domingo, 5 de novembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Antissemitismo ressurge sob disfarce de ‘antissionismo’

O Globo

Ódio milenar contra os judeus cresce no mundo. Brasil tem de continuar a dar exemplo positivo de tolerância

Theodor Herzl atribuía o impulso que o levara a escrever “O Estado Judeu”, texto fundador do sionismo moderno, às manifestações antissemitas que testemunhara em Paris quando cobria como jornalista o Caso Dreyfus, julgamento em que um oficial judeu do Exército francês foi condenado injustamente por traição em 1894. Quase 130 anos depois, a França — de onde 76 mil judeus foram deportados para campos de extermínio nazistas — volta a ser palco de uma irrupção perturbadora de atos antissemitas — 819 incidentes desde os ataques do grupo terrorista Hamas em 7 de outubro até o início da semana passada, de acordo com o Ministério do Interior francês.

Na Alemanha, aumentaram 240% as denúncias de antissemitismo na primeira semana depois dos ataques, na comparação com o ano anterior. O Reino Unido registrou 805 crimes de ódio contra judeus nas três primeiras semanas de outubro, recorde nesse período. Nos Estados Unidos, a Liga Antidifamação contou 312 casos, alta de 388%. Um relatório feito por entidades judaicas e pelo governo israelense constatou crescimento de 1.180% no discurso antissemita, conclamando a violência contra Israel, sionistas e judeus — 71% veiculado em árabe e 28% em inglês.

No Daguestão, um avião de Israel foi recebido por uma turba gritando não haver lugar para “matadores de crianças” naquela região russa, repetindo o absurdo libelo de sangue medieval contra os judeus (depois, soube-se que o voo transportava russos que tinham ido a Israel buscar tratamento médico). Em Sydney, Londres, Paris ou Roma, se multiplicam slogans como “judeus às câmaras de gás”, ataques à bandeira de Israel e pichações de caráter antissemita. Integrantes de comunidades judaicas têm adotado precauções para evitar ser identificados como judeus.

Um dos principais palcos do antissemitismo têm sido as universidades americanas, em especial as de elite. Em Cornell, um estudante foi detido por publicar ameaças contra alunos judeus. Harvard e Yale registraram episódios preocupantes. Os autores dessas manifestações costumam negar o antissemitismo alegando se tratar apenas de protestos contra Israel ou em defesa da causa palestina. Dizem ser “antissionistas”, não antissemitas. É um argumento sem o menor cabimento.

Israel pode — e deve — ser criticado. É perfeitamente legítimo, e até necessário, atacar a política expansionista de assentamentos ilegais na Cisjordânia, ficar indignado com a presença de partidos da extrema direita na coalizão governista israelense, protestar em favor de corredores humanitários na investida violenta contra o Hamas na Faixa de Gaza — que tem custado uma quantidade enorme de vidas civis inocentes. Não se pode negar a ninguém o direito de defender um cessar-fogo ou mesmo de pedir a apuração de crimes de guerra atribuídos aos israelenses. Mas a onda de “antissionismo” a que o mundo hoje assiste aturdido não se confunde com isso.

O Brasil sempre seguiu um caminho diferente, de tolerância. Brasileiros de ascendência árabe (cristãos ou muçulmanos) e judeus vivem lado a lado e irmanados, o mesmo acontecendo com imigrantes de ambas as origens. Brasileiros não discriminam judeus, brasileiros não discriminam árabes. Por isso choca profundamente quando algumas lideranças destoam dessa tradição (ou contribuem para a radicalização). “O Estado de Israel é uma vergonha para a humanidade, quem mata criança não merece respeito”, escreveu numa rede social a tesoureira do PT e conselheira de Itaipu, Gleide Andrade. “Basta desse genocídio. É um crime tantas crianças palestinas mortas e órfãs. Basta do Estado de Israel”, afirmou noutra postagem (depois apagou as publicações e se desculpou). Representantes do PSOL queimaram a bandeira de Israel em manifestação recente. O presidente e líderes do PCO publicaram panfletos e discursaram em favor do fim de Israel, pedindo palmas a Hamas e outros jihadistas. Ora, negar aos judeus o direito a um Estado — por que apenas aos judeus? — ou defender, como fazem manifestantes mundo afora, uma Palestina “livre do rio ao mar” — significando, geograficamente, o fim de Israel — não é nada mais que vestir de trajes contemporâneos o ódio milenar aos judeus.

Em tom menos agressivo, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, classificou a ação de Israel em Gaza como um “massacre com as dimensões de um genocídio”. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, embora tenha chamado de terroristas os ataques do Hamas, disse que “aquilo não é uma guerra, é um genocídio”. Usar o termo genocídio nesse caso não é apenas incorreto, mas também ofensivo. Incorreto, porque genocídio pressupõe, por definição, atos praticados “com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Como defender que seja essa a intenção de Israel, quando um quinto dos cidadãos israelenses são etnicamente palestinos, e a população palestina tem crescido nos territórios ocupados, a despeito da violência contra ela? E ofensivo, porque, nunca é demais lembrar, Israel foi erguido sobre as cinzas do Holocausto, maior genocídio da História recente. O paralelo implícito entre judeus e nazistas é uma manifestação cruel do antissemitismo contemporâneo. Para que o Brasil fique imune a sentimentos tão abjetos, é fundamental que nossas lideranças saibam medir as palavras. Elas têm peso.

Durante muito tempo, o antissemitismo esteve associado à direita conservadora ou à extrema direita. Ambas continuam a preocupar. Mas hoje, sob o disfarce do antissionismo, ele se alojou na esquerda e nos movimentos identitários. É no mínimo contraditório — e merece profunda reflexão — que militantes tão loquazes no combate a preconceitos contra negros, mulheres ou gays deem de ombros para o preconceito contra os judeus. A solução para o conflito no Oriente Médio exige a criação de um Estado palestino, convivendo lado a lado e em paz com Israel. É nisso que o governo brasileiro deve se concentrar nos fóruns internacionais. Deve pregar no mundo o ambiente de tolerância que vivemos aqui. É uma lição que apenas o Brasil pode dar às outras nações.

Vocação medíocre

Folha de S. Paulo

Descaso com meta fiscal manterá tendência de regressão frente a economias ricas

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) parece decidido a abandonar formalmente a meta para equilibrar receitas e despesas em 2024, ao se desobrigar legalmente de atingir o déficit primário zero. Acredita que não terá de diminuir investimentos, mas ignora danos já evidentes e perigos maiores.

Alta no déficit implica aumento de uma dívida pública que não pararia de crescer, nem mesmo na hipótese de cumprimento das metas que o governo propôs, ora moribundas. Mas o relaxamento terá implicações graves em cascata.

O rebaixamento da meta em tese reduz a possibilidade de seu descumprimento e, portanto, de que o governo se submeta a sanções previstas em seu chamado arcabouço fiscal. Uma restrição seria o crescimento menor da despesa em 2025. O acerto de contas com a realidade ficaria para 2026, ano de eleição, de ajuste improvável.

O relaxamento do plano fiscal antes mesmo do início de sua implementação elevaria o descrédito do compromisso do governo de conter sua dívida. Mesmo que já houvesse dúvidas nas projeções do déficit para 2024, a desconfiança na execução do plano se torna cada vez mais certeza da falta de convicção do governo de que é preciso consertar as contas públicas.

A descrença se manifesta há meses nas taxas de juros de prazo superior a dois anos, mais elevadas do que no início de agosto, quando a Selic começara a baixar.

O entorno do presidente alega que o ceticismo no cumprimento da meta seria o motivo para abandoná-la. Não entendem a importância da estabilidade de regras e que programas de redução paulatina de déficits, como o arcabouço fiscal, perdem eficácia se há procrastinação a perder de vista.

O efeito imediato do desleixo são taxas de juros mais altas para governo e empresas, e pagamentos ainda maiores de juros para os mais ricos, conta já exorbitante.

O aumento do custo de financiamentos se associa à difusão da incerteza. O crescimento menor do que poderia ter sido reduz expectativas e a confiança de investir.

A despesa em obras públicas, se é que serão trabalhos relevantes, não compensa essa espiral de danos —o país já assistiu a tal filme, no final de Lula 2 e sob Dilma 1.

Os donos do poder vivem de imediatismos, da preocupação com interesses particulares —isso quando não são alheios de princípios econômicos rudimentares.

Não se vê programa de desenvolvimento das capacidades produtivas do país. Comemoram-se os anos em que o crescimento esteve próximo da média pífia das últimas quatro décadas, de regressão brasileira em relação às economias ricas. A mediocridade se torna tradição, talvez seja uma vocação.

Fósseis e mais fósseis

Folha de S. Paulo

Surgimento de vestígios do passado é benesse sinistra do aquecimento global

As mudanças climáticas produzem cada vez mais evidências de sua realidade, pondo por terra questionamentos. A maioria delas envolve danos para o ambiente e populações, mas em poucos casos —como os da arqueologia e da paleontologia— podem trazer bônus.

Considere-se o aflorar de gravuras rupestres antes submersas em rios amazônicos. Não fosse a seca extrema que transformou rios caudalosos como o Negro e o Solimões em bancos de areia, a ciência teria pouca chance de reconstituir algo desses povos que ocuparam a região há milhares de anos.

Verdade que as gravações em rocha reveladas pelo recuo das águas em Ponta das Lajes, Manaus, já haviam aparecido na estiagem de 2010. Não foi esse o caso, porém, das inscrições surgidas em Urucará, quando o rio Uatumã baixou.

Em Anamã (AM), o sítio Costa da Goiabeira deu à luz urnas funerárias. Perto de Tabatinga, na fronteira com Peru e Colômbia, ruínas do forte português São Francisco Xavier, do século 18, foram desnudadas pelo Solimões esquálido.

Não há motivo para quase nenhuma comemoração. O ganho de conhecimento empalidece diante da tragédia que o fenômeno acarreta para ribeirinhos, que dependem do rio e da fauna que o habita.

No campo da investigação acadêmica do passado humano e biológico, de todo modo, cabe algum regozijo com a dádiva duvidosa do aquecimento global. Não só no Brasil, nem apenas para a arqueologia, mas também a paleontologia.

A primeira disciplina estuda vestígios de sociedades e já se beneficia com o derretimento de geleiras, por exemplo, desde 1991. Naquele ano, encontraram-se nos Alpes os bem preservados restos mortais de um homem que ali vivera 5.600 anos antes, apelidado Ötzi.

Na Escandinávia, o gelo castigado pelo aquecimento vem fornecendo armas, trenós e roupas do Império Romano e da Idade Média.

Paleontólogos também são agraciados com fósseis surgidos a partir do derretimento de geleiras do permafrost (solo congelado) —como o filhote de mamute mumificado descoberto no Canadá.

São benesses isoladas da portentosa perturbação do clima global produzida pela queima de combustíveis —note-se a ironia— fósseis. Sem medidas efetivas para arrefecer o aquecimento, talvez arqueólogos e paleontólogos um dia escavarão os vestígios da civilização planetária que erodiu as bases de sua própria manutenção.

O círculo vicioso da polarização

O Estado de S. Paulo

A frustração dos americanos com sua democracia mostra os efeitos deletérios da polarização: ela leva a um sistema político disfuncional, que leva à apatia ou à radicalização dos eleitores

A democracia mais longeva, rica e poderosa do mundo está doente. Segundo pesquisa do Pew Research, só 4% dos norte-americanos pensam que seu sistema político está funcionando muito bem e 63% têm pouca ou nenhuma confiança em seu futuro. Quando se pergunta sobre sentimentos a respeito da política, as respostas mais comuns são exaustão (65%) e raiva (55%). Em contraste, só 10% se sentem esperançosos e 4%, animados. Conclamados a sintetizar suas impressões sobre o sistema, só 2% utilizaram termos positivos. Quase 80% empregaram palavras negativas, como “divisivo” e “corrupto”. A maioria não foi capaz de identificar qualquer força na política.

A insatisfação é consensual à esquerda e à direita. Em tudo mais, os americanos estão mais divididos do que no passado. Mais do que a mera divergência, a hostilidade escalou. Desde 2016, a proporção dos partidários que consideram o outro lado “imoral” saltou entre os republicanos de 47% para 72% e entre os democratas, de 35% para 63%, padrão similar para outros estereótipos negativos, como “desonesto”, “intransigente”, “burro” ou “preguiçoso”.

Paradoxalmente, essa sociedade cada vez mais polarizada é altamente crítica da polarização. Quando se avalia qual seria o maior problema do sistema político, o segundo mais citado – só atrás dos próprios políticos (31%) – foi a polarização ou falta de cooperação partidária (22%). A parcela dos que desaprovam os dois maiores partidos do país (3 em 10) é a maior em 30 anos. Quase 9 em 10 dizem que uma boa descrição da política é: “republicanos e democratas estão mais focados em combater uns aos outros que em resolver problemas”.

Tanto quanto a escalada da polarização é sombria, a insatisfação com ela é promissora. A política é a arte de pactuar consensos sobre direitos e deveres comuns e a alocação dos recursos públicos. Mas, quando um lado desumaniza o outro e se sente desumanizado pelo outro, esse esforço é minado na raiz. Em deliberações sobre quem tem direito a “que” ou a “quanto”, as pessoas podem separar as diferenças, negociar e se sentir razoavelmente satisfeitas. Mas, numa política que reforça identidades existenciais, as discussões versam sobre “quem” elas são. Quando é o modo de vida que está em jogo, o outro lado é visto não só como equivocado, mas perigoso, e as concessões são percebidas como traição. A polarização oblitera a responsividade da política, o que leva ao desencanto com ela, o que leva à apatia ou ao radicalismo. Dificilmente o leitor brasileiro não se reconhecerá preso nesse círculo vicioso.

Para desarmá-lo, é preciso reconhecer sua dinâmica. A política identitária, iniciada pela esquerda com a motivação legítima de incluir minorias, logo degenerou entre os radicais na obsessão ilegítima por “desconstruir” e humilhar maiorias. Por sua vez, a reação legítima dos conservadores a essa truculência degenerou, entre os radicais, em uma truculência redobrada. Hoje as táticas autoritárias se tornaram mais agudas na direita reacionária. Nada é mais significativo que um presidente encorajando simpatizantes a invadir o Congresso para impedir que representantes do povo legitimassem a vontade do povo expressa nas urnas.

Desconstruir a polarização é tarefa que exigirá dos partidários à esquerda e à direita reconhecer sua parcela de responsabilidade. Os conservadores têm uma especial missão de se mobilizar para derrotar os antidemocratas nas urnas. Mas os progressistas precisam ter claro que, toda vez que desqualificam pessoas por sua pertença a um grupo (homens, brancos, héteros, cristãos, etc.), só ampliam o estoque de recrutamento dos reacionários.

Não que conservadores e progressistas devam abrir mão de suas divergências sobre a ordem jurídica ou o papel do Estado. Mas, para que possam disputar votos às suas posições e, a partir deles, negociar a concretização possível de seus ideais, uma precondição é neutralizar os radicais de ambos os lados, reduzindo incentivos para que eleitores que se sentem “excluídos” ou “deixados para trás” ingressem em suas aventuras autoritárias.

Transição demográfica já afeta emprego

O Estado de S. Paulo

Estudos mostram que queda do desemprego embute redução da força de trabalho, em parte pelo fim do bônus demográfico, o que sugere mudança estrutural do mercado de trabalho

Aqueda na taxa de desemprego tem desenhado um cenário positivo do mercado de trabalho nos últimos trimestres, com aumento da população empregada no setor formal e redução do desemprego de longa duração. Porém, um fenômeno, sobre o qual o próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem se debruçado, chama a atenção de especialistas pela mudança estrutural que pode representar: a diminuição da população economicamente ativa, a chamada força de trabalho.

Durante a fase crítica da covid, as medidas de isolamento social levaram a uma redução brusca da taxa de atividade. Foi um efeito mundial, diante da necessidade de conter a pandemia. O problema é que no Brasil esse indicador não voltou ao nível pré-pandêmico. No segundo trimestre, estava em 61,6%, dois pontos porcentuais abaixo do último trimestre de 2019, em grande parte por causa de mudanças na importância de cada grupo etário no total. A diferença pesa estatisticamente e pode relativizar os resultados sobre a movimentação do mercado de trabalho.

Ou seja, a taxa de desemprego, que fechou o mês de agosto em 7,8%, a menor marca desde 2015, pode não estar caindo de forma tão acentuada quanto parece. Para um determinado nível de ocupação, quanto menor o número de pessoas na força de trabalho, menor a taxa de desemprego. A taxa de atividade (ou de participação) mede a relação entre o total de pessoas em idade de trabalhar (acima de 14 anos, pelos critérios do IBGE) e as que efetivamente participam do mercado – ocupadas ou dispostas a trabalhar.

Tão ou mais importante do que calibrar corretamente o ritmo do desemprego, entender o quanto antes a mudança que está em curso é crucial ao planejamento econômico de médio e longo prazos, em especial para o cálculo de receitas e despesas previdenciárias. O estudo Impactos da composição etária na taxa de participação da Pnad, concluído neste mês pela consultoria econômica LCA, destaca que os dados da taxa de participação a partir de 2019 refletem, “além dos choques e mudanças de política”, os efeitos da transição demográfica – após o fim do bônus de ter uma população majoritariamente jovem e apta ao trabalho.

O estudo desagregou dados da pesquisa do IBGE e concluiu que pesam os efeitos conjunturais da covid, que acelerou pedidos de aposentadorias e elevou valores de programas de transferência de renda, por exemplo. Mas o País também começa a sentir os efeitos da mudança da composição etária. O fato de que, desde 2019, os pesos entre os diferentes grupamentos por idade mudaram no cálculo total torna maior o desafio de puxar a taxa de participação desses grupos à verificada antes da pandemia.

O Relatório de Acompanhamento Fiscal da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, de outubro, chegou a uma conclusão semelhante sobre o aumento da inatividade no mercado de trabalho brasileiro. “Nota-se um acréscimo de 6,7 milhões de indivíduos fora da força de trabalho potencial em comparação com o período anterior à pandemia, a maioria dos quais tem 60 anos ou mais, seguida por pessoas de 25 a 59 anos dedicadas aos afazeres domésticos e familiares”, diz o relatório.

Como tarefa básica para nortear políticas públicas e de planejamento econômico, cabe ao governo direcionar esforços para identificar se há como reverter o enxugamento da força de trabalho. Como destacou o relatório da IFI, isso vai depender basicamente da verificação de fatores conjunturais e temporários. Pode ser, ao contrário, que a inatividade captada pela Pnad seja o começo de uma alteração estrutural do mercado de trabalho, e aí seus efeitos serão mais persistentes.

A partir da suspensão das medidas restritivas adotadas durante a covid, aos poucos as taxas de participação no mercado de trabalho foram retornando ou até superando os níveis de 2019 em diversas economias. Entre os 38 países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 31 já eliminaram os efeitos da pandemia, e o aumento médio em relação ao período pré-covid é de 1 ponto porcentual. O Brasil chegou a ensaiar uma recuperação, mas, ao que tudo indica, ainda precisa fazer o dever de casa.

O lado B da supersafra

O Estado de S. Paulo

Déficit na infraestrutura de armazenagem desperdiça boa parte da colheita nacional

A impactante imagem de toneladas de grãos estocadas em enormes rolos de polietileno perfilados a céu aberto numa cooperativa de Maringá (PR), que estampou recentemente a capa do Estadão,

não deixa dúvidas sobre o problema que vem se agravando à medida que a colheita bate recordes. O déficit na logística de armazenagem é o lado B da supersafra que ofusca o fato de o País figurar entre os líderes de produção e comercialização global de grãos.

Trata-se de um problema estrutural antigo, para o qual, ao longo das décadas, são adotadas medidas paliativas, algumas até desastrosas, mas nenhuma solução definitiva. O silo-bolsa, ou silo bag, que há cerca de dez anos tem sido uma alternativa para cooperativas e produtores brasileiros, nem está entre as piores, embora tenha sido desenvolvido para países de clima frio e seco, e não para regiões tropicais, onde o risco de fermentação do grão é maior.

Em outubro, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) divulgou como previsão para a safra do ciclo 2023-2024 a produção de 317,15 milhões de toneladas. Ainda que represente queda de 1,5% em relação a 2022-2023, é um resultado robusto que esbarra num período de baixa nos preços das commodities agrícolas – o aumento da produção, aliás, é um dos fatores que levam à queda de preços. À espera de melhores oportunidades, a solução é o estoque. Mas não há armazéns suficientes.

Existe consenso sobre a necessidade urgente de ampliação e modernização da infraestrutura de armazenamento, mas não há sequer um diagnóstico exato sobre o problema. À reportagem do Estadão,a direção da Conab informou que ainda está desenvolvendo estudo qualificado “para compreender melhor o déficit de armazenagem no País” para traçar estratégias de forma mais efetiva. Há alguns meses, a consultoria Cogo Inteligência em Agronegócio estimou em R$ 30,5 bilhões as perdas do Brasil neste ano por causa da falta de silos.

É um desperdício inaceitável de oportunidades, de recursos e de alimentos. Os cálculos das perdas que a ineficiência logística acarreta são sempre exorbitantes. A Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) calculou, por meio de uma câmara setorial, que apenas para manter o déficit de infraestrutura deste ano, que especialistas estimam em 115 milhões de toneladas, seria preciso investir R$ 15 bilhões por ano. Frisando: não para melhorar, mas apenas para manter a deficiência atual, em paralelo ao aumento da produção.

A força da produção agrícola nacional não é um fato a ser apenas comemorado como a salvação da lavoura para a economia nacional; é premente a adoção de medidas de longo prazo para firmar a posição do País. Não há como resolver o problema no curto prazo.

O País precisa enterrar de vez os paliativos e políticas desastradas do passado – que já teve até queima de café para tentar manter os preços, como fez o governo Vargas nos anos 30 e 40. Debalde, como se sabe.

 

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