O Globo
É preciso perseguir objetivo de dois Estados, Israel e Palestina, como etapa indispensável para sepultar décadas de sofrimento
Madrugada de 7 de outubro no Brasil.
O Hamas invade território israelense e
perpetra um atentado terrorista que deixa como saldo mais de 1.400 pessoas
assassinadas — entre elas três compatriotas — e um número estimado de mais de
200 reféns, segundo cifras de autoridades israelenses.
Começava aí, durante a presidência brasileira do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), prevista no calendário para outubro, um intenso esforço diplomático que sempre teve como objetivo prioritário aliviar o drama humano. Uma tragédia que atingiu tanto reféns e suas famílias quanto civis moradores de Gaza, estes sob três semanas de intenso bombardeio, que só fez se agravar ao longo dos últimos dias. E que deixou, até o momento, um saldo adicional de outras 8.500 vítimas fatais na Palestina, das quais mais de 3 mil são crianças, segundo autoridades palestinas.
O histórico da questão israelo-palestina
exigia realismo e determinação, no limite da teimosia: afinal, vetos dos
membros permanentes acompanham os 75 anos de história do conflito no Conselho.
Além de construir a maioria regimental de nove dos 15 votos do Conselho, era
preciso construir um texto equilibrado a ponto de driblar o histórico
predomínio dos vetos dos membros permanentes na questão. Desde 2016, não se
aprova no Conselho nenhuma resolução sobre a questão palestina, e, dos 250
vetos da história do Conselho, 86, ou mais de 1/3, referem-se ao Oriente Médio.
Era obrigação da presidência brasileira
tentar um acordo até o último minuto de seu mandato, e foi o que o Brasil fez,
por instruções diárias do presidente Lula. Para isso, contou com total apoio
dos outros nove membros não permanentes, eleitos para mandatos de dois anos,
grupo chamado E10, e de alguns dos cinco membros com direito a veto, o P5 no
jargão da ONU.
Em 18 de outubro, o texto proposto pela
presidência brasileira, um dos quatro votados no Conselho, foi o que mais
próximo esteve da façanha diplomática de ser aprovado e de fazer prevalecer os
interesses das pessoas afetadas, deixando as rivalidades geopolíticas em
segundo plano. O texto contou com 12 votos a favor, entre eles da China e
da França,
membros do P5. Houve também duas abstenções do mesmo grupo, Rússia e Reino Unido, e
o veto dos Estados Unidos.
O único veto foi suficiente para devolver a discussão de texto à estaca zero,
quando a deterioração da situação em Gaza já ganhava contornos difíceis de
reverter.
O dado encorajador desse esforço é que,
apesar da retórica inflamada e dos vetos cruzados, os membros do Conselho
colaboraram continuamente com a presidência brasileira na tentativa de
construir consensos. Seguiremos nessa linha, com a mesma obstinação, nas
deliberações a partir de agora, já na presidência chinesa, iniciada na
quarta-feira, dia 1/11. O trabalho rendeu bons frutos, e a facilidade de
interlocução do Brasil com todos os seus pares na ONU produziu avanços e
mensagens políticas claras, seja nos 12 votos do CSNU, seja na aprovação de uma
resolução da Assembleia Geral, composta por todos os 193 países-membros, que
conclamou a entrada em vigor de uma “trégua humanitária imediata, durável e
sustentada”. A trégua é elemento indispensável para que o resgate dos reféns
seja negociado e implementado — e para que uma ajuda humanitária adequada possa
ser prestada à população de Gaza.
Ainda que o objetivo de que o Conselho
falasse com uma só voz em favor dos que sofrem em Israel e Gaza
não tenha sido alcançado em outubro, o esforço de todos valeu a pena.
Representa um impulso renovado e claro da comunidade internacional em favor da
paz no Oriente Médio, que nenhum veto será capaz de calar. Assim se construirá
o caminho que levará à solução de dois Estados, Israel e Palestina, acordada
solenemente por israelenses e palestinos, e há décadas à espera da
concretização. A Cúpula para a Paz do Cairo, com a participação de grande
número de líderes mundiais, foi unânime em relação a essa solução, e também à
urgência da cessação de hostilidades. O ímpeto e a obstinação que produziram os
acordos de paz de Camp David e de Oslo, entre outros avanços, precisam
urgentemente ser renovados. No limite da teimosia, é preciso perseguir esse
objetivo como etapa indispensável para sepultar décadas de ódio e de sofrimento
e abrir espaço para a promoção da paz e da reconciliação.
*Mauro Vieira é ministro das Relações Exteriores
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