Governo precisará reduzir arsenal em poder da população
O Globo
Facilitação da compra de armas alimentou
crime organizado — a sociedade continua ameaçada
Era previsível, diante do “liberou geral”
do governo Jair Bolsonaro no acesso a armas, que a permissividade das novas
normas beneficiasse não só os, por assim dizer, “cidadãos de bem”, mas também
organizações criminosas, destino de boa parte das armas compradas legalmente.
Não deu outra. Como mostrou reportagem do GLOBO, pretensos colecionadores,
atiradores desportivos e caçadores (grupo conhecido como CAC) têm usado
registros legais para abastecer o já extenso arsenal de milícias do Rio.
Em fevereiro deste ano, a polícia fluminense prendeu um grupo de milicianos em Campo Grande, Zona Oeste do Rio. Na ocasião, foi apreendida uma pistola calibre 9mm com um atirador certificado pelo Exército. A arma, comprada numa loja da Baixada Fluminense, tinha toda a documentação legal, com certificado e guia de transporte, mas deveria ser usada apenas em estandes de tiro e competições. Outras quatro armas legais citadas na reportagem foram apreendidas com milícias. Não levaram nem um ano para ir da fábrica ao crime.
A facilitação para compra, posse, porte e
transporte de armas e munições promovida no governo Bolsonaro fez disparar os
números. De dezembro de 2018 a julho de 2022, a quantidade de armas com CACs
subiu de 350.683 para 1.006.725, um aumento de 187%. Mudanças na legislação
permitiram a cada CAC comprar até 60 armas. O problema não diz respeito apenas
ao tamanho do arsenal, mas também à letalidade. Equipamentos de guerra antes de
uso restrito, como fuzis, passaram a ser comprados facilmente por meio de
registros obscuros. Circulam por aí, sabe-se lá nas mãos de quem.
Nos primeiros dias do atual governo, um
“revogaço” tentou conter o efeito deletério dos decretos baixados na gestão anterior.
Foram proibidos novos registros de CAC e novos clubes de tiro. Foi determinado
ainda um recadastramento de todas as armas compradas a partir de 7 de maio de
2019, quando surgiram os primeiros decretos. O governo prorrogou em um mês o
prazo para o recenseamento, que venceria nesta semana. Já foram recadastradas
824 mil armas. O controle dos CACs, antes exclusivo do Exército, passará a ser
feito também pela Polícia Federal.
Ainda que o recadastramento seja uma
decisão acertada, o problema permanece: está em circulação um arsenal, que
inclui armas pesadas cujo uso deveria permanecer restrito. Independentemente de
governos, o Estado já mostrou que não tem condição de fiscalizar nem os
registros nem as armas — caso contrário, elas não acabariam nas mãos de
criminosos. Mesmo sob a guarda de quem nada tem a ver com o crime, não estão
seguras. O noticiário está repleto de histórias aparentemente banais que se
transformaram em tragédias porque havia em cena uma arma.
Além de dificultar a compra de novas armas
e de tentar conter a profusão de CACs, o governo precisará agir para reduzir o
arsenal existente. Com tantas armas nas mãos de cidadãos sem treinamento para
usá-las, ou de milicianos e traficantes treinados em suas guerras particulares,
a sociedade permanece sob risco constante.
Revogar reforma do ensino médio
comprometeria futuro do Brasil
O Globo
Ao suspender implementação por 60 dias,
governo abriu oportunidade a disparates dos grupos mais radicais
O ministro da Educação, Camilo Santana,
assinou portaria determinando que, depois da conclusão de uma consulta pública
prevista para acabar em junho, o cronograma de implementação do novo ensino
médio será suspenso por 60 dias. Se for apenas um freio de arrumação necessário
e urgente, será benéfico para o país. Caso se torne uma oportunidade para
grupos radicais descarrilarem a reforma do ensino médio, o futuro do Brasil
estará comprometido.
Revogar a lei de 2017, como querem partidos
de extrema esquerda, é um disparate. Os argumentos são todos falaciosos.
Critica-se ter sido aprovada no governo Temer, como se apenas governos de
esquerda fizessem boas leis. Ressalta-se que ela foi fruto de uma Medida
Provisória (MP), querendo passar a ideia equivocada de ausência de um amplo
debate. Mas a MP não apareceu do nada. Incorporou as principais ideias de um
Projeto de Lei apresentado em 2013 pelos deputados federais Reginaldo Lopes
(PT-MG) e Wilson Filho (Republicanos-PB), com base em debates travados na
Comissão Especial para a Reformulação do Ensino Médio, criada em 2012.
O desafio agora é como melhorar o que foi
feito, não voltar atrás. Há, sem dúvida, pontos que precisam ser revistos. A
lei aumentou a carga horária e dividiu o currículo em dois blocos. Um com
disciplinas básicas, como português, física, biologia e matemática. O outro,
batizado de itinerário formativo, com programas para aprofundar o conhecimento
e a formação técnica e profissional. Exatamente como o ensino médio funciona
nos países com os melhores resultados em educação.
Posta em prática, a reforma provou ter
deficiências que necessitam de ajustes substanciais (alguns com anuência do
Congresso). Um é acabar com o teto de 1.800 horas para as disciplinas básicas
nos três anos. A dedicação a esses temas deve ser maior. Outro reparo é acomodar
20% do tempo escolar com educação à distância. O período da pandemia mostrou
que o ensino on-line ampliou o fosso no desempenho de crianças pobres e ricas.
Os itinerários formativos precisam ser, pelo menos num primeiro momento, menos
flexíveis, para evitar criar cursos sem sentido.
O Conselho Nacional de Secretários de
Educação (Consed) criticou a portaria do MEC e defendeu o trabalho dos estados
até aqui. Alguns avançaram, apesar dos problemas da lei. Mas, num país com
gestões tão díspares, outros estados ficaram para trás. Em comum, todos
necessitam de mais apoio do MEC, inexistente nos últimos quatro anos. Há ainda
problemas estruturais a resolver.
Sabendo do apelo público do tema, representantes do Consed disseram que a portaria do MEC poderá inviabilizar a realização do Enem reformado em 2024. É um ponto que o ministério terá de esclarecer para tranquilizar os estudantes e suas famílias. Não é o único. Falta o MEC ser mais determinado na coordenação do debate. O que está em jogo não é apenas o Enem de 2024, mas os de 2025, 2026, 2027, 2028, 2029, 2030 etc.
De novo a gasolina
Folha de S. Paulo
Alta do petróleo ameaça intensificar
pressões do governo sobre a Petrobras
As tensões domésticas e internacionais em
torno dos preços dos combustíveis voltam a ganhar impulso com a decisão dos
países produtores de reduzir a oferta de petróleo.
Até o fim de semana, a desaceleração do
ritmo de crescimento mundial contribuíra para a queda das cotações, tendência
intensificada pelas quebras de bancos nos EUA e na Europa. Ao menos no curto
prazo, havia indícios de que o preço do barril do tipo Brent poderia ficar
abaixo de US$ 80, ante US$ 101 na média de 2022.
No domingo (2), porém, a Opep+, cartel de
países produtores, anunciou uma redução de 1,1 milhão de barris por dia. Em
novembro, o corte fora de 2 milhões de barris. A produção mundial de petróleo e
outros combustíveis líquidos é de cerca de 100 milhões diários, dos quais um
terço da Opep+.
A providência atende a interesses da Arábia
Saudita, que desenvolve um ambicioso projeto de transformação econômica com o
intento de se tornar um centro turístico e tecnológico. Antes da empreitada, as
contas do país requeriam um barril à cotação de US$ 75, na avaliação de
analistas. Agora, o piso seria maior do que US$ 90.
Pouco antes do anúncio do corte da
produção, já era esperado que o preço teria alguma alta por causa da retomada
da economia chinesa. Agora, acredita-se que o Brent chegue a algo entre US$ 90
e US$ 95 no final do ano.
Pode não ser um choque em relação a 2022,
mas certamente vai afetar custos de empresas em momento de baixa econômica e
conter a queda de uma inflação resistente, ao menos no curtíssimo prazo. Mais
adiante, o preço vai depender também do tamanho da desaceleração de EUA e
Europa, sobre o que ainda não há consenso.
No Brasil, o novo cenário pode incentivar
propostas demagógicas com o intuito de conter o encarecimento dos combustíveis,
entre outras iniciativas mal pensadas de impulsionar a produção de diesel e
gasolina no país.
Nesta quarta-feira (5), a propósito, o
ministro Alexandre Silveira, de Minas e Energia, meteu-se a
pontificar sobre os preços da Petrobras —que, segundo ele,
serão fixados conforme uma nova política. Após megaprejuízos sob Dilma Rousseff
(PT), a estatal vem seguindo as cotações internacionais.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dá
continuidade ao assédio de Jair Bolsonaro (PL) à empresa, que acaba de trocar
de comando.
Não se sabe se as declarações do ministro à
Globonews têm o respaldo do presidente, que já atacou a paridade internacional.
Fato é que o jogo de pressões e especulações não constitui uma forma
profissional de gerir o patrimônio público.
Trump e a lei
Folha de S. Paulo
Indiciamento do ex-presidente mostra vigor
democrático, mas pode fortalecê-lo
A terça-feira (4) entrou para a história
dos Estados Unidos como o dia em que
um ex-presidente, o farsesco Donald Trump, pela primeira vez foi indiciado —em
nada menos do que 34 acusações criminais.
Que isso só tenha acontecido dois séculos e
meio após o estabelecimento da república diz muito acerca do sistema político
americano. França, Coreia do Sul e Brasil estão entre as democracias em que
ex-líderes não tiveram tanta sorte.
Assim, a presença de Trump em um tribunal
alude à virtude do regime democrático, mas também é um lembrete acerca do que
ocorre quando ele se degenera.
Do lado positivo, há o que a promotoria
chamou de prova, ainda que tardia, de que a lei é para todos. O caso mostra que
às vezes se cai por transgressões menores, como ocorreu nos anos 1930 com o
gângster Al Capone, que foi preso por sonegação de impostos.
Todas as 34 acusações estão relacionadas a
falsificações de documentos referentes a pagamentos realizados com verba de
campanha não declarada.
O dinheiro teria sido usado para esconder
informações potencialmente prejudiciais durante as eleições —como
o pagamento de US$ 130 mil a uma atriz pornô para que ela não revelasse um
suposto caso extraconjugal com Trump.
O ex-presidente americano chegou ao poder a
partir de uma avalanche de mentiras e da distorção do conservadorismo do
Partido Republicano, produzindo efeitos globais —como o populismo reacionário
de Jair Bolsonaro (PL).
Se Bolsonaro sempre emulou seu ídolo, e
suas trajetórias se entrelaçam em desempenho eleitoral, incapacidade gerencial,
golpismo, risco de punição e tentativa de volta por cima, é importante que o
Brasil acompanhe com atenção os desdobramentos do caso nos EUA.
A ida de Trump ao tribunal se tornou um
circo vulgar, amplificado por seu paranoico discurso após o indiciamento,
com acusações de
perseguição contra a promotoria. Assim, tende a se energizar ao
assumir a posição de mártir político, e talvez consolide sua postulação à Casa
Branca em 2024.
O conservadorismo que o apoiou busca
viabilizar o governador da Flórida, Ron DeSantis, mas parece que o sequestro
republicano pelo trumpismo é definitivo.
As acusações não devem favorecê-lo junto aos decisivos eleitores pendulares, mas é cedo para dizer. Mesmo uma eventual condenação judicial, convém recordar, não tornará Trump inelegível —ameaça que ronda Bolsonaro aqui.
Bagunça na educação
O Estado de S. Paulo
Ao suspender processo de implantação do
novo ensino médio, o governo petista cede ao esperneio dos inconformados e
amplia a confusão num setor crucial para o desenvolvimento do País
Uma confusão se instalou nas escolas do
País desde a última segunda-feira, com milhões de alunos sem saber se o atual
arranjo curricular decorrente da reforma do ensino médio será mantido ou
abandonado. A onda de incerteza se espalhou após o ministro da Educação, Camilo
Santana, anunciar a suspensão do cronograma de implementação da reforma,
adiando, de imediato, a adaptação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),
prevista para vigorar em 2024. O próximo passo, quem sabe, é cumprir a ameaça
do presidente Lula da Silva, que avisou que a reforma do ensino médio “não vai
ficar do jeito que está”.
Não se pode condenar quem suspeite que essa
ofensiva contra a reforma do ensino médio seja uma vendeta pessoal de Lula e
dos petistas contra o ex-presidente Michel Temer, cujo governo lançou a
iniciativa. Como se sabe, o PT considera que o impeachment de Dilma Rousseff
foi um “golpe” urdido por Temer, então vice-presidente, embora todo o processo
tenha respeitado, ipsis
litteris, o que vai na Constituição. Como consequência, os petistas
entendem que tudo o que foi produzido sob a Presidência de Temer carece de
legitimidade e deve ser derrubado. Assim foi com o teto de gastos; assim está
sendo com a reforma trabalhista e com a Lei das Estatais; assim será,
aparentemente, com a reforma do ensino médio.
Terra arrasada não é uma boa maneira de
fazer política pública, ainda mais numa área tão sensível como a educação, que
afeta a vida de crianças e adolescentes de modo muitas vezes irreversível. A
reforma do ensino médio não se pretendia perfeita, mas era uma tentativa
concreta de reverter um crescente desinteresse dos jovens pela escola,
sobretudo porque o currículo e o método não correspondiam às suas expectativas
e necessidades.
A mudança proposta pelo governo Temer,
embora tenha sido encaminhada por meio do questionável instrumento da medida
provisória, foi debatida no Congresso e convertida em lei – que aumenta a carga
horária e a possibilidade de que os alunos escolham disciplinas eletivas
agrupadas em itinerários formativos que correspondem a cerca de 40% da carga
horária. Se havia ressalvas ao que ali estava sendo proposto, elas poderiam ter
sido feitas ao longo do processo legislativo. Debates sobre políticas públicas
são sempre necessários, mas é preciso implementar as mudanças aprovadas
democraticamente. Se há lei, que se cumpra, sem prejuízo de ajustes e
aprimoramentos posteriores.
Ademais, é bom lembrar que o caminho da
implementação da reforma do ensino médio foi bastante acidentado. Não bastasse
a pandemia de covid-19, que fechou escolas por muito tempo e depois submeteu os
alunos a aulas remotas que lhes despertaram escasso interesse, a educação foi
negligenciada de forma sistemática pelo governo de Jair Bolsonaro, mais interessado
em censurar professores e em militarizar escolas do que em melhorar a qualidade
curricular. Tudo isso, é claro, impede que se tenha um quadro claro, neste
momento, sobre os méritos da reforma.
Revogá-la, contudo, seria um absurdo. Até a
reforma, a educação ainda estava submetida à realidade do século passado, num
modelo condenado por quase todos os especialistas como atrasado e
insatisfatório. Os petistas, que hoje detonam a reforma, tiveram quase 15 anos
de governo para mudar essa situação, mas nada fizeram. Como resultado, o ensino
médio continuou incapaz de preparar os jovens brasileiros para os desafios do
século 21 e para o exercício da cidadania. Não se sabe se a reforma proposta
por Temer e agora sabotada pelos satélites lulopetistas é mesmo a melhor
resposta para esses desafios, mas ninguém honesto é hoje capaz de dizer que ela
fracassou, pois nem sequer está plenamente em vigor.
O papel do governo, mais que nunca, é apoiar as escolas na implementação da reforma. Especialmente no caso das redes estaduais, que respondem por oito em cada dez alunos de ensino médio no País. O açodamento do governo só serve para gerar instabilidade. Não é assim que se promove um debate sério sobre educação.
Prisão ilegal é sempre inconstitucional
O Estado de S. Paulo
A manutenção de prisões ilegais pelo STF
expõe a dificuldade habitual do Judiciário em ater-se aos limites da lei.
Suspenso na ditadura, ‘habeas corpus’ é garantia constitucional de todos
Era um caso evidente de concessão de habeas
corpus. Não existe prisão preventiva de ofício no Brasil. Os crimes pelos quais
os presos são investigados têm pena pequena, não ensejando a medida restritiva
de liberdade nessa fase. No entanto, apesar de todas as evidências da
ilegalidade das ordens de prisão, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo
Tribunal Federal (STF), negou o pedido de habeas corpus impetrado pela
Defensoria Pública da União (DPU) em favor de seis pessoas presas em frente ao
Quartel-General do Exército, em Brasília, no dia 9 de janeiro.
É um escândalo, especialmente por vir da
mais alta Corte do País. A fundamentação dessas prisões é frágil. Como mostrou
reportagem do Estadão, há trechos idênticos em várias decisões, com uma
argumentação a explicitar sua própria deficiência. Por exemplo, num dos casos,
Alexandre de Moraes fundamenta a prisão no fato de o “investigado ter feito uso
das redes sociais para divulgação dos atos antidemocráticos ocorridos em 8 de
janeiro de 2023, com postagem de vídeos com conteúdo incentivando os atos de
invasão, vandalismo e depredação, (...) mesmo não sendo o investigado apontado
como um dos executores materiais”.
Como é evidente, para decretar a prisão, a
lei processual penal demanda condições um tanto mais exigentes do que as
apontadas pelo ministro do STF. Caso o Código de Processo Penal (CPP)
autorizasse tal discricionariedade, ele seria inconstitucional. Ou seja, ao
manter essas prisões, Alexandre de Moraes descumpre o CPP e a Constituição. A
liberdade é tema sério, que impõe limites intransponíveis ao poder estatal.
No entanto, há quem pretenda ver nos casos
do 8 de Janeiro os únicos abusos praticados pelo sistema de Justiça penal, como
se, no restante, não houvesse nenhuma ilegalidade. Haja seletividade para
justificar tamanha cegueira. Infelizmente, o que Alexandre de Moraes tem feito
com as pessoas envolvidas nos atos antidemocráticos não tem nenhum caráter
excepcional. É assim que o Judiciário trata, de forma corriqueira, muitas
pessoas, sejam elas inocentes ou culpadas, ultrapassando habitualmente os
limites da lei. Muitas vezes, os argumentos para a prisão são tão ou mais
frágeis do que os apresentados por Alexandre de Moraes, também com
fundamentações repetidas em série, sem individualização.
Por ser a prisão ilegal tão grave e ao
mesmo tempo tão frequente, a Constituição assegura, entre os direitos
fundamentais, a concessão da ordem de habeas corpus “sempre que alguém sofrer
ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de
locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (art. 5.º, LXVIII). Trata-se de
proteção constitucional da mais alta importância, para todos os cidadãos.
Não à toa, no recrudescimento do
autoritarismo, por meio do Ato Institucional (AI) 5 – considerado “o golpe
dentro do golpe” –, o governo militar, além de decretar o recesso do Congresso
e outros abusos, suspendeu a garantia do habeas corpus. Foi um meio de
instaurar a ilegalidade e a barbárie. É importante não se esquecer disso quando
se ouve Jair Bolsonaro homenageando a ditadura militar. É tal barbaridade o que
essa turma costuma louvar. Em 2019, recorde-se, Eduardo Bolsonaro, filho do
então presidente, mencionou a possibilidade de se decretar um novo AI-5.
Por mais vis e contraditórias que sejam as
opiniões dos bolsonaristas, eles – como todos os outros cidadãos – devem ter
seus direitos respeitados. Mas não se pode ignorar a desproteção das liberdades
e garantias fundamentais promovida por Jair Bolsonaro, quando ataca os
mecanismos de controle da legalidade. Por exemplo, na campanha do ano passado,
ele prometeu “acabar com a audiência de custódia, hoje um dos maiores estímulos
à impunidade no País”, e “garantir retaguarda jurídica e excludente de
ilicitude para agentes de segurança”.
É mais que hora de o Judiciário, incluindo
o STF, rever suas práticas. E é também hora de uma nova compreensão sobre as
liberdades e garantias fundamentais, que devem valer para todos – e não apenas
para os que clamam por intervenção militar.l
Mais um revés para Putin
O Estado de S. Paulo
Entrada da Finlândia na Otan, revertendo
décadas de neutralidade, expõe mais o desvario do déspota russo
Cuidado com o que se deseja. Com sua
guerra, Vladimir Putin desejava mudar o mundo. E mudou. Mas não como queria. Ao
contrário. Ele queria eliminar a Ucrânia como nação – mas galvanizou o
nacionalismo dos ucranianos e seus anseios por uma democracia alinhada ao
Ocidente. Ele queria expor a fraqueza do Ocidente e acirrar suas divisões – mas
o uniu na concertação sem precedentes das sanções e do apoio à Ucrânia. Ele
queria reviver as glórias imperiais e reposicionar a Rússia como superpotência
– mas provocou um êxodo dos cidadãos mais educados e está atemorizando a
população sob seu despotismo militar, arruinando suas perspectivas econômicas e
rebaixando o país à condição de vassalo da China. Ele queria afastar a Otan e
consolidar sua narrativa de que ela coage nações a integrar sua expansão – mas
forçou países a bater em sua porta.
Na terça-feira, as fronteiras entre a Otan
e a Rússia dobraram com a adesão da Finlândia. Semanas antes da invasão da
Ucrânia, a premiê finlandesa dizia que a adesão era “muito improvável”; semanas
depois, convocava o Parlamento a autorizar o pedido, revertendo décadas de
neutralidade – no caso da Suécia, à beira de ingressar, são séculos. Ambos
trarão forças formidáveis para a Otan – a Finlândia, em especial, tem a maior
artilharia da Europa – e facilitarão a defesa dos Estados Bálticos.
Putin dirá que se trata de mais uma
provocação da Otan. No caso da adesão de ex-satélites eslavos da URSS – com seu
histórico de imbróglios étnicos e fronteiriços com a Rússia –, até havia uma
plausibilidade superficial nesse argumento. Mas, contrariamente ao que ela
alega, não havia um acordo impedindo a adesão desses países, e, como notou a
propósito o ex-premiê da Suécia Carl Bildt, “não foi tanto a Otan que se
empenhou em ir ao Leste, foram diferentes nações que se empenharam em ir ao
Ocidente”. Já os dois países nórdicos tinham um histórico de não alinhamento
que poderia se perpetuar. Se a opinião pública mudou tão rápido, não foi por
hostilidade aos russos – culturalmente as relações seguem amistosas –, mas por
temor de seu líder. Como resumiu o presidente finlandês em mensagem a Putin:
“Você causou isso. Olhe-se no espelho”.
Mas, se Putin obteve o inverso do que queria, ainda pode virar o jogo. A guerra está longe de acabar e ele deve intensificar suas táticas híbridas de confronto com o Ocidente via desinformação, interferências em eleições, corrupção, crime organizado, assassinatos extraterritoriais, disrupção das cadeias de suprimento e sabotagens cibernéticas. Os Estados democráticos precisarão compartilhar ainda mais tecnologia e inteligência do que na guerra fria. Os europeus, em especial, precisam convencer suas populações, acostumadas a décadas de “dividendos da paz”, a investir em capacidades bélicas e a suportar sacrifícios para apoiar a Ucrânia. Sua derrota convidaria novas agressões e seria um dínamo para a propaganda do eixo autocrático liderado por Rússia e China do “declínio do Ocidente”. Pelo momento, contudo, o ingresso da Finlândia na Otan reduziu esse risco.
Rivalidade entre EUA e China muda mapa do
investimento
Valor Econômico
O FMI não acredita que a neutralidade na
briga entre EUA e China será vantajosa
A consolidação da rivalidade entre as duas
maiores economias do mundo, Estados Unidos e China, será empobrecedora para a
economia global, um retrocesso para a globalização que trará menos crescimento,
maiores custos e menor produtividade. O mais recente alerta para essas
consequências da divisão veio ontem do Fundo Monetário Internacional, em um
capítulo de “Perspectivas da Economia Mundial”. O Fundo avalia que a possível
fragmentação dos fluxos de investimentos externos diretos de acordo com o
alinhamento político com os países rivais trarão perdas para a produção mundial
de 2% a longo prazo. Os países emergentes estariam entre os maiores perdedores.
Os sinais da mudança de direções dos
investimentos diretos, consequência direta da disputa mais ampla entre China e
EUA, já são mais visíveis nos setores de tecnologia de ponta, um dos
motivadores do cisma: o temor de Washington de que a China cumpra seus planos e
se torne o país mais avançado em novas tecnologias em áreas vitais, o que a
colocaria também muito perto da supremacia militar. Os investimentos externos
em semicondutores na Ásia, por exemplo, caíram desde 2019 e os na China, mais
de 50%.
A reconfiguração de blocos produtivos será
desenhada por afinidades políticas (friendly shoring) e proximidade (near
shoring), mas o documento do FMI deixa claro que, entre as duas, a afinidade
política é a decisiva. Com isso, os países rivais buscam em primeiro lugar a
segurança nacional, o que envolve a disponibilidade de oferta de bens vitais
para o avanço tecnológico e econômico. Um de seus motores é a diversificação do
fornecimento. A pandemia e a interrupção do funcionamento das cadeias
produtivas nesse período deixaram claro que a dependência dos produtos chineses
foi longe demais e se tornou um risco perigoso e caro.
Os EUA, que sob Trump iniciaram a guerra
comercial com a China, mudaram suas prioridades de investimentos externos,
assim como os chineses. A redução das inversões americanas na China foi de 37%,
enquanto houve aumento em parceiros como Canadá e Coreia do Sul, e decréscimo
no Vietnã e outros países asiáticos.
No estágio inicial da fragmentação dos
investimentos diretos globais é possível apontar vencedores e perdedores. A
China é a maior perdedora, e, curiosamente, reduziu, na comparação entre o
segundo trimestre de 2020 e o último de 2022, em relação a 2015, seus
investimentos em todos os continentes. A Europa emergente é uma das ganhadoras.
A variação média dos investimentos dos EUA nesse período foi maior lá do que
nos países vizinhos da América Latina, Canadá ou Ásia. A preferência dos países
europeus avançados é investir no continente e, em segundo lugar, nos Estados
Unidos.
O FMI avaliou fatores de vulnerabilidade
resultantes da reconfiguração geopolítica e produtiva no futuro. Países que
estão entre os maiores exportadores de determinados produtos são menos frágeis
à nova realidade. Países com investimentos externos em fábricas para fornecer
insumos para as matrizes ou subsidiárias no mundo, ao contrário, podem ser
diretamente atingidos. E, no que é importante em especial para o Brasil, o
Fundo aponta que “uma forte qualidade regulatória tende a estar associada à
menor vulnerabilidade à realocação do investimento externo direto”.
Brasil, China, Índia, grandes economias
emergentes, estão entre os principais países que poderão ter problemas com
redirecionamento dos investimentos. O FMI não acredita que a neutralidade na
briga entre os dois maiores blocos, EUA e China, será vantajosa, e sim
prejudicial. Embora reconheça que a independência dê algum poder de barganha
aos não alinhados, o Fundo argumenta que “um mundo geoeconomicamente
fragmentado traria incerteza substancial para economias que tentarem permanecer
abertas para ambos blocos geopolíticos”.
Um motivo lógico para isso é que esses
países podem não se tornar confiáveis para os países rivais e “ter de andar em
um caminho estreito de pressões dos dois lados, com o risco iminente de se
alinhar com um ou outro”. Será um grande desafio para a diplomacia brasileira.
Para aumentar sua atração de investimentos nesta nova ordem, o Fundo recomenda receitas conhecidas: políticas que promovam o desenvolvimento do setor privado, melhoria da infraestrutura, reformas estruturais e redução da burocracia.
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