- O Estado de S. Paulo
Repelida a hipótese de golpe, trocar de Carta é impossível na vigência do Estado de Direito
Na definição de Mirkine-Guetzevitch, citado por Pinto Ferreira, “Direito Constitucional é uma simples técnica de liberdade”. O mesmo autor registra que, segundo Mikolenko, “Direito Constitucional é uma técnica da autoridade e do poder” (Direito Constitucional, Ed. José Konfino, 1956, 10). No Brasil podemos definir Direito Constitucional como exercício de ficção, impregnado de utopias. Penosamente elaborada ao longo de 20 meses, a Constituição promulgada em outubro de 1988 flutua e se modifica ao sabor das necessidades.
Todas as nossas oito Constituições resultaram de ato vitorioso de força contra o regime vigente. Assim foi em 1824, como produto do movimento que nos levou à independência de Portugal; repetiu-se em 1891, como consequência obrigatória da proclamação da República; o mesmo aconteceu em 1934, após ser vitoriosa a Revolução de 1930; e novamente em 1937, com a implantação da ditadura de Vargas.
As Constituições de 1946, 1967 e 1969 (Emenda Constitucional n.º 1/69) tiveram origem idêntica: a queda abrupta do governo impondo a mudança da Carta Política.
Em 1985 a ruptura com o regime autoritário deu-se de forma pacífica. Tancredo Neves, candidato da aliança PMDB-PDS, derrotou Paulo Maluf, indicado pela Arena, nas eleições pelo Colégio Eleitoral, em 5 de janeiro, segundo as normas da Emenda n.º 1/69. A morte de Tancredo e a controvertida posse do vice-presidente José Sarney não bastaram para impedir a instalação da Nova República.
Poucas dúvidas perduram de que a Constituição promulgada em 1988 foi rebaixada de Lei Fundamental a frágil livreto impresso em papel-jornal, cujo prolixo texto continua a ser alterado segundo as conveniências dos três Poderes. Contabilizam-se, até o dia de hoje, 95 emendas e 6 emendas de revisão previstas no artigo 3.º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Na frigideira encontra-se a reforma da Previdência e, a caminho, centenas de outras aguardam a sua vez. O juramento de cumpri-la e defendê-la, feito com pompa e circunstância por altas autoridades da República, foi relegado à condição de promessa de político que, como disse De Gaulle, só compromete quem a ouve. Escreveu o dr. Ulysses Guimarães, no preâmbulo não autorizado Constituição Coragem, encontrado na rara primeira edição do Senado: “A Constituição durará com a democracia e só com a democracia sobrevivem para o Povo a dignidade, a liberdade e a justiça”. Se assim é, a democracia corre perigo, pois já se comenta nos bastidores de Brasília a necessidade de eleição de Assembleia Nacional Constituinte para redigir a nona Lei Constitucional, com o nítido objetivo de implantação do regime parlamentarista.
Pergunta-se, porém: quem estaria investido da prerrogativa de convocá-la? O presidente da República? Obviamente, não. A mera ideia de fazê-lo seria considerada prenúncio de golpe. Para não cair no esquecimento, em 7/12/1976 o presidente Castelo Branco baixou o Ato Institucional n.º 4, determinando ao Congresso Nacional que se reunisse para “discussão, votação e promulgação do Projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República”. No mesmo ato, em inequívoca demonstração de força, fixou as datas de início e de encerramento dos trabalhos. Tal como fora programado, a sexta Constituição da República foi solenemente promulgada em 24/1/1967.
Para afastar a Emenda n.º 1/69, promulgada pelos ministros militares que haviam substituído o general Costa e Silva, o presidente Sarney submeteu ao Congresso a proposta de Emenda Constitucional n.º 26, de 28/6/1985, cujo artigo 1.º prescrevia: “Os membros da Câmara dos Deputados e o Senado reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembleia Nacional Constituinte livre e soberana, no dia 1.º de janeiro de 1987, na sede do Congresso Nacional”. Não havia projeto ou data para a conclusão dos trabalhos. O resultado consistiu na Constituição de 5 de outubro de 1988, com 250 artigos, e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) contendo 94 outros.
O presidente Michel Temer não dispõe do poder de baixar atos institucionais, tampouco da autoridade incontestável do general Castelo Branco. Tampouco o quadro político atual se assemelha ao panorama encontrado pelo presidente Sarney em 1985, quando vigia a Emenda n.º 1/69, editada pelo triunvirato que sucedeu ao presidente Costa e Silva. Na Constituição ou no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, quem procurar não encontrará dispositivo que o autorize a proceder à temerária convocação. Poderia ela ser objeto de plebiscito ou referendo, previstos e regulados pela Lei n.º 9.709/1988, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e referendada pelo ministro Renan Calheiros? Certamente, não. Diz a lei que o plebiscito “é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo aprovar ou denegar o que lhe foi submetido”. Já o referendo “é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva rejeição ou aprovação” (artigo 2.º).
Seja como referendo, seja como plebiscito, o povo seria chamado a se manifestar sobre ato praticado, mas não consumado. Repelida a hipótese de golpe, trocar de Constituição é impossível na vigência de Estado Democrático de Direito. Inexiste no texto constitucional dispositivo de autodestruição que autorize alguém a propor a mudança por outra, de resultados incertos e imprevisíveis.
A esperança que contagiou a Nação em 1986, de ter a sua Constituição verdadeira e duradoura, terminou com as primeiras 20 emendas. Redigir legislação constitucional é tarefa para especialistas. Do Congresso eleito em 1986, integrado por 594 homens e mulheres, cada qual com raízes, interesses, vínculos e compromissos próprios, não se poderia esperar algo melhor do que o artificioso texto de 1988.
* Almir Pazzianotto Pinto é advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
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