O Globo
Abrir a compra por cidadãos de armamentos
praticamente sem controle é uma oferta de fortalecimento a grupos fora da lei
O clima de ódio e violência que estamos vivenciando nos últimos tempos, oriundos do período em que o bolsonarismo começou a implantar suas raízes, é filho do despertar dos instintos primitivos de indivíduos antissociais que viviam contidos pelos ditames e valores majoritários numa sociedade democrática e sentiram-se liberados para falar, e fazer, qualquer coisa. Como agia seu líder político, saído dos círculos morais mais baixos da sociedade para influenciar seguidores que identificaram por meio de metodologias tecnológicas que se mostraram tristemente eficazes.
São cidadãos que se sentiam rechaçados,
esquecidos, até mesmo rejeitados pela onda, que parecia francamente
majoritária, do politicamente correto, do identitarismo, do globalismo,
instrumentos da esquerda para se impor. Quando Lula tinha 80% de aprovação, no
segundo mandato, os petistas desdenhavam esses 20%, perguntando em que mundo
viviam. Pois viviam nas sombras, remoendo suas feridas, buscando um sentimento
de pertencimento que Bolsonaro lhes deu.
Em vez de ser incluídos na maioria, foram
sendo apartados até transformarem-se, eles mesmos, em maioria, levando o
capitão a um poder para o qual não estava preparado. Contra o establishment a
que pertencia marginalmente, Bolsonaro atraiu não apenas o lumpesinato sempre
em busca de um salvador da pátria, mas também uma elite predadora que se
aproveitou do pretenso liberalismo de Bolsonaro, que enganou quem queria se
enganar.
Uma das principais teses “liberais” de
Bolsonaro é a permissão descontrolada de armamento e munições pelos cidadãos,
como sinônimo de liberdade, de segurança, de emancipação cidadã. Nada mais
falacioso, uma cópia mambembe da trágica tradição histórica dos Estados Unidos,
que não tem nada a ver com nossa História. Nos Estados Unidos, cada vez que
acontece um massacre de inocentes por atirador(es) aleatório(s), aumenta a
discussão sobre a necessidade de controlar venda e porte de armas, ligadas a
uma sensação de liberdade, de proteção da individualidade, que vem do tempo em
que o território americano era ocupado, depois da independência da Inglaterra.
A origem desse direito considerado
inalienável foram as milícias, grupos que se reuniam para proteger propriedades
e combater os que não aceitavam a independência recém-conquistada. A Declaração
de Direitos fundamentais dos cidadãos do novo país foi colocada na
Constituição, incluindo no mesmo status de proteção à individualidade a posse
de armas, assim como o direito à reunião, à religião, à liberdade de imprensa.
O mesmo que Bolsonaro conseguiu implantar, algumas vezes na lei, outras na
cabeça dos seguidores, quando eleito em 2018, dando conotação distorcida aos
direitos dos cidadãos.
Tanto em 1791, nos Estados Unidos, quanto
hoje no Brasil, as milícias fora da lei são a base da expansão da ideia
armamentista. Só que os americanos, centenas de anos depois, tentam
desvencilhar-se dessa linha do tempo que hoje já não faz sentido, enquanto no
Brasil vivemos o ápice do crime organizado, com milícias formadas por policiais
e facções criminosas em busca do domínio do território que deveria ser regido
pela lei.
Abrir a compra por cidadãos de armamentos
praticamente sem controle é uma oferta de fortalecimento a esses grupos fora da
lei. Está provado que a criação de CACs (colecionadores, atiradores desportivos
e caçadores) proliferou justamente para legalizar armas do crime organizado, e
os ataques frívolos com armas em disputas banais e discussões de bar estão à
nossa vista. Alimentar a violência com esse tipo de atitude irresponsável só
pode criar uma sociedade patológica, onde tudo é possível, até assassinatos a machadadas
de crianças.
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