Deputado
propõe reescrever a Constituição como se estivéssemos a trocar de regime. Isso
não faz sentido, a não ser que o bolsonarismo se considere um novo regime.
O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), acha que a Constituição “só tem direitos” e que “é preciso que o cidadão tenha deveres com a Nação”, razão pela qual defendeu um plebiscito para a convocação de uma Assembleia Constituinte que, afinal, redija a Carta de seus sonhos.
Se
falava apenas em seu nome, o deputado revelou-se por inteiro: é dos que
enxergam direitos, especialmente os sociais, como empecilhos à eficiência do
Estado. Se falou em nome do governo que representa, fez exatamente o que dele
esperava seu guia, o presidente Jair Bolsonaro, que sempre que pode demonstra
desconforto com os limites impostos pelo pacto democrático representado pela
Constituição.
Todos
sabem que a Constituição tem defeitos que precisam urgentemente ser corrigidos.
Este jornal há tempos defende uma ampla reavaliação da Carta promulgada há mais
de três décadas, especialmente em relação aos muitos dispositivos que gravaram
na pedra constitucional uma série extensa de políticas públicas que jamais
deveriam estar lá, pois, graças à sua natureza circunstancial, devem ser
atualizadas ou canceladas conforme mudam os governos, avançam os tempos e
variam as receitas disponíveis.
Mas
não é disso que o deputado Ricardo Barros pareceu falar. Sua proposta soou
muito mais radical: reescrever a Constituição como se estivéssemos a trocar de
regime. Isso fazia todo o sentido em 1988, ano da promulgação da atual
Constituição, como ato de coroação da transição da ditadura para a democracia,
tendo como corolário o resgate dos direitos sociais. Hoje, não faz sentido
nenhum – a não ser que o bolsonarismo se considere um novo regime, a clamar por
uma nova Carta que o consagre.
Esse
espírito já está claro para todos há muito tempo. Até bem recentemente, o
presidente Jair Bolsonaro, de viva voz ou por meio dos camisas pardas que o
representam, dedicava toda sua energia para atacar o Supremo Tribunal Federal e
o Congresso sempre que estes lhe recordavam de seus deveres constitucionais.
“Eu sou a Constituição”, chegou a dizer Bolsonaro em um dos entreveros. Em
outra ocasião, igualmente contrariado com o Supremo, afirmou: “Eu respeito a Constituição,
mas tudo tem um limite”.
Então,
para Bolsonaro, o limite não é a Constituição, mas sua vontade. Acalenta a
ideia de exercer o poder sem peias, sob o argumento de que está legitimado por
milhões de votos.
É
assim que, a partir do instante em que tomou posse, o presidente vem tentando
extrapolar seu poder constitucional – desde a edição de uma medida provisória
que atropelava o princípio federativo ao lhe dar a prerrogativa de decretar o
funcionamento de serviços públicos durante a pandemia de covid-19, até a
interpretação golpista da Constituição de que o artigo 142 lhe garantia o
direito de convocar as Forças Armadas para intervir em eventual crise entre os
Poderes.
Os
exemplos são muitos, e nada disso deveria surpreender, vindo de um político que
passou a vida a hostilizar as instituições, a exaltar torturadores e a defender
a eliminação física de opositores – isto é, o avesso da democracia.
Em
todas as situações em que foram desafiados pelo autoritarismo de Bolsonaro, o
Supremo e o Congresso impediram os maus propósitos do presidente, sempre
conforme manda a Lei Maior, para irritação dos bolsonaristas, desabituados de
limites.
Não
é casual, portanto, que o líder do governo na Câmara, qualificado porta-voz das
intenções do governo Bolsonaro, tenha declarado que é preciso uma nova
Constituição porque na atual, segundo disse, o poder dos órgãos de controle, do
Ministério Público e do Judiciário é excessivo. “O ativismo do Judiciário está
muito intenso, muito mais do que poderíamos imaginar”, disse o deputado Ricardo
Barros.
Os eventuais excessos apontados pelo deputado podem ser corrigidos pelo Congresso, se essa for a vontade dos representantes democraticamente eleitos. Não é preciso uma nova Constituição para isso – a não ser que o objetivo seja eliminar os entraves legais que separam Bolsonaro do poder absoluto que ele tanto deseja.
Confusão
sobre o nada – Opinião | O Estado de S. Paulo
É
estéril a discussão sobre a obrigatoriedade de uma vacina que ainda não existe.
O debate público no Brasil foi tomado por um tema esses dias: a obrigatoriedade ou não de vacinar a população contra o novo coronavírus. O assunto mobilizou autoridades dos Três Poderes, a comunidade científica, a mídia e os cidadãos que se manifestaram nas redes sociais.
Mas
foi uma discussão estéril e absolutamente descabida, que só se instalou porque
o presidente Jair Bolsonaro padece de uma dominante propensão, a de criar um
estado de confusão nacional a partir de suas idiossincrasias e seus medos, que
na maioria das vezes são apenas imaginários. Os reais, quando há, raramente têm
relação com os destinos da Nação, e sim com o próprio destino político do
presidente e o dos seus.
A
questão da vacina contra a covid-19 se insere nesse contexto de instilação do
caos por interesses eleiçoeiros imediatos. A rigor, membros do governo, do
Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso Nacional e a chamada sociedade
civil têm debatido sobre o nada. Por mais que seja o desejo de bilhões de
pessoas no mundo inteiro, a verdade é que ainda não há uma vacina. Há mais de
150 imunizantes em desenvolvimento e ao menos 7 deles estão em fase final de
testes, com boas perspectivas de sucesso. Esses estudos clínicos indicam que há
boas razões para ter esperança de que, mais cedo ou mais tarde, haverá um
imunizante seguro e eficaz contra o novo coronavírus. Mas hoje ele não existe e
não há cientista no mundo capaz de afirmar peremptoriamente que existirá até
que os testes sejam concluídos e seja feito o registro do imunizante junto às
autoridades sanitárias.
Portanto,
qual o objetivo do presidente Jair Bolsonaro para causar todo esse rebuliço em
torno da obrigatoriedade de uma vacina que nem sequer existe? Evidentemente,
seu interesse político, seu desejo de agradar a uma parcela de seu eleitorado
que não só abraça suas teorias conspirativas, como as propagam freneticamente
por meio das redes sociais. Sabe-se que o presidente Bolsonaro dá muita atenção
a tudo o que se passa no ambiente virtual, por vezes em total alheamento dos
problemas que afligem os brasileiros desconectados.
Surpreende
é que membros dos outros Poderes também se engajem nessa discussão sobre a
vacina. O presidente do STF, ministro Luiz Fux, afirmou há poucos dias que
haverá uma “judicialização da vacina”, que ele crê ser “necessária”. Já o
presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, exortou o Legislativo e o
Executivo a encontrarem uma solução para a questão da vacinação antes que o
Judiciário tenha de intervir, como já ocorreu em outras ocasiões. Ora, a
solução já está dada por legislação em vigor desde a década de 1970.
Também
não custa lembrar que a Constituição determina que “a saúde é um direito de
todos e dever do Estado”. Vale dizer, quando uma vacina for considerada segura
e eficaz contra o novo coronavírus e for aprovada pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), ao Ministério da Saúde não haverá alternativa a
não ser incorporá-la ao Programa Nacional de Imunizações (PNI), modelo de
programa público de vacinação para o mundo.
A
confusão criada em torno da obrigatoriedade da vacina também é frívola porque a
esmagadora maioria da população, como já revelaram pesquisas de opinião, se
mostra propensa a receber a vacina contra a covid-19 voluntariamente assim que
um imunizante seguro e eficaz estiver disponível (ver editorial A sociedade
sabe o que quer, publicado em 24/10/2020).
A
comunicação do governo com a sociedade deve ser sóbria, clara, objetiva. No
curso de uma emergência sanitária como a que ora o País e o mundo atravessam,
esse imperativo se torna ainda mais premente. A mensagem que emana do governo
tem o poder de direcionar o comportamento dos cidadãos. Quando há um vírus
potencialmente mortal em circulação, isso pode significar vida ou morte a
depender de como essa mensagem é transmitida e recebida.
Não
é hora de instalar no País uma confusão provocada por interesses mesquinhos.
Apoio tóxico – Opinião | O Estado de S. Paulo
Bolsonaro
e Lula geram mais rejeição do que atração aos candidatos por eles apoiados.
Ao contrário do que apregoava até pouco tempo atrás, o presidente Jair Bolsonaro decidiu entrar na campanha eleitoral deste ano e declarou apoio a Celso Russomanno (Republicanos) na disputa pela Prefeitura da capital paulista. “São Paulo precisa de um prefeito com o apoio do presidente da República”, “Bolsonaro pegou no meu braço e disse ‘Celso, cuida de São Paulo’”, disse um enternecido Russomanno em seu programa de estreia no horário eleitoral gratuito no rádio e na TV.
Entretanto,
desde que decidiu associar sua imagem à do presidente da República, Celso
Russomanno viu despencar em 7% suas intenções de voto. O candidato do
Republicanos perdeu a liderança da corrida eleitoral para o atual prefeito de
São Paulo, Bruno Covas (PSDB), candidato à reeleição, repetindo até aqui a
trajetória de suas campanhas para o Executivo municipal em 2012 e 2016. De
acordo com a pesquisa Datafolha divulgada no dia 22 passado, Russomanno caiu de
27% para 20% das intenções de voto e Covas subiu de 21% para 23%. Ambos estão
empatados tecnicamente, dentro da margem de erro da pesquisa.
Bolsonaro
também apoia a reeleição do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Como
em São Paulo, o escolhido pelo presidente não vai bem nas pesquisas. O
ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) tem 28% das intenções de voto, mais do que o dobro
das de Crivella (13%).
Os
resultados se coadunam com outra pesquisa, também realizada pelo Datafolha, que
revelou que a associação com Jair Bolsonaro e com o ex-presidente Lula da Silva
é fator de aumento da rejeição aos candidatos por eles apoiados, e não de
atração. O instituto de pesquisa ouviu 1.092 eleitores paulistanos entre os
dias 5 e 6 de outubro.
Quando
instados a avaliar o apoio político dado pelo presidente Jair Bolsonaro, 63%
dos entrevistados pelo Datafolha responderam que “não votariam de jeito nenhum
em um candidato apoiado por ele”. Para 16% dos respondentes, o apoio de
Bolsonaro os “levaria a escolher esse candidato (apoiado) com certeza”. E para
18%, o apoio conferido pelo presidente da República “talvez” os faça votar no
candidato apoiado por ele. Dois por cento dos entrevistados deram outras
respostas e 1% não soube responder.
Já
a rejeição a um candidato apoiado por Lula da Silva na cidade de São Paulo é
menor do que a apurada em relação a Jair Bolsonaro, mas ainda assim é bastante
significativa: 54% dos entrevistados pelo Datafolha disseram que “não votariam
de jeito nenhum” em um candidato apoiado pelo chefão petista. Já para 21% dos
respondentes, o apoio de Lula da Silva é decisivo para a escolha de seu
candidato a prefeito. E para outros 23%, a chancela do ex-presidente “talvez”
os faça votar no ungido por ele. Um por cento deu outras respostas e 1% não
soube responder. Não surpreende, portanto, por que Jilmar Tatto (PT) ocupe hoje
uma posição inglória, jamais ocupada por outro candidato petista à Prefeitura
de São Paulo. Tatto tem 4% das intenções de voto, empatado tecnicamente com
Arthur do Val (Patriota), o chamado “Mamãe Falei”.
O
nível de rejeição a um candidato é fator que tem enorme peso em uma eventual
disputa em segundo turno. A alta rejeição a Russomanno provocada pelo apoio de
Jair Bolsonaro pode beneficiar o candidato tucano caso sejam refletidas nas
urnas as preferências que hoje são capturadas pelos institutos de pesquisa. A
bem da verdade, Covas é apoiado pelo governador João Doria, que, segundo o
Datafolha, também provoca mais rejeição (60%) do que atração (36%). Entretanto,
dois fatores pesam a favor do atual prefeito para angariar votos além dos
advindos diretamente em decorrência do apoio do governador João Doria: Bruno
Covas conseguiu arregimentar a maior coligação de partidos em torno de sua
reeleição e tem a aprovação da maioria dos paulistanos para sua atuação durante
a pandemia de covid-19, de acordo com uma pesquisa do Ibope realizada em
setembro.
O
resultado da eleição municipal é incerto, evidentemente. O que parece certo é o
cansaço dos paulistanos com uma polarização política estéril.
Imune à urgência – Opinião | Folha de S. Paulo
Brasília
se dedica a conchavos e polêmicas vãs enquanto economia se deteriora
Num
momento em que o Brasil precisa de decisões de grande envergadura para superar
a crise da pandemia, consertar as contas públicas e retomar o crescimento
econômico, é desolador constatar que parlamentares influentes estão mais
ocupados com suas disputas internas por poder.
A
agenda legislativa se encontra quase paralisada em razão das eleições
municipais, o que é esperado, mas as disputas em torno da Comissão Mista do
Orçamento podem travar por ainda mais tempo votações importantes.
O
comando do colegiado é disputado por aliados do deputado Arthur Lira (PP-AL),
liderança do centrão recém-aliado a Bolsonaro e pré-candidato à presidência da
Câmara em fevereiro. De outro lado está o atual presidente, Rodrigo Maia
(DEM-RJ), que expõe seu
descontentamento com o processo.
O
posto na comissão é disputado porque dá ao titular poder de barganha no
Congresso e capacidade de influenciar na sucessão de Maia. Tudo se passa como
se a ninguém ocorresse que há uma pauta econômica complexa a ser examinada com
urgência —e que sem ela qualquer vitória será de Pirro.
Por
irresponsabilidade do governo —a começar pelo presidente Jair Bolsonaro e seus
flertes populistas— e inação do Congresso, o país corre o risco de mergulhar em
uma nova etapa da crise desencadeada pela Covid-19.
A
cotação do dólar dispara, a inflação sobe e
a permanência
dos juros baixos fica ameaçada, enquanto acumulam-se as
desconfianças quanto à disposição brasiliense de enfrentar as escolhas difíceis
em torno do Orçamento de 2021 —para mencionar apenas o desafio mais imediato.
Com
pouco mais de dois meses para o encerramento de um ano até aqui desperdiçado,
não se definiram os mecanismos de ajuste em caso de descumprimento do teto de
gastos, previstos na chamada PEC Emergencial.
Tampouco
se sabe como será viabilizado o programa ampliado de transferência de renda às
famílias pobres desejado pelo Planalto.
A
decisão de Bolsonaro de não discutir o assunto antes do desfecho das eleições
municipais —e agora as querelas que podem paralisar o Congresso— praticamente
inviabilizam soluções rápidas.
A
persistir o impasse, o resultado será adiar a votação do Orçamento para até
março do ano que vem. Com o prolongamento das incertezas, haverá empecilhos
adicionais para a retomada da economia.
Esta,
afinal, depende da confiança de que o país não caminhará para um cenário de
irresponsabilidade fiscal e desorganização econômica.
Brasília,
no entanto, só encontra tempo para frivolidades, conchavos e polêmicas
estéreis.
Jogo pesado – Opinião | Folha de S. Paulo
Conflito
por Suprema Corte ajuda a deteriorar ambiente democrático dos EUA
Com
a confirmação
de Amy Coney Barrett para
a Suprema Corte dos Estados Unidos, Donald Trump conseguiu consolidar uma
maioria conservadora de 6 a 3 no tribunal. A indicação está entre as mais
polêmicas das últimas décadas —e é possível que a novela não se encerre com a
posse da juíza.
Na
controvérsia, os opositores democratas alegam razões morais, mas não legais,
para sustentar que essa vaga lhes foi roubada.
A
disputa teve início com a morte do juiz conservador Antonin Scalia em 2016. O
então presidente Barack Obama indicou o liberal moderado Merrick Garland para o
posto, mas o Senado, sob maioria republicana, recusou-se a examinar suas
credenciais e iniciar a sabatina.
Na
época, os líderes republicanos saíram-se com a desculpa absolutamente casuísta
de que um presidente em seu último ano de mandato não deveria fazer uma
indicação para a Suprema Corte.
Assim,
a vaga de Scalia ficou aberta por 11 meses até que Trump fosse eleito e
apontasse o conservador Neil Gorsuch para o posto.
Não
tardou para que a impostura cobrasse seu preço. Neste ano, morreu a juíza
liberal Ruth Bader Ginsburg, e Trump, já em final de mandato, apressou-se a
indicar Barrett para substituí-la. Como os republicanos conservam a maioria no
Senado, a escolha foi aprovada.
O
episódio, previsivelmente, suscitou a ira dos democratas —e, como o partido
reúne grandes chances de conquistar as eleições presidenciais da próxima
semana, além da maioria na Câmara e no Senado, um revide pode estar a caminho.
Joe
Biden ainda não foi específico sobre o que planeja fazer caso chegue à Casa
Branca, mas é intensa a pressão no partido por uma atitude drástica. Fala-se
até em ampliar o número de juízes na Suprema Corte, dado que a Constituição não
o fixa —bastaria, para tanto, um ato do Legislativo.
Outras
propostas incluem estabelecer um mandato para os magistrados, criar uma nova
corte constitucional e hipóteses ainda mais imaginativas. Embora não proibidos
pela Carta, ardis do tipo são típicos das repúblicas de bananas.
Em
“Como as Democracias Morrem”, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt sustentam que o
jogo pesado entre agentes políticos, que passam a recorrer a todos os meios
disponíveis para minar os adversários, é uma das principais causas da erosão do
ambiente democrático. Será lamentável se os EUA entrarem ainda mais fundo nessa
dinâmica.
Autonomia do BC traria sinal positivo ao mercado – Opinião | O Globo
Num
momento de incerteza sobre o futuro da economia, o Senado tem o dever de
aprovar a mudança
Incertezas
externas criadas pela segunda onda da Covid-19 na Europa, amplificadas pelos
sinais de que a epidemia recrudesce nos Estados Unidos, se somam a dúvidas
crescentes sobre a responsabilidade fiscal no governo Bolsonaro. O dólar sobe e
a inflação desperta, gerando um quadro de insegurança com efeitos negativos que
se espalham em cascata pela economia. Entre os mais preocupantes, a alta nos
juros futuros e a pressão, crescente e irresistível, para o Tesouro pôr no
mercado títulos com vencimento cada vez mais curto.
São
momentos como este que requerem um Banco Central ativo. Foi o que ficou
demonstrado no Brasil em 1999, quando o governo Fernando Henrique passou a
permitir a flutuação do dólar, os juros subiram para conter a evasão de
divisas, e ficou consagrada a política de metas de inflação, conjugada ao
compromisso fiscal. Deu certo. Desta vez, por uma coincidência feliz, o Senado
se prepara para votar na semana que vem a formalização da autonomia operacional
do BC.
Trata-se
de questão em que a missão técnica de um organismo público precisa ficar
definida de modo rigoroso, para afastar o risco de manipulação política. Embora
todo governo faça questão de enfatizar que o BC brasileiro já age, na prática,
de modo autônomo, infenso a interferências do Executivo de plantão, a tentação
persiste. Basta lembrar o “cavalo de pau” nos juros promovido pelo então
presidente Alexandre Tombini para satisfazer à demanda do Planalto de Dilma
Rousseff.
O
projeto do senador Plínio Valério (PSDB-AM), relatado por Telmário Mota
(PROS-RR) com subsídios do atual presidente do BC, Roberto Campos Neto, mantém
no Executivo a prerrogativa de estabelecer as metas de inflação. Mas garante ao
BC a autonomia necessária para persegui-las por meio das taxas de juro e dos
demais mecanismos de política monetária. Aproxima o país da governança de
economias desenvolvidas, ao estabelecer, para a diretoria do BC, mandatos
descasados do presidencial. E não cria uma situação de independência total, em
que o próprio BC estabeleceria suas metas (pois isso seria incoerente com a
natureza essencialmente política do nível de inflação e endividamento que a
sociedade se dispõe a tolerar).
Por
isso mesmo, seria um erro conceder ao BC brasileiro um mandato duplo, como o do
Fed americano, baseado em metas de inflação e emprego (ou crescimento da
economia). Ao contrário do que costumam dizer os defensores dessa ideia, as
crises recentes de 2008 e deste ano demonstraram que BCs independentes não se
furtam, diante do precipício da depressão, a agir com sensibilidade política e
fazer o que precisa ser feito: jogar os juros no chão e aumentar a liquidez.
Se
aprovada no Senado, mesmo faltando a votação na Câmara, a autonomia do BC
transmitirá uma mensagem forte ao mercado de que o Brasil pode ter uma
instituição do lado da sensatez na condução da política econômica. O momento é
de dúvidas sobre o futuro do país. Estes dias de agitação financeira reforçam a
necessidade desse passo, sempre adiado.
Relatório
de inspeção feita no ano passado apontou riscos nas instalações, mas foi
ignorado
Não
há que falar em fatalidade no incêndio que tomou parte do Hospital Federal de
Bonsucesso (HFB) na terça-feira e provocou a morte de três pacientes durante
transferência para outros locais. A tragédia era mais que previsível, como
mostra o relatório de uma vistoria feita no ano passado. De acordo com o
documento, “havia risco de curto-circuito, incêndio e inoperância do sistema
elétrico” no subsolo, onde provavelmente o fogo começou. Para completar o
quadro de indigência no hospital, que não tinha certificado de aprovação dos
bombeiros, os hidrantes estavam desativados, e as mangueiras, danificadas. Duas
das três vítimas estavam internadas para tratar a Covid-19. A negligência se
revelou mais letal que o coronavírus.
A
julgar pelo improviso na remoção dos pacientes, alguns levados a um galpão
cedido por uma loja de pneus, também não se cogitou criar um plano de
contingência para desocupar o prédio, que abriga uma das maiores unidades de
saúde do Rio. Seria óbvio, considerando que o esvaziamento do edifício é mais
complexo quando envolve gente com mobilidade comprometida.
A
tragédia no HFB realça os problemas de gestão e expõe o descaso com a prevenção
no Brasil. Apenas no Rio, é o terceiro incêndio num grande hospital em apenas
dois anos. O do Lourenço Jorge, da Barra, em 2018, deixou cinco mortos. No
Badim, da Tijuca, em 2019, foram 23 vítimas.
A
incúria é generalizada. O Museu Nacional, destruído pelo fogo em 2018, não
tinha brigadas ou plano contra incêndio. Um acervo irrecuperável virou cinzas.
O precário edifício Wilton Paes de Almeida, em São Paulo, ocupado por sem-teto,
desabou em maio de 2018 após ser tomado pelas chamas, deixando sete mortos e
dois desaparecidos. Outra tragédia anunciada.
Casos
assim são previsíveis. “O Brasil não tem uma cultura de prevenção”, diz Rosaria
Ono, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e
especialista em prevenção de incêndios. “Quando ocorre uma grande tragédia,
acham que é fatalidade. Não é. Ela resulta de uma sucessão de erros que vão
aparecendo, mas as pessoas ignoram ou não querem ver, de forma totalmente
inconsequente.”
O
descaso é marca indelével das tragédias, qualquer uma. Os problemas na barragem
de Brumadinho eram conhecidos, porém optou-se por forjar laudos que atestavam
uma segurança que não existia. Custou 259 vidas. É comportamento padrão no
país. Sabe-se do risco, mas é mais fácil empurrar com a barriga, na esperança
de que nada acontecerá. Só que as catástrofes são implacáveis. Não respeitam
prazos e não perdoam negligência, burocracia ou amadorismo. O Brasil já deveria
ter aprendido.
Nova onda da covid-19 nos EUA e Europa aflige mercados – Opinião | Valor Econômico
Sem
vacina eficaz e segura, o trabalho de destruição do coronavírus não terminará
A
segunda onda do coronavírus que varre a Europa e os Estados Unidos só não é
mais alarmante que a primeira porque não é mais uma surpresa nem os governos
são inexperientes em lidar com um vírus antes desconhecido e letal. Mas o
número de infectados, de mortes e de leitos ocupados nos hospitais, em forte
elevação trouxeram de volta medidas que lembram os severos lockdowns de março a
maio. A lembrança e a realidade do contágio atual fizeram os mercados
financeiros desabarem ontem e jogou para baixo as cotações do petróleo. A
recuperação dos principais países avançados ocidentais voltou a ser colocada em
xeque pelo novo coronavírus.
Dois
terços da população da França vivem em toque de recolher noturno e o presidente
Emmanuel Macron delineou ontem novas medidas de restrição à mobilidade. Em duas
semanas, o país poderá ter o mesmo pico de internações que teve na primeira
onda, em abril. Em 24 horas, foram registrados 33 mil novos casos e 523 mortes.
Na maior economia europeia, a Alemanha, a premiê Angela Merkel anunciou um
lockdown parcial por um mês, a partir de segunda-feira, limitando a quantidade
de pessoas em reuniões privadas a dez e fechando bares, restaurantes, teatros e
cinemas. Houve 15 mil casos em 24 horas.
O
Reino Unido decretou lockdowns regionais em Manchester e Liverpool, enquanto
que o toque de recolher se espalha pela Bélgica, Irlanda e República Checa. A
Espanha implantou estado de emergência por 15 dias, enquanto que na Itália
houve protestos contra o fechamento de bares e outras restrições à mobilidade.
O número de casos diários chegou ontem a 25 mil.
Com
as maiores economias da zona do euro reduzindo atividades, a lenta recuperação
europeia tornou-se mais incerta ainda, e o trabalho do Banco Central Europeu,
mais complicado. Os bancos europeus pisaram no freio nos empréstimos a empresas
e famílias no mês, com o temor de aumento de inadimplência, que se torna quase
uma certeza se lockdowns severos forem reinstituídos. O BCE se reúne hoje, mas
medidas de estímulo provavelmente só serão anunciadas em dezembro. Há, porém,
certo ceticismo sobre a eficiência que possam ter mais um corte de juros de
0,1% - para -0,5% - e de aumento do já vigoroso pacote mensal de compras de
títulos.
A
explosão do coronavírus às vésperas da eleição presidencial nos Estados Unidos
parece ter sido um castigo divino a Donald Trump. Enquanto o presidente diz que
os EUA estavam virando a curva do coronavírus e que os infectados aumentam pelo
aumento dos testes, os casos diários atingiram ontem o recorde 74.410 e o de
mortes, a 983, uma elevação da média de 14 dias de 39% e 13% respectivamente.
49 Estados e o Distrito de Colúmbia apresentaram avanço da covid-19 ontem, pela
média semanal.
O
recrudescimento do contágio trará desalento à retomada econômica dos EUA e mais
problemas ao novo presidente, seja quem for. Democratas e republicanos não
chegaram a um acordo sobre novo pacote bilionário de estímulos antes das
eleições de 3 de novembro. É pouco provável que as negociações progridam nos
próximos dias, embora o impacto da segunda onda obrigue os partidos a
caminharem nesta direção.
Mais
apoio fiscal é praticamente certo se os democratas vencerem nas duas Casas do
Congresso, mas as pesquisas ainda não são conclusivas a respeito. Se vencer,
Trump poderá dar curso aos planos dos republicanos de um pacote de US$ 550
bilhões, nos quais incluiu ajuda às empresas aéreas. Novos isolamentos forçados
de trabalhadores e pequenos empresários obrigarão o Federal Reserve a manter
toda a parafernália de medidas anunciadas desde março para sustentar a
economia. No caso dos juros há pouca coisa a ser feita - a previsão corrente é
de que eles fiquem perto do zero pelo menos até 2024.
A
recuperação da economia americana já vinha perdendo fôlego no último mês e não
deve acelerar seu ritmo no curto prazo. Com EUA e Europa assediados pela
covid-19, os negócios caminharão mais devagar nos dois lados do Atlântico e na
economia global. O Brasil não terminou sequer a primeira fase, mantendo uma
média de 20 mil casos e de cerca de 450 mortes diárias por dia.
O vírus ainda pode surpreender negativamente. Pesquisa não revisada do Imperial College britânico sugere que a imunidade à covid-19 acaba em poucos meses, e casos de reinfecção surgem em várias países. Sem vacina eficaz e segura, o trabalho de destruição do coronavírus não terminará.
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