domingo, 23 de setembro de 2018

Luiz Carlos Azedo: A “fulanização” sem projeto

- Correio Braziliense

Bolsonaro (PSL), à direita, e Haddad (PT), à esquerda, que lideram a disputa pela Presidência, representam opiniões radicais formadas a partir das redes sociais

Ao contrário do que muitos imaginam, a criação do sistema de representação proporcional uninominal vigente no Brasil, uma jabuticaba de autoria do gaúcho Assis Brasil, teve como objetivo fortalecer os partidos e não os enfraquecer, como afirmam muitos dos seus críticos. Foi a saída encontrada para mitigar uma característica da política brasileira desde a criação da primeira Câmara Municipal, em São Vicente, já em 1532, no início do período colonial: o fato de que os eleitores votam nas pessoas e não nos partidos, seja nos legislativos seja nos executivos. Não é à toa que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso insiste na tese de que um conjunto de ideias, mesmo majoritárias na sociedade, para conseguir se tornar um projeto político viável, precisa encontrar alguém capaz de “fulanizá-las”.

Foi o que aconteceu com a sua eleição para a Presidência em 1994, no embalo do Plano Real, com um programa cujo eixo era a estabilidade econômica, a reforma administrativa do Estado e as privatizações de empresas estatais nos setores siderúrgico e de telecomunicações, principalmente. Àquela época, o candidato favorito nas pesquisas era o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que hoje está preso em Curitiba, em razão do recebimento de vantagens indevidas no exercício da Presidência (corrupção passiva e lavagem de dinheiro). FHC conseguiu “fulanizar” o Plano Real. Por ironia do destino, mais tarde, em 2010, Lula terminou o governo melhor avaliado do que o tucano e hoje isso faz a diferença na hora de “fulanizar” o seu candidato, Fernando Haddad (PT). O mesmo não ocorre com Geraldo Alckmin (PSDB), apoiado por FHC, que goza de enorme prestígio e frequenta as salas de espera dos aeroportos de cabeça erguida, acompanhado apenas da esposa.

Mas voltemos à fórmula de Assis Brasil. O Brasil elege representantes para a Câmara dos Deputados desde 1824, logo após a Independência. Até 1880, durante o Império, o sistema de votação era feito em dois níveis: os votantes elegiam os eleitores (primeiro nível), que, por sua vez, escolhiam os representantes para a Câmara dos Deputados (segundo nível). Em 1881, as eleições para a Câmara dos Deputados passaram a ser diretas. Na Primeira República (1889-1930), três sistemas eleitorais foram utilizados; todos majoritários. O mais duradouro (1904-1930) dividia os estados em distritos eleitorais de cinco representantes; o eleitor podia votar em até quatro candidatos e ainda podia votar no mesmo candidato mais de uma vez, o que facilitava as fraudes em larga escala.

Em 1932, após a Revolução de 1930, novo código eleitoral modernizou o processo: as mulheres passaram a ter o direito do voto; foi criada a Justiça Eleitoral — que ficou com a responsabilidade de organizar o alistamento, as eleições, a apuração dos votos e a proclamação dos eleitos; foram tomadas medidas para garantir o sigilo do voto. Assis Brasil e João Cabral participaram da redação do Código Eleitoral de 1932 e defenderam a introdução do voto proporcional: para Câmara dos Deputados, um sistema misto (com parte dos representantes eleita pelo sistema proporcional), cuja operação era bastante complexa. Mas veio o “autogolpe” de 1937 e Getúlio Vargas suspendeu as eleições, fechou os partidos e o Congresso.

As eleições voltariam em 1945, com o processo de democratização do país. Somente naquele ano, o sistema proporcional proposto por Assis Brasil foi integralmente adotado nas eleições para Câmara dos Deputados e demais casas legislativas, com exceção do Senado, com objetivo de fortalecer os partidos recém-criados, carreando para eles a tradição do voto “fulanizado”. Nas eleições para prefeito, governador, senador e presidente da República, o voto continuou majoritário. O sistema funcionou razoavelmente antes do golpe militar de 1964, que teve outras causas.

Fragmentação
Depois da Constituinte de 1988, o surgimento do financiamento público partidário sem limitações para a criação de partidos, com base no critério de distribuição dos recursos proporcional à composição da Câmara, criou um desequilíbrio terrível na distribuição desses fundos e facilitou a proliferação de legendas, que hoje são 35 com representação no Congresso, situação agravada pelo uso em escala crescente de “caixa dois” nas eleições passadas, conforme revelado pela operação Lava-Jato.

Nesse cenário, os partidos políticos sofreram um grande desgaste, ainda mais agravado pela crise da democracia representativa na sociedade pós-industrial e pela forte influência das redes sociais na formação da opinião pública, à margem dos meios de comunicação tradicionais e dos próprios partidos. Nas eleições deste ano, o fenômeno da “fulanização” da política, que tem tudo a ver com as características da cultura eleitoral do brasileiro (e da velha herança “sebastianista” do salvador da pátria), ganhou novas características. Na reta final do segundo turno, embora a maioria dos candidatos seja de velhos conhecidos, em razão das crises econômica, ética e política, a eleição se “fulanizou” a partir de narrativas radicais, que aprofundam a fragmentação das forças políticas mais centristas e democráticas, sem que um só candidato consiga unificá-las eleitoralmente.

Os candidatos Jair Bolsonaro (PSL), à direita, e Fernando Haddad (PT), à esquerda, que lideram a disputa, representam o avanço avassalador de opiniões radicais formadas a partir das redes sociais. Caso não surja um nome alternativo pela via do “voto útil”, como prega o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o eixo da disputa se deslocará do centro para um dos extremos e nova escalada de confrontação ocorrerá no segundo turno, aprofundando a divisão da sociedade em torno de suas lideranças, sem nenhum programa unificador, apenas velhas palavras de ordem. Ou seja, teremos a “fulanização” sem ideias novas e projeto de país.

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