O Globo
Toda história comporta algum revisionismo,
já que sempre podem surgir fatos que mudem a forma de encarar o passado. Foi o
que ocorreu com a Operação Lava-Jato, especialmente depois que foram reveladas
as mensagens da Vaza-Jato. É natural e até necessário que as conversas entre os
procuradores e Sergio Moro,
mais a entrada do ex-juiz no governo Jair
Bolsonaro, tenham levado a essa revisão. Depois da posse de Lula,
porém, tudo mudou de patamar.
O primeiro sinal veio ainda em dezembro,
quando o PCdoB entrou
com ação no Supremo Tribunal Federal (STF)
questionando a quarentena de 36 meses imposta pela Lei das Estatais a
dirigentes partidários e de campanha eleitoral indicados a cargos de comando
nessas companhias.
Em março, Ricardo Lewandowski, considerado pelo próprio Lula o mais leal dos ministros do Supremo, deu a liminar e acatou o argumento de que a lei fere os “direitos fundamentais” dos políticos ao privá-los de dirigir estatais.
Criada para impedir o uso das empresas de
controle público para atender a interesses paroquiais ou financeiros de
determinados grupos — como esquecer o apetite do Centrão pela diretoria que
fura poço? —, a lei não impede que políticos exerçam suas atividades.
Mas aparentemente, para Lewandowski e para
o PCdoB, não existe política sem fisiologismo. Nada mais distante da noção de
progressismo e igualdade pregada pela esquerda.
Eis que, na semana passada, outra ação,
agora apresentada por PSOL,
PCdoB e Solidariedade e
capitaneada pelo advogado Walfrido Warde, chegou ao Supremo pedindo a anulação
das multas de todos os acordos de leniência já fechados no Brasil. A premissa é
que todos, sem exceção, foram feitos sob um tal Estado de Coisas
Inconstitucional (ECI), porque os empresários foram alvo de coação pelo
“lavajatismo”.
O site do STF informa que o ECI é um
instituto criado na Colômbia para caracterizar “violação maciça e generalizada
de direitos fundamentais que afeta um número amplo de pessoas”. Foi aplicado no
Brasil pela primeira vez para a situação da população carcerária, mantida sem
condições mínimas de sobrevivência, sob torturas abomináveis e contaminada por
doenças.
Já ouvi de um empreiteiro que ficou preso
em Curitiba, com visitas periódicas, geladeira, livros e televisão na cela, que
seu tempo na cadeia tinha sido uma tortura. Mas nunca imaginei que partidos que
se dizem de esquerda lançariam mão de um argumento desses em defesa de
empresários que confessaram corrupção e continuaram ricos.
Os dirigentes das legendas dizem que
defendem os empregos perdidos, já que atribuem aos acordos a quebra das
empreiteiras. É uma falácia muito repetida pelo próprio Lula. A Odebrecht,
frequentemente usada como exemplo, quebrou porque tinha a corrupção como modus
operandi, e não porque fez leniência.
A empresa sempre operou pedalando enormes
dívidas, que só se garantiam pela certeza de que nunca faltariam contratos e
crédito com o setor público — obtidos à base de propinas. Construtoras menos
dependentes da corrupção fizeram leniência e sobreviveram. Ou migraram para
outras áreas de negócios (como Camargo Corrêa ou Andrade Gutierrez), enquanto
empresas de outros setores voltaram a crescer — como a JBS.
Vários advogados de construtoras me
disseram estar preocupados com a ação do PSOL. Afinal, se o STF considerar que
os acordos são inválidos em razão de coação, terá de anular tudo, e não só as
multas. Isso faria com que suas clientes fossem declaradas inidôneas, perdendo
o direito de contratar com o Estado e de tomar crédito de bancos públicos,
obtidos justamente por causa da leniência.
Nada disso implica dizer que os acordos não
tenham problemas. No exterior, onde funcionam melhor, os controladores são
afastados para que a empresa continue funcionando e os empregos sejam
preservados. Os diálogos captados pela Vaza-Jato, porém, mostram que essa
alternativa era tabu para a Lava-Jato — tanto que todos os donos continuaram no
comando, mesmo condenados.
Os longos prazos de pagamento das multas
também acabaram por invalidar que os valores vultosos fossem efetivamente
recebidos. É preciso ainda aprimorar a gestão dos acordos, com mais coordenação
entre Ministério Público, Controladoria-Geral da União e Tribunal de Contas da
União, para dar segurança jurídica às empresas.
Tudo isso, porém, é bem mais difícil do que
bradar contra o tal “lavajatismo”.
Mais fácil é simplesmente destruir os
mecanismos de controle da corrupção — que, aliás, parece ser o novo objetivo de
Lula e de seus aliados. Mais do que controlar a narrativa, a meta agora parece
ser desmontar todo o aparato criado para evitar que os escândalos se repitam. O
resultado disso a gente já sabe qual é. E, quando ele vier, não haverá revisão
histórica que dê jeito.
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