O
desabafo do ex-porta-voz do presidente não é a voz isolada de um fardado
Foi
já para lá da metade de 2018 que os altos oficiais das Forças Armadas encantaram-se com a popularidade de alguém
que surfava a onda disruptiva, que oferecia a oportunidade de se alterar os
rumos do País. Hoje levanta-se a tese se houve mesmo uma alternância entre
“esquerda” e “direita” em 2018, pois o que se percebe é a prevalência de um
sistema pelo qual os donos do poder descritos já há tantos anos continuam
acomodando interesses setoriais e corporativos às custas dos cofres públicos,
sem visão de conjunto ou de Nação – tanto faz o nome ou o partido.
Além
da bem amarrada ou não agenda econômica proposta por Paulo Guedes,
foram os militares formados em academias de primeira linha que trouxeram para
Bolsonaro o que se poderia chamar, com boa vontade, de “elementos de
planejamento” num governo que, logo de saída, titubeou entre entregar a
coordenação dos ministérios para uma ala “política” (enquanto se recusava a
praticar a “velha” política) ou depositá-la no que era a esperança dos
generais: um dos seus como chefe de “Estado-Maior” (a Casa Civil). Hoje se
constata que era o primeiro sinal inequívoco do que acabou virando a marca do
governo: sem eixo, sem saber como adequar os meios aos fins (supondo que “mudar
o Brasil” seja o objetivo final) num espaço de tempo definido (um mandato? Dois
mandatos?). Portanto, sem estratégia.
Os militares de alta patente no governo carregaram consigo uma aura de respeito e credibilidade e, em alguns ministérios, de eficiência e competência, mas não estão usufruindo disso. Ao contrário, a reputação deles como grupo está sendo moída em casos como o da Saúde, área na qual o presidente interfere como se entendesse alguma coisa disso, e da Amazônia, com um “governo do B” entregue a quem conhece a área (o general Hamilton Mourão) enquanto o enciumado Bolsonaro deixa que Meio Ambiente e Relações Exteriores pratiquem o “fogo amigo”.
Dois
fatores políticos levaram os militares à “confortável mudez” à qual se refere o
ex-porta-voz do governo, general Rêgo Barros, na destruidora descrição que fez
do esfarelamento da autoridade dos militares num governo que eles nunca
controlaram. É “subserviência”, diz o ex-porta-voz, que impede a prática da
“discordância leal” (coisa de fato complicada para quem cresceu em
hierarquias). O primeiro fator político era a consolidada noção de que governar
o Brasil se tornara impossível por culpa de outros Poderes, como Legislativo e
Judiciário. Caberia ao grupo militar “defender” o Executivo.
O
segundo componente político é mais amplo e difuso. Tem a ver com 2018 e o medo
do esgarçamento do tecido social. Os militares “compraram” em boa medida o
mantra repetido por Bolsonaro, segundo o qual “as esquerdas”, sorrateiramente
postadas atrás da esquina, só estão esperando maus resultados econômicos, crise
ainda maior de saúde pública e aumento de criminalidade para promover a baderna
que colocará de joelhos o governo e, portanto, o projeto de “mudar o Brasil”.
Fugiria tudo ao controle.
Ironicamente,
Bolsonaro acabou encontrando seu porto seguro não tanto nos militares, de cuja
coesão e capacidade de articulação desconfia (como desconfia de tudo ao redor).
O presidente acomodou-se no conforto do Centrão e
na capilaridade que esse conjunto de correntes políticas, desde sempre
empenhadas em controlar o cofre e a máquina pública, exibe em todas as
instâncias decisivas no Legislativo e também do Judiciário, onde acaba de ser
colocado no topo um ministro para o Centrão chamar de seu.
“Jair
preocupou-se mais com seus filhos e reeleição do que com o País”, queixou-se,
confidencialmente, um dos militares que chamam o presidente pelo primeiro nome.
O desabafo do general Rêgo Barros não é simplesmente o de um indivíduo
decepcionado. É de um grupo desarticulado.
*Jornalista e apresentador do jornal da CNN
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