Valor Econômico
É um erro achar que projeto autoritário foi
vencido em 2022
Quando Jair Bolsonaro se lançou candidato à
Presidência em 2018, poucos analistas - ou quase nenhum - da cena política
nacional acreditaram que ele pudesse ganhar a disputa. Todos olhamos para
Bolsonaro com base nas referências do passado - contar com o apoio de partidos
fortes nos Estados, dispor de bom tempo no horário eleitoral gratuito, ser
conhecido nacionalmente, ter experiência executiva anterior, entre outras.
Bolsonaro só tinha, na ocasião, uma legenda
o apoiando - o PSL (hoje, União Brasil), com o qual não demorou a romper. Tempo
no horário eleitoral era algo, portanto, com o que ele não contava em sua
campanha. Totalmente desconhecido ele não era porque, nos sete mandatos
consecutivos como deputado federal pelo Rio de Janeiro, fez do alarido
quixotesco a sua estratégia de comunicação, sempre em defesa dos benefícios de
militares e funcionários públicos em geral.
Consta que Bolsonaro não apresentou um projeto de lei sequer durante 28 anos, mas sempre dava um jeito de aparecer sob os holofotes das redes de TV. Certa feita, pontuou durante uma edição do programa humorístico “Casseta & Planeta”, da Rede Globo. Por mais que parte da audiência o considerasse “folclórico”, Bolsonaro semeava imagem de político honesto e “outsider”, isto é, aquele que “não se mistura” com políticos tradicionais.
Quando as primeiras pesquisas de 2018
mostraram o então deputado liderando as preferências, o coro unânime dos
analistas era o de que, iniciado o horário eleitoral gratuito, os índices de
Bolsonaro “derreteriam” em decorrência de seu minguado tempo de TV. Bem, como
se sabe, isso não ocorreu. Tendo feito sua campanha - inclusive, muito antes do
período oficial - integralmente na internet, ele desprezou o horário gratuito,
que, para grande parcela dos brasileiros, só serve para interromper a novela do
horário nobre.
Bolsonaro chegou à Presidência graças a
algo novo e disruptivo na política brasileira: o uso da tecnologia,
especialmente, da relacionada às chamadas redes sociais. Para Paulo José Lara,
coordenador da área de Direitos Digitais da organização não governamental
Artigo 19, “as eleições presidenciais de 2018 marcaram o ápice de campanhas de
‘fake news’, orquestradas por grupos organizados e com interesses políticos e
econômicos específicos”.
Artigo 19 foi fundada em 1987, em Londres,
com a missão de defender e promover o direito à liberdade de expressão e de
acesso à informação em todo o mundo. Começou a funcionar no Brasil em 2007. Tem
esse nome em referência ao artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, aprovada pela ONU em 1948, que estabelece, como fundamental, o direito
dos homens à liberdade de opinião e expressão.
Chefiada pela jurista e historiadora Denise
Dourado Dora, a ONG nunca esteve tão ativa quanto nos últimos anos. E não é
para menos: a (sempre) jovem democracia brasileira está sob ataque, e de forma
estrutural, com recursos, parte de um projeto de poder que não foi derrotado
pelo resultado da eleição do ano passado. O maior equívoco que os defensores do
regime democrático podem cometer doravante é achar que a história acabou. Na
verdade, pode estar apenas começando.
A Artigo 19 identificou outras tecnologias
e práticas que vêm sendo usadas como instrumento político, não para divulgar
ideias, mas, sim, para fazer campanhas de desinformação. Uma dessas tecnologias
é o “deep fake”, que se vale de recursos da inteligência artificial para
substituir rostos em vídeos e fotografias. “A sociedade apresenta uma tendência
errônea de confiar no que é imagem, som e outros elementos de sentido. Com a
evolução da tecnologia, certas evidências que pareciam inegáveis passam a
contar como elementos de dúvida”, observou Paulo Lara em publicação da Artigo
19.
Em 2020, durante as eleições municipais,
hackers invadiram servidores e sites de instituições como o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE). Agora, surge preocupação com sistemas espiões. São os chamados
“malwares”, softwares e dispositivos digitais que coletam e transmitem
informações sem consentimento de seus proprietários.
O governo Bolsonaro tentou, por exemplo,
adquirir softwares espiões de empresas internacionais, como Pegasus e
Darkmatter. Este último, lembra a Artigo 19, foi usado por regimes sauditas
para monitorar opositores, incluindo jornalistas - um deles foi morto em
consulado.
Outra tendência, informa a ONG, é o uso
antiético de dados abertos, como os Osint (sigla em inglês de inteligência de
fonte aberta). Estas informações são voluntariamente postadas por usuários em
redes sociais e plataformas on-line. Vejam em que mundo estamos vivendo:
informações postadas de maneira regular em sites e redes sociais podem servir a
interesses de tiranos da política. A democracia como a conhecemos corre sérios
riscos.
“Também são esperadas campanhas de
desinformação em ecossistemas de nichos, como fóruns de discussões, plataformas
e redes sociais usadas por grupos específicos, que são espaços com pouco ou
nenhum monitoramento social”, acrescenta Lara.
Dados coletados sobre o tema “voto impresso
e fraude nas urnas eletrônicas” impressionam: entre novembro de 2020 e janeiro
de 2022, o Facebook recebeu, no Brasil, 888 posts diários com essas temáticas,
segundo levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação
Getúlio Vargas (DAPP-FGV). Foram monitoradas 394.370 postagens sobre esses
assuntos, que obtiveram 111.748.306 interações, somando curtidas, comentários e
compartilhamentos. A pesquisa ainda alertou que autoridades em cargos eletivos
estavam engajadas em espalhar conteúdo enganoso.
Apenas Jair Bolsonaro, com 42 postagens no período, foi responsável por 3.878.011 interações - média de 92.333 por publicação. “É preciso contabilizar o uso de redes sociais dessas autoridades como mecanismo oficial, uma vez que a população as utiliza para se informar. Isso aumenta a responsabilidade do emissor”, diz Júlia Rocha, coordenadora da área de Acesso à Informação da Artigo 19.
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