Pierre Rosanvallon/historiador
Para o especialista do Collège de France, eleições a cada quatro anos já não satisfazem cidadãos, que buscam uma democracia permanente. E esse desencanto alimenta o populismo
“Há uma aspiração a uma democracia permanente, na qual se tenha o sentimento de que o poder se sente responsável e que sua responsabilidade pode ser questionada”
“Os cidadãos desejam ser ouvidos além das campanhas eleitorais”
Fernando Eichenberg | O Globo
PARIS - O mundo vive um clima de fatalismo no limiar de uma nova era da modernidade, marcada por uma profunda crise da democracia eleitoral representativa, que já não supre as aspirações emancipatórias dos cidadãos. O desencanto democrático estimula o crescimento dos populismos, principalmente na Europa. Neste período de transição, emergem cada vez mais líderes políticos híbridos, na ideologia e na ação.
Esse é o diagnóstico traçado por Pierre Rosanvallon, especialista em História Moderna e Contemporânea do Collège de France e fundador do grupo de reflexão República das Ideias, em seu mais recente ensaio “Nossa história intelectual e política (19682018)”. Rosanvallon conversou em Paris com O GLOBO sobre o “preocupante desmoronamento democrático” nas sociedades contemporâneas.
• Em seu ensaio, o senhor diz não se contentar em “organizar o pessimismo”, mas em tentar inverter a tendência deprimente de nosso tempo. Como define o estado do mundo?
Esse estado da sociedade francesa, que mistura a perplexidade e o desencanto, a morosidade e a cólera, são sentimentos que vemos em todas as sociedades contemporâneas. Desse ponto de vista, a situação francesa não é diferente do que vemos na América Latina, na Ásia, na América do Norte. É um contexto mundial geral, com suas especificidades. A palavra mais forte que resume todos esses sentimentos é “impotência”, numa insatisfação que favorece uma democracia negativa, sob formas de comunidades de rejeição. São paixões da ordem da repulsão, bem mais do que da atração, que se desenvolvem por todo lado.
• O que seria esta nova era da modernidade, na qual, segundo o senhor, estamos adentrando?
Estamos em um momento de transição para uma nova era da modernidade democrática, que tem várias dimensões. A principal delas é a dimensão política e democrática. A primeira revolução foi a dos direitos humanos, suprimir a dominação absolutista e colonial. Num segundo momento, foi a luta pelo sufrágio universal e a organização dos partidos políticos. E, hoje, progressivamente se colocou em prática o que se poderia chamar de democracia eleitoral representativa, mas que ainda necessita ser melhorada. Como? Limitando a corrupção, restringindo o papel do dinheiro público, reduzindo a duração dos mandatos ou organizando eleições proporcionais. Mas os cidadãos querem ainda mais, não simplesmente um poder do voto a cada quatro ou cinco anos. Não querem mais ser cidadãos intermitentes. Há uma aspiração a uma democracia permanente, de prestação de contas, de controle, de vigilância, na qual se tem o sentimento de que o poder se sente responsável e que sua responsabilidade pode ser questionada. Estamos, atualmente, de forma confusa, nessa busca além dos pilares da democracia eleitoral representativa — que merece ser melhorada em muitos países, e o Brasil é um forte exemplo entre tantos —, na construção de uma democracia permanente e cotidiana. A eleição não transforma a democracia, mesmo que fosse perfeita, numa competição aberta a todos, sem influência do dinheiro, sem corrupção e com toda transparência. Daí a aspiração dos cidadãos de que sejam ouvidos além das campanhas eleitorais, onde reina o princípio de sedução. Começa-se apenas a se tomar consciência de como organizar esse novo continente democrático. E uma parte desse sentimento de morosidade é ligada a essa constatação dos limites da democracia eleitoral representativa.
• Na sua opinião, as sociedades contemporâneas se definem hoje, cada vez mais, por suas minorias, e não pelas escassas maiorias eleitorais...
As eleições se tornaram uma autorização de governar. Toda a ideia democrática foi pensada como uma ideia de unanimidade: desde que se coloque fim a uma pequena aristocracia, haverá uma sociedade unificada, e todo mundo terá os mesmos interesses. E se viu que a modernidade não é a simplificação, mas a complexidade da sociedade, com oposições de ideias, de interesses, de situações. A grande ilusão dos populismos é o retorno a um tipo de unanimidade.
• O senhor diz que o populismo será um fenômeno importante neste século. Por quê?
Os populismos dizem ter a solução democrática e a econômica, o nacional-protecionismo. Argumentam que a justiça social poderá ser organizada no momento em que não houver mais uma sociedade de concorrência: o protecionismo constrói a coerência social, e se terá uma democracia de unanimidade. O populismo na Europa era fundado essencialmente na questão da imigração, de extrema direita. Mas se vê, hoje, que o populismo é também uma atitude face à democracia e à economia. E emergiu um populismo de esquerda. Aqui na França, é representado por Jean-Luc Mélenchon (do movimento França Insubmissa). Na Alemanha, se vê hoje esse movimento Aufstehen, nascido de uma cisão do Die Linke (partido A Esquerda). Mas é preciso assinalar a diferença entre os movimentos populistas, que se definem por ideais e ideologias, e os regimes, que são a passagem à ação. O populismo dos governos da Polônia e da Hungria se define pela xenofobia e uma relação muito problemática com a democracia, e, ao mesmo tempo, na economia são neoliberais e recebem recursos da União Europeia.
• O senhor classifica o presidente francês Emmanuel Macron como um “republicano autoritário”, a mistura de um liberal clássico com a cultura da direita tradicional.
Neste período de transição, há muitas personalidades e ideologias híbridas, que vemos emergir em períodos de desencantamento. Liberais, socialistas, conservadores, progressistas misturam diferentes elementos. Macron é um liberal clássico, mas que não gosta do contrapoder. Ele tem uma visão do encontro da autoridade com a sociedade marcada por uma atmosfera do populismo. Por certos aspectos, pode-se dizer que Donald Trump é populista. Mas, ao mesmo tempo, é um personagem híbrido, uma mistura de capitalista ultraliberal e de protecionismo, o que normalmente não combina. Vladimir Putin, na Rússia, e Recep Tayyip Erdogan, na Turquia, são populistas, essencialmente, na dimensão política.
• O resultado das recentes eleições na Suécia, com um aumento dos votos para a extrema direita, e o crescimento do populismo na Europa preocupam?
Se as eleições na Suécia atraíram tanta atenção é porque se trata justamente do país que simbolizava melhor na Europa o sucesso da modernidade. E ver essa reviravolta é o sinal mais violento e estrondoso disso. Ao mesmo tempo, não se deve perder de vista que a Europa foi o continente da invenção da democracia institucional moderna, mas também o das maiores perversões da democracia no século XX. Não esqueçamos que o fascismo, o nazismo e o stalinismo são criações europeias. Não se pode, felizmente, comparar o crescimento dos populismos com isso. Não se trata de uma repetição desses horrores absolutos, mas, ainda assim, é uma repetição do desmoronamento democrático, em versão mais suave e menos radicalmente dramática.
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