- Valor Econômico
Está presente um bom número de fatores inibidores de uma rápida retomada, no Brasil e no exterior
Para a economia global, a crise da pandemia representou extraordinário aumento das incertezas, produziu queda gigante e imediata das vendas, da produção e do emprego, e acarretou abrupta piora das condições financeiras.
As respostas de política econômica vieram em tempo curto, visando não propriamente fornecer impulso keynesiano às economias, mas sim, tanto quanto possível, cuidar da sobrevivência das empresas e da preservação da renda e do emprego das pessoas.
Os governantes criaram e ampliaram variados programas de apoio (uns mais, outros menos eficazes), enquanto os bancos centrais (BCs) cuidaram de suprir liquidez, conceder empréstimos em larga escala, e restabelecer ou reforçar planos de compra de ativos. Onde havia espaço, os juros de política foram levados a zero.
Nas últimas semanas vieram sinais de melhora do quadro econômico. É o que sugerem, por exemplo, os índices de confiança, os PMIs e, talvez principalmente, a rápida e forte (embora com certa volatilidade) virada das condições financeiras. Supostamente, sinais de robusta recuperação econômica logo adiante. A nosso ver, porém, não cabe confiar na veracidade dessa hipótese. E a razão é a presença de bom número de fatores inibidores de uma rápida retomada, tanto aqui, quanto no exterior.
Quando se discute o provável comportamento de determinada economia após uma crise importante, faz sentido partir de um exame da situação antes prevalecente, para em seguida considerar eventuais mudanças relevantes provocadas pela crise.
No mundo avançado, o quadro era de elevada disposição para poupar e reduzido ânimo para investir. Em consequência, demanda agregada cronicamente deficiente, e inflação e juros baixos. Mudanças estruturais associadas à demografia, ao aumento da desigualdade e à natureza da tecnologia explicariam esses movimentos. No Brasil, o quadro era de quatro décadas de economia sem dinamismo, agravado por uma severa recessão recente. Nada indica que mudanças de comportamento provocadas pela pandemia atuarão para reverter essas tendências. Pelo contrário, possivelmente as acentuarão, tanto aqui, quanto lá fora.
Levando-se em conta que o surgimento de uma vacina, e sua aplicação em larga escala, ainda se mostram distantes, examinemos os fatores que, a nosso ver, atuarão de maneira a inibir uma rápida retomada da atividade econômica.
A primeira questão é fiscal. Possivelmente, nos países avançados, o período pós-crise significará um retorno à austeridade, como depois de 2008/09. No Brasil, o problema será o contrário, mas de efeito igualmente contracionista, devido a seu impacto sobre o risco país. Referimo-nos às previsíveis dificuldades para reverter o extraordinário aumento do déficit primário.
O segundo ponto tem a ver com a alta probabilidade de as incertezas recuarem, mas permanecerem elevadas, ensejando um movimento de poupança por precaução. Acresce que incertezas elevadas costumam segurar investimentos e a aquisição de bens duráveis, por exemplo. Some-se ainda o comportamento cauteloso dos muitos que continuarão inseguros com relação à questão sanitária, algo que segurará a expansão de diversos segmentos do setor serviços, como viagens aéreas e restaurantes.
Terceiro, famílias e empresas sairão da crise excessivamente endividadas e com acúmulo de compromissos financeiros postergados. Dívida elevada funciona como freio à expansão da demanda.
Quarto, muitas famílias terão consumido parcela importante de suas poupanças, o que nos faz acreditar que buscarão recompor seus patrimônios, antes de ir às compras.
Quinto, muitos negócios interrompidos na fase atual não serão restabelecidos mais adiante, para não falar dos efeitos de falências sobre terceiros, em prejuízo do produto potencial, devido à perda de capital organizacional.
Sexto, o tão discutido fenômeno de “deglobalization”, de certo modo já em curso nos últimos anos, poderá prejudicar, principalmente, economias emergentes dinâmicas, que há tempos se beneficiam do comércio internacional, que lhes dá escala de produção e as incentiva a avançar nos campos da tecnologia e da educação.
O sétimo ponto é específico do Brasil, e tem a ver com a vertiginosa piora do ambiente político, indiscutivelmente prejudicial à produção e aos investimentos, além das dúvidas que traz acerca da continuidade das necessárias reformas.
Por último, talvez caiba examinar até que ponto a política monetária expansionista, em curso lá fora e aqui, servirá para neutralizar os efeitos acima discutidos. Muitos argumentam que, no exterior, ao contrário do que aconteceu em 2008/09, os programas de afrouxamento monetário (QEs) têm produzido aumento de meios de pagamento, razão pela qual a demanda seria significativamente impulsionada.
A nosso ver, porém, para que isso de fato ocorresse, seria preciso uma expansão sustentável da demanda por crédito, algo que dificilmente se verificará. A expansão do crédito que hoje se observa é fruto da natureza dos programas oficiais, e serve apenas para cobrir os hiatos financeiros provocados pela crise. Não se trata do crédito mais saudável, comum quando são boas as perspectivas da economia. Já no Brasil, em matéria de estímulo, pouco se pode esperar desta fase final do ciclo de baixa de taxa de juros.
Coerentemente com os argumentos aqui apresentados, cabe finalizar mencionando a enorme dificuldade de prever o rumo que tomará a recuperação econômica, aqui e no exterior. As incertezas são muitas. Isto não nos impede, porém, de argumentar que retomada em V seguramente não teremos. Podemos debater a intensidade provável dos fatores aqui discutidos, mas não parece razoável negar a sua existência, tampouco a direção dos seus efeitos.
*José Júlio Senna é chefe do Centro de Estudos Monetários do FGV/Ibre, ex-diretor do Banco Central e autor do livro “Política Monetária - Ideias, Experiências e Evolução” (Editora FGV, 2010)
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