Há dúvidas se os efeitos do julgamento do escândalo que se tornou conhecido
como mensalão - e agora se vê que por motivo justo, pois havia mesmo
parlamentares e dirigentes partidários recebendo propinas mensais - ajudarão a
sanear a política brasileira de seus péssimos costumes ou se ele será uma
exceção. Não no sentido de servir a interesses discricionários, como definiu o
insigne professor Wanderley Guilherme dos Santos, presidente da Casa de Rui
Barbosa, até segunda ordem um órgão do governo, ao Valor Econômico, mas
significando algo anômalo, fora do comum e que não produzirá efeitos. Uma coisa,
porém, é certa - e, até agora, isso já o torna histórico: trata-se de uma
tomografia que expõe sem piedade as vísceras apodrecidas da República. E é
capaz de revelar detalhes da promiscuidade e, como já se pode constatar, também
da desfaçatez e da pusilanimidade sem pudor da elite que manda e desmanda no
País.
O imenso pântano de cinismo e caradura em que essa elite chafurda já foi
descrito em detalhes no manual da corrupção na administração pública nacional que
é o livro Nervos de Aço (Topbooks, Rio de Janeiro, 2007), do delator do esquema
de compra de votos das bancadas governistas com dinheiro público, Roberto
Jefferson, presidente nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Mas
como tudo o que expõe sesquipedais rabos de palha, a publicação caiu em
ostracismo. Agora, não mais: a malversação do dinheiro público tem sido
descrita em capítulos, lidos nas tardes de segunda, quarta e quinta-feiras pelo
relator do processo no Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa. O
relato, feito com lógica de orgulhar Aristóteles e lido com dicção perfeita e
no tom certo, é seguido com interesse pela sociedade graças à oportuníssima
exibição ao vivo em canais por assinatura na televisão. E também é reportado
pelos meios de comunicação, para desespero de todos quantos pensavam que seriam
capazes de mandar o velho Abraham Lincoln às favas, pois conseguiriam enganar
todos durante todo o tempo que lhes conviesse.
O trabalho minucioso e competente do ministro trouxe à luz a forma como foi
aparelhada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no poder uma instituição secular
e respeitável como o Banco do Brasil (BB), fundado no começo do século 19 pelo
monarca português e que virou símbolo da passagem de nossa condição colonial à
de sede da Corte. E narra o que no livro de Jefferson pode até ser considerado
retaliação de perdedor: a entrega de envelopes (e até malotes transportados em
carros-fortes de bancos) com gorjeta usada para convencer parlamentares cúpidos
e chefes partidários venais a dizerem amém na Câmara e no Senado às ordens
emanadas do que passou a ser todo-poderoso Executivo.
Atrás do propinoduto de que Marcos Valério foi só "operador", no
dizer do delator e confirmado pelo relator, foi engendrado o verdadeiro ovo da
serpente, o golpe sub-reptício com o objetivo sórdido de instalar uma ditadura
dos políticos profissionais sobre os cidadãos comuns. O julgamento do mensalão
decidirá o destino de gestores acusados de desviar recursos públicos para
aplicarem em seus projetos partidários e nas próprias fortunas pessoais. E terá
o condão de decidir de vez que em nosso frágil, mas irreversível, Estado
Democrático de Direito todos são de fato iguais perante a lei. A tentativa de
reduzir crimes maiores, como corrupção ativa e passiva, peculato e lavagem de
dinheiro, a um delito menor, o caixa 2 de campanha ("recursos não
contabilizados", no eufemismo da vez), partiu do pressuposto de que eles
podem fazer o que não nos é permitido. A contabilidade paralela da Daslu levou
a empresária Eliane Tranchesi à prisão. Não a de Delúbio Soares. "Pois,
afinal, é praticada por todos os partidos. Se os outros podem, por que o PT
não?", questionou o chefão geral, Luiz Inácio Lula da Silva, como acaba de
fazê-lo o único acusado do esquema que se beneficiou da delação premiada, o
chef Silvio Pereira.
A cúpula petista no poder republicano não tinha dúvidas de que a teoria do
padim transmitida a seus causídicos milionários seria aceita facilmente no
plenário do Supremo. Afinal, oito dos 11 ministros foram nomeados por um
presidente do partido e teriam de ser-lhe gratos. Se o BB foi aparelhado, se a
Casa Ruy Barbosa foi aparelhada, se a Petrobrás foi aparelhada, por que não o
STF? A verdadeira elite dirigente esqueceu-se de prestar atenção em Chapolim e
não contou com a astúcia dos ministros que, imunes à demissão, tratam de evitar
que a gratidão emporcalhe sua biografia. O general De Gaulle disse muito bem
que a ingratidão é a maior virtude de um estadista.
E é assim que o velho conceito da igualdade de todos perante a lei está
sendo garantido pelo STF e os políticos viciados em caronas em jatinhos (quando
não dispõem do próprio avião) e nas festas promíscuas pagas pelos sanguessugas
do Estado exercem o direito que os galhofeiros verteram para o latim: jus
sperneandi. O direito de espernear é a única explicação para a carta dita de
apoio a Lula, articulada pelo presidente nacional do PT, Rui Falcão, e assinada
por seis partidos da chamada "base governista", comparando a atuação
do STF ao movimento que levou Getúlio Vargas em 1954 ao suicídio e à derrubada
de João Goulart em 1964.
O presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), Valdir
Raupp, disse que a assinou "constrangido". Terá o Falcão do PT
recorrido a um revólver para convencê-lo? Parlamentares do Partido Democrático
Trabalhista (PDT) desautorizaram seu líder, Carlos Lupi. Por que, então, não o
depõem da presidência? Habituados a retirar assinaturas de projetos, ao terem
atendidos seus pleitos pelo Executivo, devem calcular a inteligência alheia
pelo conceito que têm da própria honra. Ao assinarem o documento tragicômico e
tentarem fugir da responsabilidade por isso, incluem-se, e também Lula, na
categoria de "réus morais" do mensalão. Pois não é isso mesmo que
eles são?
Fonte: O Estado de S. Paulo
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