terça-feira, 16 de junho de 2020

Raul Jungmann* - Quem fala pelas Forças Armadas é a Constituição

- Folha de S. Paulo

O conflito ou inobservância das leis é resolvido pelo Judiciário

A recente nota à nação, subscrita pelo presidente da República, merece uma exegese das ideias e conceitos que nela constam, em especial o seu terceiro parágrafo, que diz o seguinte: “As Forças Armadas/FAs do Brasil não cumprem ordens absurdas, como por exemplo a tomada do Poder. Também não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos.”

Inicio nossa análise pela primeira das frases. Como as Forças Armadas, pelo artigo 142 da Constituição, estão sob a autoridade suprema do presidente da República e, por iniciativa dos poderes da República, são responsáveis pela garantia da lei e da ordem, de onde viria a “ordem absurda” para a tomada do Poder da República?

Constitucionalmente, de um dos três Poderes. Logo, a nota pressupõe que um ou mais Poderes estariam agindo ou viriam a agir de modo “absurdo”, portanto, inconstitucional. Ainda que abstrata, essa é uma suposição gravíssima e requer que seja demonstrada com fatos e provas à nação. O que não aconteceu.

Na sequência, ao afirmar que as Forças Armadas “não aceitam tentativas de tomada de um Poder por outro Poder”, os signatários elevam as Forças à condição de intérprete e árbitro final de disputas entre Poderes da República.

Algo que não é previsto em nenhum dos artigos da atual Constituição, nem em decisões do Supremo, além de ser essa competência privativa da Corte. A conclusão da frase segue o mesmo caminho: “Ao arrepio das leis ou de julgamentos políticos”.

Ora, quem decide sobre o conflito ou inobservância das leis é o Judiciário, jamais outro Poder, como se encontra cristalinamente no artigo 105 da Carta. Nesse caso, pelo texto da nota, recairia sobre os militares (e o Executivo, do qual fazem parte) o assenhoramento de competências de um outro Poder, o Judiciário.

Por fim, a referência a “julgamentos políticos”, que não seriam aceitos pelas Forças Armadas, as coloca na esfera da política. Cabe a pergunta: onde se encontra o mandato, atribuição ou competência delas para decidir que um julgamento é político ou não?

Nada, na sua destinação constitucional, as habilita, salvo como cidadãos, a decidir se um julgamento é ou não político. Valendo lembrar que o impeachment, competência do Congresso Nacional, é um julgamento político. Ergo, seria incavíbel às Forças Armadas não aceitá-lo, ainda que tal processo esteja fora de questão no momento.

Constitucionalmente, pelas Forças falam o presidente da República, seu comandante supremo, e o ministro da Defesa. Ambos têm afirmado, reiterada e publicamente, que as Forças Armadas não opinam, nem interferem na esfera da política.

Donde se conclui que as mesmas não foram consultadas sobre algo que não é de sua competência. Assim, é inescapável que presidente e ministro falaram por elas, mas não com elas, que não participam, corretamente, do jogo político.

Sendo pertinente concluir que os signatários da nota se manifestaram pelas Forças sem seu conhecimento, consentimento ou anuência, lhes atribuindo juízos políticos que elas ignoram, e objetivos que lhes são estranhos, em frontal colisão com o que determina a Carta e sua natureza como instituição de Estado, jamais de governo.

Nossas Forças Armadas têm sido democraticamente impecáveis e não cabe à oposição, muito menos ao governo, desviá-las desse rumo, pois é através do seu compromisso e postura que nos fala a Constituição.

*Raul Jungmann, Ex-ministro da Reforma Agrária (governo FHC), Defesa e Segurança Pública (governo Temer)

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