Folha de S. Paulo
Balanço de erros e acertos do governo Lula
não pode perder de vista o essencial
A erosão democrática precisa da nossa
preguiça. Precisa de nossos juízos apressados, nossas comparações do
incomparável, nossos vícios de perspectiva, nossos erros de categoria e de
análise. Precisa de memória atrofiada, de curto e de longo prazo.
O programa de autocratização do governo
Bolsonaro pediu que confiássemos no "risco-zero" da
democracia e na promessa de que esse regime "modera" sociopatas.
Pediu que os poderes "dialogassem" dentro das "quatro
linhas" sob "moderação" das Forças
Armadas.
Jornais hesitaram em usar as palavras
certas para reportar o que viam. Extremistas eram "manifestantes",
mentir equivalia a "declarar", delinquência se parecia com
"polêmica", violação passava por "excesso", crime por
"controvérsia jurídica".
Tentaram assegurar voz ao "outro lado", mesmo que esse lado fosse imune à experiência sensorial da Terra redonda e do vírus, ou à experiência moral da violência e da indignidade radical. Tudo em nome de um pluralismo às cegas que vai corroendo as condições de possibilidade do próprio pluralismo. De uma tolerância sem critério que vai exaurindo a sustentabilidade da tolerância.
Cientistas políticos e juristas observavam
a paisagem de instituições mal funcionando e davam baforadas antialarmistas de
seus gabinetes. Depois que Bolsonaro perdeu a eleição, um prêmio que a fortuna
nos reservou, celebraram o acerto do prognóstico. Contudo, não foram essas
pílulas tranquilizadoras que nos salvaram, por enquanto, do pior.
Os três meses de governo Lula já
nos deram amostras do que a análise política brasileira pode fazer. Lula faz
críticas ao Banco Central. Aparece o economista e contrasta com as ameaças
feitas por Bolsonaro ao STF. Lula especula, de modo pouco responsável, armação
do juiz que o condenou ilegalmente à cadeia. Aparece o texto para gritar que
"se iguala ao pior do bolsonarismo e suas teorias da conspiração".
Governo Lula patina no trato com o Congresso. Está "sem rumo, sem
agenda".
Nesses três meses, o governo federal voltou
a cumprir decisões judiciais que vinham sendo ignoradas por Bolsonaro (terras
indígenas, por exemplo). Cumpriu a lei e implantou programa de dignidade
menstrual, ignorado pelo anterior. Revogou decreto de armas. Produz normas para
combater o garimpo ilegal e o tráfico de ouro. A sociedade civil tem sido
recebida em ministérios. A ciência, a docência e a cultura voltam a
experimentar liberdade e recursos.
Melhor começar a perceber as diferenças
comensuráveis e incomensuráveis com os últimos quatro anos. Melhor refinar a
escala de indicadores, porque a ligeireza das comparações custa caro.
Nossa dificuldade de reconhecer e sancionar
a enormidade de Bolsonaro tem história: o plano terrorista em 1987, a defesa de
fuzilamento de Fernando Henrique nos anos 90, o elogio a torturador confesso em
2015, o "vai pra ponta da praia" em 2018, o "não
sou coveiro" e "filmem as UTIs" em 2020, o
"não vou obedecer" em 2021, as interferências no processo eleitoral
em 2022, o 8 de janeiro de 2023. E a holística corrupção familial.
Em seu governo faltou oxigênio, não só para
a respiração pulmonar. Não se respirava nem a expectativa de segurança
existencial. Não se respirava futuro, apenas medo do futuro sob a liderança de
quem ascendeu sob a promessa de exterminar desafetos e suprimir minorias.
Quando o bolsonarismo deixar a violência e
o ataque às liberdades, como desejou editorial desse
jornal, deixa de ser bolsonarismo. Vira outra ontologia. Bolsonaro não liderou
um governo, uma racionalidade institucional, uma política pública sequer. Foi
capaz de realizar nada exceto a política de liberação, negação e agressão. Como
poderia liderar uma oposição?
Não há razão para aliviar a crítica justa
ao governo Lula. Há razão para fazer crítica ainda mais dura, quando cabível.
Desde que se tenha consciência de qual o valor em jogo. Porque crítica justa
precisa ter um horizonte normativo e histórico. Um norte e um sul.
Em 2003, Lula tinha desafios para a
continuidade de um governo do PT e de políticas públicas inclusivas. Em 2023,
Lula tem desafios de continuidade democrática. Vinte anos atrás, erros
custariam o governo. Erros, agora, podem custar o regime.
O resgate da civilidade e da normalidade
possíveis, nesses cem dias, e o esforço de reocupar com competência burocrática
um Estado vandalizado pela delinquência autocrática, não podem ficar de fora de
qualquer balanço.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
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