- Valor Econômico
Racismo é uma palavra que acoberta muita coisa. Importada de países que têm outras iniquidades, um pouco diferentes das nossas, acaba encobrindo e mistificando injustiças que pedem outras e mais apropriadas definições e reações. Conceito errado é como guia de ruas de outra cidade, não o daquela em que nos movemos. Com ele nunca chegaremos a lugar nenhum. Embora existam entre nós manifestações do que é propriamente racismo, somos um povo mestiço e razoavelmente aberto à mestiçagem, como o provam nossa história e a composição racial de nossa população. Ainda que a mestiçagem seja de fato herança da violência da escravidão. A mestiçagem, porém, é a contradição da raça, sua negação incontornável, sua impossibilidade. Na pluralidade do mestiço a raça se nega. Na mestiçagem não se volta atrás. Quando muito, finge-se.
Isso é tão problemático que o despertar de uma consciência racial entre descendentes de negros, não raro também descendentes de brancos, leva-os a incluir os pardos entre os seus. Mas pardo é quem descende dos indígenas por dois séculos escravizados, formalmente libertados em 1755, que permaneceriam em servidão disfarçada. O que levou uma organização de pardos, do Norte do país, a se apresentar perante o Supremo Tribunal Federal, como amici curiae, na ação relativa à questão das cotas raciais na Universidade de Brasília. Pediam que os pardos não fossem considerados negros para cálculo da cota de negros, pois negros não são. O STF decidiu pelo caráter temporário das cotas, enquanto fossem instrumentos de correção de injustiças derivadas da cor da pele. Desconheceu a noção ideológica subjacente ao feito, de uma sociedade brasileira estruturada sobre raças. Entendeu raça como categoria temporária e meramente social, não racial.
Um grande sociólogo brasileiro, Oracy Nogueira, que estudou nos Estados Unidos e foi professor na Escola de Sociologia e Política e na USP, distingue o preconceito de marca do preconceito de origem. O preconceito aqui é de marca, de cor de pele, que perdura enquanto perdura a pigmentação discriminada. Nos Estados Unidos, o preconceito é de origem. Mesmo que tenha havido completo branqueamento da pele de uma família, ela continuará sendo discriminada com base na memória de sua origem negra. O que aqui pode ser branco, lá ainda é negro.
Aqui a questão deve ser vista em outra perspectiva para ser decifrada. A chave da discriminação entre nós vai muito além da raça. Somos, de fato, um povo acentuadamente preconceituoso, o que inclui o preconceito racial, mas não se limita a ele. Todo racismo é preconceito, mas nem todo preconceito é apenas racismo. Isso não nos faz praticantes da chamada democracia racial, uma fantasia tola que não se confirma na realidade. Quem é negro sabe disso. No entanto, o caráter difuso do preconceito no Brasil dificulta que se identifique o que é propriamente a sua causa. E dificulta a educação para combatê-lo ou preveni-lo.
Neste país há preconceito até contra calvície. Nos fatores da discriminação social tem uma função de reforço a cor da pele e, portanto, o estigma racial que ela representa. As sutilezas do preconceito entre nós não facilitam a vida do negro, antes a complicam porque despistam e disfarçam. Elas o deixam desarmado para se defender e podem induzi-lo a defender-se por meio da importação e cópia de modelos de definição racial que não correspondem ao que ele é. Nesse sentido, o privam de instrumentos de inserção social afirmativa a partir de recursos culturais que já domina. As brechas e fragilidades do preconceito são base para a construção de um discurso crítico que permita, a quem as maneje, contrapor a lógica precária da discriminação ao próprio discriminador, suas contradições e, sobretudo, o que na discriminação também o discrimina.
O discurso antirracista frequentemente incorre nos vícios do racismo, porque se nutre de sua mesma lógica, o que o fragiliza. O binarismo lógico de sua polarização destroça ou, ao menos, oculta a contradição que engendra e alimenta a negação da humanidade tanto do discriminado quanto do discriminador. Nesse modo de combater a discriminação social, como se fosse meramente racial, o racismo se fortalece. E acaba se tornando instrumento de cumplicidade de uma das mais cruéis formas de construção e afirmação da diferença entre os brasileiros porque esconde e nega aquilo em que somos dolorosamente diferentes, nas oportunidades de acesso à cultura que emancipe cada um e ao emancipar cada um emancipe a todos. O que está em jogo ainda é o espírito da Abolição, o que sugeria Nabuco: a libertação do cativo só tem sentido na libertação também de quem se presume e age como senhor.
*José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A sociologia como Aventura” (Contexto), dentre outros.
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