O Estado de S. Paulo
A lista de promessas é ampla e talvez os autores já soubessem da predisposição kantiana dos brasileiros ao julgar ações com base nas intenções
Meu dicionário apresenta cinco significados
para o termo arcabouço, em geral associados a estruturas materiais. A exceção é
o conceito que se aplica ao documento divulgado na semana passada pelo governo
federal: um delineamento inicial, um esboço, no caso, o de um ajuste fiscal.
Versão ampliada deverá vir com o respectivo projeto a ser encaminhado ao
Congresso Nacional, e o que lá for aprovado passará a ser o desenho de um
ajuste fiscal voltado para o resultado fiscal primário do governo, aquele que
não envolve o pagamento de juros, e para a evolução do endividamento.
Esse arcabouço foi bem recebido pelo mercado financeiro: a Bolsa subiu e o dólar caiu. E não vi reações negativas nem de grupos petistas que costumam reagir mal a propostas desse tipo, mesmo se vindas de um governo dos seus pares. Lembrei-me dessa reação positiva ao ver um artigo na Folha de S.Paulo de domingo passado, intitulado A ética do brasileiro, escrito por Álvaro Machado Dias e Hélio Schwartsman. Em resumo, os dois argumentam que “(...) no campo ético a maioria dos brasileiros tem perfil kantiano, ou seja, julga ações como certas ou erradas com base nas intenções, não nos resultados alcançados”. Kantiano conforme conceito associado ao filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), segundo esses autores.
Quanto ao arcabouço e seu futuro, seguirei
como usualmente faço, avaliando intenções deste documento e noutros artigos
neste espaço analisando os resultados alcançados. Optei por trazer também ao
leitor um resumo deste arcabouço, pois, pelo que vi, as análises até aqui não
fizeram isso. Para o leitor interessado, acrescento que a íntegra pode ser
vista em bit.ly/439Go11.
As intenções, nos seus aspectos gerais,
ficam claras a partir da primeira página de dados e gráficos, de um total de
nove páginas, constantes da apresentação divulgada pelo ministro Fernando
Haddad. Nessa primeira página há um gráfico da receita líquida, da despesa
total e do resultado primário do governo federal no período de 1997 a 2010, e
destaque é dado ao que vai de 2003 a 2010 (governos Lula I e II). Nesse
período, conclui-se que a receita líquida aumentou, a despesa total também, o
resultado primário foi majoritariamente superior a 2% do PIB, e tanto essa
despesa como esse resultado foram “ancorados no incremento de receitas” (realce
também no texto original).
Ou seja, o governo se espelha claramente
nesse incremento de receitas para seguir no seu plano que deverá incluir
aumento de despesas e do resultado primário. Se vai conseguir, é outra
história, pois os períodos Lula acima citados foram muito favorecidos pelo boom
de commodities então ocorrido, que gerou mais crescimento econômico, mais
arrecadação tributária e também trouxe altas reservas externas para o País, o
que nos livrou do trágico caminho argentino, onde há muito tempo elas são
escassas num contexto de baixo crescimento e alta inflação. Voltando ao que
quer o arcabouço, vale lembrar que uma carga tributária que cresceu muito no
passado será mais difícil de aumentar agora.
Em seguida, o arcabouço fiscal entra em
alguns detalhes do que pretende, como o que está no trecho intitulado Reparação
Social no Brasil: o novo Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo, da
isenção do Imposto de Renda e dos recursos para a saúde. Prosseguindo, detalha
seu compromisso de resultado primário com bandas, indo de -0,5% do PIB, em
2023, a 1,00% do PIB, em 2026, ano em que as bandas seriam de 1,25% e 0,75% do
PIB. Parece pouco, mas 1% do PIB equivale a cerca de R$ 100 bilhões. Em
seguida, vêm algumas regras fiscais para o atingimento dessas metas de
resultado primário.
Depois, o arcabouço apresenta duas
hipóteses de queda dos juros sobre a dívida bruta do governo, com redução de R$
80 bilhões, em 2023, a R$ 186 bilhões, em 2026, sem explicitar em qual das duas
hipóteses sobre queda dos juros sustentam esses números. E o gráfico vai até
2031 (!), quando a redução alcançaria R$ 360 bilhões, uma previsão de altíssimo
risco e desnecessária.
O título da última página é O que o
arcabouço garante.A lista é grande: mais pobres de volta ao Orçamento,
recuperação de políticas públicas essenciais, mais espaço para o investimento
público, menos inflação, mais estímulo ao investimento privado, menos juros na
dívida pública, atração de investimentos internacionais, mais previsibilidade e
estabilidade e recuperação do grau de investimento.
Ora, o arcabouço em si, por ora, não
garante nada. Precisa passar pelo Congresso, onde poderá ser alterado e terá
seu formato final como desenho de um ajuste fiscal. E o sucesso desta versão
final irá depender da sua adequada execução.
A lista de promessas é muito ampla e talvez
os autores já soubessem da predisposição kantiana dos brasileiros ao julgar
ações como certas ou erradas com base nas intenções, e não nos resultados
alcançados.
*Economista (Ufmg, Usp e Harvard), é consultor econômico e de ensino superior
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