Teto
de gastos pode se mostrar curto demais para abrigar vacinas e empregos
Na
segunda-feira, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, terminou, pelo Palácio
do Planalto, uma agenda de visitas a autoridades em Brasília. Tratou de
privatizações no BNDES e do socorro fiscal a seu Estado na Câmara dos
Deputados. Com o presidente Jair Bolsonaro, resolveu acrescentar mais um tema,
a vacina contra a covid-19.
Na
entrevista que se seguiu, o governador conseguiu subir ao pódio do campeonato
de disparates da atual temporada: “Sou de um partido liberal. Sou da opinião
que quem quiser, deve se vacinar. Mas sou da opinião também que uma empresa que
empregue mil funcionários exija, de alguém que trabalhe lá, que seja vacinado
porque, caso contrário, ele pode representar risco para os outros. Então sou
sempre favorável à liberdade do ser humano.”
Pela
declaração do governador conclui-se que o dono da empresa que a comanda pelo zoom
tem o direito de não se vacinar, mas ao funcionário do chão de fábrica resta
apenas o dever de fazê-lo. Único governador eleito pelo Novo, Zema sugere um
velho dilema: a liberdade do ser humano termina onde começa a necessidade de
manter as empresas em funcionamento.
O
ex-prefeito de Belo Horizonte, ex-ministro e hoje deputado federal Patrus
Ananias (PT-MG), viu na declaração do governador a “privatização do ordenamento
jurídico”. O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi além e
identificou resquícios da “mentalidade escravocrata”. No dia seguinte, o
governador voltaria a se pronunciar sobre a vacina num tom dois degraus abaixo
dizendo que se tratava de um tema mais de “consciência do que de
obrigatoriedade”.
A
declaração de Zema foi a cereja de um falso debate. Desde o estabelecimento do
Plano Nacional de Imunização, em 1973, as leis sobre o tema preveem algum grau
de compulsoriedade - vide o Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei que
criou o Bolsa Família ou até mesmo a primeira lei de enfrentamento da pandemia
(13.379) em fevereiro deste ano.
Foi
assim que o SUS, com um portfólio de 19 vacinas, uma das maiores ofertas
públicas do mundo, chegou a erradicar doenças como poliomielite e varíola. Hoje
enfrenta as notícias falsas, a fronteira com a Venezuela, o desaparelhamento de
postos de saúde e o sucateamento da produção nacional para evitar que doenças
como sarampo, já detectado em 21 Estados, voltem a se disseminar.
Nas
pesquisas de opinião sobre a vacina da covid-19, a adesão supera 70%. Por isso,
sanitaristas respeitados têm dito que não precisa obrigar a vacina, basta
torná-la disponível e garantir que a população tenha acesso. Era assim que
acontecia quando o tema era tratado acima das disputas políticas. O ex-ministro
da Saúde e ex-governador José Serra (PSDB) posava vacinando o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por quem havia sido derrotado.
Hoje
o presidente da República sugere que só leva Faísca, seu cachorro, para se
vacinar e diz que a cloroquina é mais importante que a vacina. Por outro lado,
o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que exibe a parceria da Sinovac
com o Butantã como vitrine de sua guerra pela ciência, não desistiu de garfar a
Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp). Depois de recuo na Assembleia
Legislativa, apresentou novo projeto (PL 627) para congelar 30% de seus
recursos.
A
guerra da vacina contaminou outros governadores, como Ratinho Jr (PSD), do
Paraná, e Rui Costa (PT), da Bahia, que firmaram acordos com o instituto
Gamaleya, para que as fábricas de seus Estados (Tecpar e Bahiafarma) produzam a
vacina russa. O recuo federal na compra da Coronavac pelo SUS levou
governadores a imaginar que poderiam repetir, com a vacina, os consórcios
formados para a compra de ventiladores.
O
alvoroço levou à precipitação do presidente do Supremo, Luiz Fux. Depois de ter
provocado um surto da covid-19 na Corte com sua posse, o ministro resolveu que
chegara a hora de convocar as partes a entrar na justiça. Se inexiste vacina,
não dá para dizer que há direito sendo negado.
No
afogadilho, a primeira vítima é a obviedade. Primeiro vem o estabelecimento dos
critérios de eficácia e segurança testados pela Anvisa, depois a possibilidade
de produção e fornecimento. Se ainda houver algo a ser definido que não conste
da legislação, ou garantias que precisem ser reforçadas dada a presença do rei
do agito no Palácio do Planalto, parece ser atribuição do Congresso e não do
Supremo.
O
alvoroço levou muitos a imaginar que poderiam replicar o atropelo dos
ventiladores, quando a falta de coordenação nacional do Ministério da Saúde
levou governadores a formar consórcios e outros, quadrilhas. Com vacina é
diferente. Um Estado pode colocar uma equipe de médicos e fisioterapeutas para
testar respiradores, mas não há como contornar o papel da Anvisa e do SUS na
certificação e na distribuição da vacina.
Outra
dificuldade é que não estão assegurados os recursos estaduais para um programa
de imunização. Este sempre foi um gasto federal. Se os Estados tiverem que
bancá-lo vai ficar difícil arrumar dinheiro para manter as Unidades Básicas de
Saúde (UBS).
É
este o pano de fundo da trapalhada desta quarta-feira em torno do decreto para
estudar a viabilidade de parcerias público-privadas (PPIs) para a construção e
gestão das UBS. O financiamento da saúde é um dos buracos negros do orçamento
de 2021. Se o SUS não cabe no teto de gastos, não está claro como a
terceirização de seus serviços pode vir a caber. Alguém vai ter que pagar a
conta. O mais provável é que sejam aqueles que ganharão uma vacina do
governador de Minas e perderão o emprego.
Do jeito que foi apresentado, o tema pareceu nascido de um governo que não sabe como enfrentará o ano que vem, quando se aproximará do que o ex-porta-voz da Presidência chamou de Rubicão. Pra quem achou que já tinha visto tudo, o general Otávio do Rêgo Barros, avisou que, para atravessá-lo, aquele a quem chamou de ‘governante piromaníaco’, ainda tem um arsenal de “atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade”.
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