Enfim. É a primeira coisa que se pode dizer sobre a decisão da Justiça de
que na certidão de óbito de Vladimir Herzog deixe de constar a mentirosa
informação de suicídio. O Brasil começou a mudar. Lenta e tardiamente. Já há
réus em crimes de morte de presos políticos, o STF tomou uma decisão que altera
a interpretação que impedia processo contra responsáveis por casos de
desaparecidos.
Na semana passada, a segunda turma do STF deferiu parcialmente o pedido do governo
argentino de extraditar Claudio Vallejos, acusado de tortura, homicídio,
sequestro e desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura militar
argentina. Ele era militar e atuava num terrível centro de tortura, a Escola de
Mecânica da Armada Argentina (ESMA). O deferimento só foi parcial porque ele
responde a processos no Brasil.
A defesa alegou que o crime prescreveu. O ministro Gilmar Mendes, autor do
voto seguido por unanimidade, citou jurisprudência do STF de que "nos
delitos de sequestro, quando os corpos não forem encontrados, em que pese o
crime ter sido cometido há décadas, na verdade se está diante de um delito de
caráter permanente, com relação ao qual não há como assentar-se a
prescrição". O Ministério Público tem trabalhado com essa tese: do crime
permanente para os casos como os do deputado Rubens Paiva e de mais de uma
centena de brasileiros cujos corpos jamais apareceram.
Não é o caso de Vladimir Herzog. Convocado, o jornalista compareceu ao II
Exército para prestar depoimento. Horas depois, estava morto. O corpo dele foi
entregue à família para o enterro, mas na certidão de óbito foi registrado o
que foi dito na nota do II Exército.
Foram necessários 36 anos e 11 meses para que o Estado brasileiro
conseguisse emitir através do Judiciário a ordem de que a mentira seja removida
dos documentos oficiais. Nesse tempo, já houve sete mudanças na Presidência da
República. O último general saiu do Palácio há 27 anos, seis meses e 11 dias. E
só agora a versão dos torturadores está sendo varrida da história.
Mesmo para um país que tem dificuldade de olhar seu passado, entendê-lo,
aprender com ele para pavimentar o futuro, essa espera foi longa demais. O que
constrangeu o poder civil e democrático por tanto tempo? Inexplicável.
Recentemente, a Justiça Federal de Marabá, no Pará, aceitou a denúncia
contra o coronel Lício Maciel, no caso da morte de Divino Ferreira de Souza. A
juíza Nair Pimenta de Castro abriu ação contra ele por ter assumido esse e
outros crimes na fase final da luta contra a guerrilha, quando, segundo o MPF,
houve a "adoção sistemática de medidas ilegais e violentas, promovendo-se
o sequestro e a execução sumária dos militantes". A denúncia contra o
major Sebastião Curió, ajuizada antes, tinha sido recusada, mas a decisão foi
alterada, e ele também virou réu em mortes ocorridas na mesma época, durante a
ditadura.
A Comissão da Verdade não tem atribuição judicial. Sua função é buscar as
informações, tomar depoimentos, fazer sugestões ao governo de como encaminhar o
problema. Mas sua existência, ainda que com depoimentos tomados de forma
reservada, tem ajudado a movimentar o país na busca dos pontos perdidos dessa
dolorosa história. O Ministério Público tem apresentado denúncias em todas as
regiões do país para esclarecer o entendimento sobre os princípios da justiça
de transição; que trata dos crimes de um período de exceção.
Tudo isso aconteceu há muito tempo. Alguns desses crimes foram cometidos
quando a maioria dos brasileiros nem era nascida. É mais um motivo para que o
Estado brasileiro se apresse.
Fonte: O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário