- O Globo
A história de um país tem marcadores com datas-chave. A eleição de outubro para presidente do Brasil é uma delas
‘É preciso coragem para crescer e tornar-se quem você realmente é”, ensinou E. E. Cummings, um dos bons de poesia do século XX. Se considerarmos válido o bordão caro aos ingleses de que na construção de um estado de direito os primeiros 500 anos são os mais difíceis, a democracia brasileira ainda não saiu da primeira infância. Os atuais ocupantes da terra brasilis —nós —também não. Mas como canta Leonard Cohen em “O futuro”, “Há uma brecha em tudo/ É por ela que entra a luz”.
Domingo passado, ao final da partida no qual o Palmeiras derrotara o Bahia por 1 X 0, o volante Felipe Melo dedicou o gol da vitória a Deus, à família “e para nosso futuro presidente Bolsonaro”. Foi um auê. Por um triz, nossa estreita brecha de luz não se fechou ainda mais. Feita ao vivo e sem aviso prévio, a declaração virou rastilho nas mídias sociais e quase levou o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) a enquadrar o atleta. Felizmente (ainda) não existe dispositivo legal no regulamento da entidade para justificar a punição de um atleta por manifestar suas preferências políticas.
Pelo contrário. Tudo o que se quer é que todos os brasileiros, inclusive jogadores de futebol, se sintam em segurança permanente para declarar abertamente seus votos, sejam para quem forem. O jornalista Juca Kfouri, insuspeito de qualquer pendor bolsonarista, cuidou de cravar as balizas certas, e de imediato. “Se criticamos a alienação dos esportistas, normalmente voltados para os próprios umbigos, não há razão para críticas quando algum deles se manifesta... Imagine se fosse nos anos 1980, quando surgiu a libertária Democracia Corintiana. O mundo viria abaixo… Doutor Sócrates batia de frente com Emerson Leão, Casagrande enfrentava o treinador Jorge Vieira, e a turbulência era saudavelmente permanente, porque só os autoritários desejam a paz dos cemitérios”, escreveu na “Folha de S.Paulo”. Que seja feito o debate como se faz na sociedade, porque o futebol não é um mundo à parte.
Mais de uma década atrás, a americana Toni Morrison, Nobel de Literatura (1993), fez uma reflexão sobre o medo e o papel do artista na vida pública. No entender da escritora, quando o discurso político se aprisiona em ódio e foge à razão é que o artista/cidadão precisa encontrar sua razão de ser. “Nestas ocasiões”, escreveu a autora de “Amada”, “não há tempo para desesperança, não sobra espaço para a autocomiseração e não é hora de silêncio. O lugar para o medo some. Nos cabe falar, escrever, a linguagem é nossa. É desta forma que as civilizações saram.”
Isto foi muito antes dos tempos de cólera política que hoje infestam as redes sociais, poluem o conviver cotidiano e ameaçam os indecisos. Cada cidadão merece seu tempo de decisão e opção. Porém, não pode esquecer que a história de um país tem marcadores com datas-chave. A eleição de outubro para presidente do Brasil é uma delas. Esta semana a cantora-sensação Anitta se viu no olho do furacão. Estrela de um público LBGTQ até então cativo, que impulsiona em parte sua fortuna e faz dela um dos cachês mais altos do mercado publicitário, Anitta invocou seu direito de não se posicionar na corrida presidencial. Ela estava sendo cobrada por seguidores no Instagram que estranharam o fato de a musa seguir uma jovem cujo perfil continha mensagens de apoio ao candidato do PSL. Vale lembrar que Bolsonaro e a comunidade LBGTQ são forças que não respiram o mesmo ozônio. “As minorias têm de se curvar... Ou elas se adéquam ou simplesmente desaparecem”, promete Bolsonaro em um vídeo de campanha contrabandeado dias atrás para as redes sociais.
Seguir alguém não significa comungar de suas opiniões — aliás, se viciados em redes sociais saíssem mais de suas respectivas bolhas e visitassem o bunker alheio talvez houvesse menos surpresa com os resultados das pesquisas eleitorais. No atual surto de antropofagia política, contudo, todo embate individual contamina a cólera coletiva, e cabe a um ídolo par excellence como Anitta medir coragem para ser quem ela realmente é, ou pretende ser. Suas frases-escudo “eu pago meus impostos” (a imensa maioria dos brasileiros também paga ) ou “não falo sobre política” não bastam. Desde sempre, o protagonismo da classe artística em momentos-chave de uma nação causa polêmicas intestinas. Virginia Woolf tratou do assunto nas trevas de 1936, tempos da galopada de Hitler e Mussolini, e da Guerra Civil na Espanha. Em seu ensaio para a Associação Internacional de Artistas, ela escreveu o que já foi transcrito aqui em ocasião anterior, mas vale repetir:
“Se a sociedade se tornar ditatorial e passar a comprar apenas obras adaptadas à vaidade e à política em vigor, o trabalho do artista se esvaziará de valor... A sociedade é seu ganha-pão e a arte é o primeiro artigo de luxo a ser descartado em tempos de crise”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário