quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Peculiaridades não significam novidades - Rosângela Bittar


Peculiar é característico, ímpar, singular, e tantos outros adjetivos que o dicionário Houaiss nos oferece e podem qualificar a definição do que se passa no julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal. O gigantismo do caso é peculiar, os estudos de jurisprudência que tem exigido também é, o entrelaçamento dos fatos, a imbricação dos crimes, dos acontecimentos, dos réus, das pessoas circunstantes. Qualquer dos personagens sobre quem se coloca um foco, vê-se que suas relações são inacreditavelmente variadas e amplas.

São 38 réus, muitas imputações, 600 testemunhas. O ineditismo, porém, está na intensa visibilidade, na exposição da técnica argumentativa do Ministério Público, dos advogados e dos ministros do Supremo, na jurisprudência peculiar que, embora exista desde sempre, nunca foi tão vista e ouvida como agora. Os fatos foram peculiaríssimos, exigindo um equacionamento também peculiar. Há filigranas, conexões, particularidades que exigem um equacionamento especial. Sem que isso signifique mudança. Os juízes estão dando tratos à bola nesse desempenho.

Avaliações de técnicos que acompanham o trabalho ali realizado desautorizam o reconhecimento de inovações. O que há de novo, admite-se, é a superexposição dos juízes, o conhecimento que toda a sociedade vai tendo, em tempo real, do julgamento, as teorias discutidas em praça pública - até (era imaginável?) em academias de ginástica cujos aparelhos de TV estão sintonizados na emissora da Justiça.

Entre as críticas que o tribunal registra, e que vêm até de advogados que não atuam na defesa dos réus, portanto descomprometidos, estão as de ter o STF surpreendido, por exemplo, com as teses do domínio do fato, do ato de ofício, da inversão do ônus da prova, para escolher três das campeãs de audiência.

Diz-se, no Supremo, que o novo é o contexto, o conhecimento que só chegou agora, com a transmissão ao vivo, a Internet, o tempo real, de todos os meios que não existiam há 20 anos. E a metodologia, tendo em vista a peculiaridade do processo. Uma metodologia em que se vai do particular para o geral, estabelecendo-se a conexão até a compreensão final. Fato por fato, protagonista por protagonista, peça por peça.

Nesse raciocínio indutivo, chega-se ao geral e às conclusões sobre o que houve. Não é uma inovação, defendem, é uma metodologia cuja novidade está apenas no fato de que todos estão vendo o processo andar e nunca antes haviam acompanhado um tão de perto quanto este.

Qual o ofício de um deputado? É o que, didaticamente, se perguntam os especialistas no julgamento para rebater a tese de que o Supremo inovou na caracterização do ato de ofício. É a opinião, a palavra, o voto. Atos que se praticam por ação e por omissão. Portanto, explica-se considerar a omissão.

À crítica à flexibilização da presunção da inocência, de que o STF foi alvo porque, em um dos votos, o ministro Luiz Fux argumentou que cabe ao réu provar seu álibi, responde-se que, se não provar, por exemplo, com recibos, que o dinheiro foi destinado a um pagamento específico alegado, cada um pode dizer ao juiz o que quiser e ficar tudo por isso mesmo. Mas também não é novo.

Outra jurisprudência da lista de inovações contestadas no plano técnico é a do domínio do fato como razão para imputar responsabilidade. Sem o grande protagonista os fatos aconteceriam daquela forma? Esta é a pergunta que pode sustentar o raciocínio e que já esteve nos meandros do encadeamento de votos. Sem determinada figura, tudo seria igual?

Foi o domínio do fato que absolveu, por exemplo, a ré do mensalão Geiza Dias. Ela sabia de tudo? Não. Do que sabia, tinha condições de questionar os patrões sendo uma servidora da iniciativa privada sem estabilidade no emprego? Não.

Não faz parte do rol de perplexidade com o peculiar, mas de um conjunto de exigências com que se pressiona o tribunal, a cobrança de fidelidade do juiz ao governo que o nomeou. São frequentes as contas de quantos ministros, nomeados por qual presidente, votaram desta ou daquela maneira.

A quem o ministro do Supremo deve fidelidade? Quando o processo envolve políticos e partidos, a cobrança se acirra.

Tome-se o exemplo de um juiz, conhecido como Carlinhos na sua região, estimado, respeitado e querido no Nordeste dos pequenos Sergipe e Alagoas, que foi lá buscado por alguém que o identificou, indicou, pinçou e nomeou para o Supremo Tribunal Federal. Passou pelo crivo dos três poderes. Qual o limite do seu compromisso com a circunstância pela qual chegou lá?

O ministro Carlos Ayres Britto, presidente do Supremo Tribunal Federal, personagem descrito acima, já teve oportunidade de se confrontar com essa questão e sobre ela refletir em mais de uma oportunidade em que se viu diante de um julgamento desafinado do desejo dos que o elevaram à função. Ayres Britto já expressou mais de uma vez à sua audiência que, do ponto de vista rigorosamente jurídico, o juiz tem que fazer a distinção. Enquanto juiz, é um agente. Então não pode se deixar tomar por uma virtude, um tipo de virtude que tem obrigação de ter, e tem, enquanto gente, que é a gratidão. Enquanto agente não pode ser grato, não vai pagar a nomeação com o exercício da função.

Na argumentação que o ministro apresenta em conversas e palestras, diz que tem fidelidade, mas no plano objetivo, não no subjetivo. Sua fidelidade é à Constituição. Essa exige, como condição de sua nomeação, reputação ilibada e notável saber jurídico. Assim, sua obrigação é transformar esses pré-requisitos em desempenho: permanecer com a boa reputação e manter o saber jurídico refinado, com estudos. Se o juiz observar essa divisão, estará em uma faixa de atuação segura. Enquanto vai guardando no seu coração, de gente, a gratidão ao descobridor.

Fonte: Valor Econômico

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