domingo, 5 de novembro de 2023

Elio Gaspari - Os dois Haddad com a bolsa da Viúva

O Globo

Numa trapaça do tempo, na mesma semana em que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, batalha pela quimera do déficit zero, Lula sancionou o projeto de lei que alivia 1,2 milhão de jovens inadimplentes do Fundo de Financiamento Estudantil, o Fies.

O rombo do Fies é um espeto de R$ 54 bilhões, concebido no período em que Haddad foi ministro da Educação, de 2005 a 2012. Na teoria, tratava-se de financiar o acesso de estudantes a faculdades privadas. Na prática, fez a festa dos barões do ensino particular. Pelo seguinte:

O financiamento era concedido sem exigência real de fiador.

O empréstimo era concedido até mesmo a estudantes que haviam tirado zero nas redações do Enem. (Essa anomalia foi corrigida no breve período em que Cid Gomes ocupou o MEC.)

As faculdades privadas promoveram uma maciça transferência de alunos para o Fies, passando para a Viúva suas carteiras de inadimplência. Os lucros dos baronatos bombaram.

Em 2014, Haddad, colocado na prefeitura de São Paulo, orgulhava-se:

“O Brasil é reconhecido por ter os maiores grupos econômicos na Educação e não adianta falar que é mérito do empresário, porque sem o pano de fundo institucional não tem quem prospere. O maior grupo econômico de Educação do mundo é brasileiro.” Naquele ano, o Fies rendera ao grupo R$ 2 bilhões, cifra inédita até para a empreiteira Odebrecht.

Haddad orgulha-se do desenho que fez para o Fies, pois “permitiu que o filho do trabalhador chegasse à universidade.” É verdade, mas enquanto os barões enriqueceram, mais de um milhão de filhos de trabalhadores caíram na inadimplência. Se o Fies tivesse sido concebido com mais rigor, todo mundo ganharia. O barões, contudo, ganhariam menos.

O refresco dado aos inadimplentes perdoa boa parte das dívidas e é coberto por um Fundo Garantidor sustentado, em tese, pelas faculdades privadas.

Na prática, a Viúva entrava com até R$ 4,5 bilhões, mas o projeto de lei sancionado por Lula elevou esse mimo para R$ 5 bilhões.

A prepotência de MEC/Inep/Cebraspe

O historiador Capistrano de Abreu (1853-1927) sugeriu que a Constituição tivesse um só artigo: “Todo brasileiro está obrigado a ter vergonha na cara.”

Era um exagero demófobo, mas alguma alma piedosa poderia apresentar uma PEC com o seguinte dispositivo:

“Será demitido todo servidor que, tendo terceirizado um serviço, responsabilize os outros por eventuais deficiências.”

Se essa PEC estivesse em vigor, seria demitido o ministro da Educação, Camilo Santana.

Com a proximidade do dia da prova do Enem, descobriu-se que 50 mil jovens deveriam fazer o exame em locais a mais de 40 quilômetros de distância de suas casas. Quem garantia que a prova seria aplicada mais perto era o próprio MEC.

Quando surgiram as queixas, as primeiras respostas foram burocráticas, até mesmo prepotentes. Passados os dias, viu-se o tamanho da lambança, e o doutor Santana explicou-se:

“Foi feita licitação que se iniciou ainda no ano passado, concluída neste ano, e a empresa não foi a mesma que realizou o Enem nos últimos anos. (...) E o Inep identificou que a empresa cometeu erros.”

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais talvez pudesse ter achado os erros, mas quando se perguntou à empresa o que aconteceu, ela disse que o Inep é quem responde a demandas da imprensa sobre o Enem.

Com o Enem, milhões de jovens são malvadamente atirados em provas nas quais jogam um ano de suas vidas. Fez-se uma lambança, e tanto o ministro quanto o doutor do Inep dizem que a responsabilidade foi da empresa terceirizada. Ela, por sua vez, diz que quem trata do assunto é o Inep.

A empresa se chama Cebraspe (Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos), uma associação civil sem fins lucrativos. Não busca lucros, mas promove prejuízos e se comporta como se não tivesse nada a ver com esses eventos.

A lambança da Cebraspe será corrigida com um novo calendário para os 50 mil jovens prejudicados. Se ninguém vigiar, o prejuízo irá para a Viúva.

Tempestade em copo d’água

Com tantos problemas para se cuidar, criou-se uma encrenca com a nomeação da advogada Daniela Teixeira para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ela foi indicada pela Ordem dos Advogados do Brasil, escolhida pelo Tribunal, indicada por Lula, ouvida pelo Senado, e aprovada.

Em todas as etapas, salvo na da lista feita pela presidência do Tribunal, ela foi a primeira a ser arrolada. Sua vaga foi a primeira a surgir. Ela era a primeira da lista enviada por Lula ao Senado, foi a primeira a falar aos senadores e a primeira a ser aprovada por eles.

Portanto, ela seria a primeira a ser nomeada. Como essa precedência teria reflexo nas prerrogativas de antiguidade da Corte, fabricou-se uma tempestade num copo d’água, obstruindo-se o ato final da nomeação por Lula.

Na pauta, certamente não havia algo mais importante a tratar.

Montefiore e a guerra

Está na rede um precioso artigo do historiador inglês Simon Sebag Montefiore, publicado na revista americana “Atlantic”, intitulado “Decolonization narrative is dangerous and false” (“A narrativa da descolonização é perigosa e falsa”). Se Deus é brasileiro, alguém vai colocá-lo em português.

Montefiore escreveu um livro sobre a história dos judeus e outro sobre Jerusalém. Ele descende de banqueiros que foram sócios dos Rothschild. Em seu artigo faz uma ardente defesa de Israel na sua guerra contra os terroristas do Hamas. Faz isso com duas opiniões contundentes:

“Parece impossível, mas a essência (do conflito) está clara como nunca. Deve-se negociar a existência de um Israel seguro, ao lado de um Estado Palestino seguro.”

“O governo de Netanyahu é o pior da História de Israel, por inepto e imoral. Ele promove um ultranacionalismo maximalista que é equivocado e inaceitável.”

Novembro de 1963

No dia de hoje, há 60 anos, o agente James Hosty, do FBI, conversou com a dona da casa onde Lee Oswald vivia e ela lhe disse que o inquilino é um esquerdista “ilógico”.

Amanhã, Oswald irá à biblioteca pública de Dallas e retirará o livro “O tubarão e as sardinhas”, do ex-presidente guatemalteco Juan José Arévalo. Em 1954, um golpe estimulado pelos Estados Unidos havia derrubado seu sucessor.

Nos próximos dias, a Casa Branca baterá o martelo e decidirá que o presidente John Kennedy estará em Dallas no dia 22. O Serviço Secreto ainda não decidiu onde ele almoçará. Um dos endereços fica no caminho do edifício onde Lee Oswald trabalha. A polícia de Dallas diz que não há suspeitos na cidade.

A revista “Life”, com 30 milhões de leitores, colocou na sua capa Bobby Baker, o faz-tudo do vice-presidente Lyndon Johnson, ao tempo em que ele era líder da maioria democrata no Senado. Baker estava metido em roubalheiras, Johnson ficou milionário na política e a “Life” tem uma equipe de repórteres no seu rastro.

Kennedy dá pouca atenção ao seu vice. Em dez meses deste ano, esteve a sós com ele por apenas 53 minutos.

Jacqueline Kennedy informou a uma amiga que acompanhará o marido na viagem ao Texas.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Viagem para a viagem final.