acúmulo das reservas internacionais, que chegaram ao fim do ano passado acima dos US$ 350 bilhões, nível considerado extremamente confortável diante das demandas na área externa.

Em cerca de duas semanas, o Banco Central deve divulgar os resultados do balanço de pagamentos do ano passado. Em novembro, as transações correntes foram superavitárias em US$ 202 milhões - o sétimo superávit nos últimos oito meses. O déficit em transações correntes somou US$ 12,2 bilhões (ou o equivalente a 0,82% do PIB) nos doze meses encerrados em novembro, ante déficit de US$ 15,5 bilhões (1,02% do PIB) nos doze meses até outubro.

Como mostrou o Valor na sua edição de segunda-feira, dia 4, a recessão do ano passado e a desvalorização do real provocadas pela pandemia devem ter levado a conta corrente brasileira, parte do balanço de pagamentos que engloba as trocas comerciais, de serviços e rendas entre residentes e não residentes, a ter fechado 2020 com um déficit historicamente baixo. Para o novo ano, as previsões são também positivas diante da expectativa de muitos analistas de que o Brasil registre um aumento nas exportações - até porque se espera entre os especialistas que se mantenham em níveis elevados os preços das commodities agrícolas e do minério de ferro, principais itens da balança comercial do país.

Principal locomotiva do agronegócio brasileiro, a soja foi, entre as commodities agrícolas que o país mais exporta, a de maior valorização no mercado internacional em 2020. E, no que depender da demanda da China, principal motor dessa escalada, o elevado patamar poderá se manter em 2021, de acordo com indústrias e analistas - a menos que a produção americana dispare na próxima temporada (2021/22).

Segundo cálculos do Valor Data, na bolsa de Chicago os contratos futuros de segunda posição de entrega da soja aumentaram 37,2% no ano passado. Em dezembro, a média mensal, que cresceu 30,9% em relação à de um ano antes, foi a mais alta desde junho de 2014. Outros produtos relevantes nas exportações - como minério de ferro, suco de laranja e açúcar - também tiveram valorizações expressivas em 2020 e a expectativa se mantém positiva para os produtores também neste ano.

No ano passado, segundo informações divulgadas na segunda-feira pelo governo, a balança comercial teve um superávit de U$ 50,9 bilhões, levemente superior ao saldo de 2019, que foi de US$ 48,0 bilhões.

No somatório do ano, as exportações atingiram US$ 209,921 bilhões e as importações, US$ 158,926 bilhões. Considerando a média diária, o Brasil exportou 6,1% a menos em 2020 na comparação com 2019, e registrou importações 9,7% menores no período.

Em dezembro especificamente, houve um movimento que poderia ser considerado o início de uma tendência - aumento nas importações. Para especialistas, o crescimento na demanda por produtos vindos do exterior poderia indicar uma melhora no nível de atividades da economia.

Mesmo que seja confirmada a tendência de mais importações, as projeções continuam a indicar superávit comercial em 2021, principalmente por causa da firme demanda por produtos brasileiros - soja, carnes e minério em especial - da parte da China. De 2019 para 2020, os embarques brasileiros ao país asiático subiram 7,8% pelo critério de média diária, para US$ 67,7 bilhões. Assim, a participação chinesa na pauta de exportações avançou 4,2 pontos percentuais, para 32,3%. Em sentido contrário, a fatia dos EUA, segundo maior parceiro comercial brasileiro, recuou de 13,2% para 10,2%.

Com esse cenário para a balança comercial, há quem espere até um superávit nas transações correntes neste ano, embora não seja consenso sobre esse item. É o caso do banco Safra, que projeta um saldo positivo de US$ 5,2 bilhões no próximo ano, ou 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB). O número está distante dos superávits de dois dígitos observados entre 2004 e 2006, mas também ficaria bem acima da última vez em que o país registrou resultado positivo em 2007.

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