O Globo
Bolsonaro e Trump enfrentam processos, mas
ainda não respondem por seus atos mais graves: conspirar contra a democracia
Dois ex-presidentes de extrema direita
tiveram que se sentar diante de investigadores nos últimos dois dias para
explicar seus atos. Donald Trump sendo indiciado por compra de silêncio com
manipulação contábil para esconder o que fez. Jair Bolsonaro respondendo à
Polícia Federal sobre a tentativa de se apropriar de bens de valor exorbitante
e que deveriam ir para o patrimônio da União. Nenhum dos dois está respondendo
pelos seus atos mais graves: a conspiração contra a democracia.
Trump e Bolsonaro governaram Estados Unidos e Brasil com a mesma técnica de dividir, mentir, manipular e fugir das questões centrais. O brasileiro tentava ser a imagem perfeita no espelho do seu mentor americano, imitando cada gesto, cada distorção, cada desvio de comportamento. Perderam a reeleição. Mentiram sobre o processo eleitoral. Mobilizaram pessoas para invadir centros dos poderes. Lá, o Capitólio, aqui o Planalto, o Congresso e o STF.
Há mais coisas em comum. Eles agora
enfrentam suspeitas de crimes outros que não o maior dos crimes que cometeram.
São acusações graves, mas não são sobre o que de pior fizeram. Ainda assim,
precisam enfrentar seus atos criminosos a começar de qualquer um deles. No caso
de Trump, comprar o silêncio de uma atriz pornô, de outra mulher e de um
porteiro para esconder relações extraconjugais, mas fazendo isso com fraudes
contábeis para encobrir que pagou suborno. Suas fraudes contábeis vão muito
além disso, como se sabe, e o jornal NYT mostrou claramente. Ele manipulou
dados de renda para não pagar impostos devidos. Mas nem isso foi o pior que
Trump fez.
Jair Bolsonaro aceitou uma, duas, três
caixas de joias que não se parecem com presentes. Lembram algo bem pior. O
valor é extravagante. As caixas com joias vieram escondidas, como se fossem
mercadorias de um criminoso mesmo. Uma, na bagagem de um ministro de Estado, o
almirante Bento Albuquerque, outra na bagagem de um assessor de ministro de
Estado e outra ainda foi recebida pelo próprio Bolsonaro. Uma ,a Receita
Federal conseguiu barrar, a outra entrou como se contrabando fosse e ficou no
ministério, e a terceira ficou escondida na fazenda do amigo Nelson Piquet.
Essa história revelada pelo “Estado de S.Paulo" tem riqueza de detalhes.
Bolsonaro mobilizou seu ajudante de ordens, um avião da FAB para tentar tirar
da Receita Federal a caixa avaliada em R$ 16,5 milhões que havia sido retida na
alfândega.
São absurdos os atos pelos quais Jair
Bolsonaro e Donald Trump estão sendo acusados. Mas isso está longe de ser a
principal acusação que paira contra eles. Eles são suspeitos de conspirar
contra o mais caro bem de uma república, a democracia. Os indícios que se
acumulam contra o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro recaem sobre o próprio
Bolsonaro. Anderson Torres é parte de um complô do qual Bolsonaro seria o
principal inspirador e o principal beneficiário.
O cenário de ruptura da ordem democrática
não é paranoia de quem não votou em Trump ou em Bolsonaro. A imagem de Trump
estimulando as pessoas a irem para o Capitólio está gravada e é parte da
história dos Estados Unidos. Um dos piores capítulos da presidência americana.
As declarações sucessivas, conclamações a manifestantes e ataques diretos ao
poder Judiciário por parte de Jair Bolsonaro, a página mais infeliz da história
do Brasil desde a redemocratização.
Eles buscam o mesmo destino neste momento,
livrar-se das acusações à custa de mentiras. Mentir para os dois é tão fácil
quanto respirar. E, além disso, querem sobreviver politicamente. Trump terá a
sensação de que mais uma vez virou o jogo, porque foi aclamado por seguidores
depois de ser formalmente acusado de 34 crimes. Ele disse que era perseguição
política e está à frente das pesquisas iniciais sobre as primárias do Partido
Republicano. Bolsonaro vai continuar sustentando versões inverossímeis para o
descaminho das joias das arábias que ele pretendia manter em seus cofres.
Bolsonaro terá em breve que enfrentar a justiça eleitoral, contra a qual
conspirou tão abertamente, e deve sair desse processo no TSE inelegível. Quer,
no entanto, continuar vivo politicamente através de herdeiros diretos ou
indiretos.
O destino de Trump e Bolsonaro selará o
destino dos dois países. É fundamental em ambos que a Justiça não abra exceções
para nenhum deles. A impunidade pode ser uma herança perigosa para o Brasil e
para os Estados Unidos.
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