Valor Econômico
Onda de demissões voluntárias de um lado do
mundo, desemprego recorde do outro e escassez generalizada de talentos em todo
lugar: como desatar esse nó?
O mundo está de ponta cabeça! Vivemos um enorme paradoxo. É possível pensar que em uma ponta do planeta, a mais pobre, hemisfério sul em geral, o emprego seja a coisa mais desejada e sonhada pelas pessoas como algo quase inatingível? E que, na outra ponta, o canto mais rico e mais instruído da sociedade, daqueles que tiveram mais oportunidades na vida, inclusive de estudar, o trabalho formal esteja sendo desvalorizado e até mesmo desprezado? Chegamos ao absurdo de desejos tão opostos, numa sociedade que vive ao mesmo tempo, no mesmo planeta, na mesma era? Difícil de conceber essa ideia, mas é o que está acontecendo atualmente. A onda generalizada e global de demissões voluntárias está em escalada, em ritmo recorde, no mundo todo. Foi deflagrada em abril do ano passado uma avalanche monumental de abandono de empregos jamais vista. As pessoas estão pulando aos montes do barco do trabalho, até então, o "meio de transporte" que as levaria a uma vida melhor. E o mais surpreendente é que uma boa parte dos retirantes não sabe quando - nem se - irá voltar para o jogo. Mas, afinal, para onde estão indo essas pessoas? O que estão de fato buscando? Como vão se sustentar? São perguntas que ainda estão longe de ter respostas acertadas.
Só nos Estados Unidos, em torno de 47
milhões de pessoas deixaram os seus empregos no ano passado nessas condições.
Para efeito de comparação, é como se toda a população da Espanha tivesse pedido
as contas nesse período. Vários outros países experimentam versões e tons dessa
mesma tendência. Na Alemanha, cerca de 2,5 milhões de empregados, 6% da força
de trabalho, deixaram seus postos no mesmo período. Na Inglaterra, 400 mil
avisos foram cumpridos em um único trimestre, o maior número já registrado no
país em três meses. Os dados proliferam e alguns são acachapantes. Como um que
foi obtido em uma pesquisa recente da Microsoft: nada menos do que 41% dos
trabalhadores de todo o mundo estão pensando em desistir, em dizer um alto e
sonoro “tchau, eu não trabalho mais aqui!" para os seus respectivos
chefes. Esse percentual salta para 54% quando a Geração Z é considerada
isoladamente. Por outro lado, no Brasil, com mais da metade da população
vivendo na pobreza e ao menos 13 milhões de desempregados, as pessoas dariam a
vida por uma chance de receber um salário digno.
O burnout, a falta de flexibilidade das
empresas, as preocupações com a saúde e a vontade de passar mais tempo com a
família lideram a lista dos possíveis gatilhos que detonaram a atual debandada,
dizem os especialistas. Não há dúvidas de que a pandemia teve um papel muito
importante nisso. Além de ter levado à deterioração da saúde mental e física de
boa parte da população planetária, a crise trouxe espaço e tempo para colocar
as prioridades em perspectivas. Isso provocou um questionamento de valores,
levando a uma reflexão sobre o que é realmente importante na vida e as
respostas que, muitas vezes, vão contra a manutenção do status quo.
Mas só esses fatores não explicam um
realinhamento do mercado de trabalho dessa magnitude, com potencial para virar
os negócios, a economia e a vida pelo avesso, como o que vem se desenhando.
Anthony Klotz, professor de administração da Universidade A&M do Texas, nos
Estados Unidos, estudioso do fenômeno das demissões, que previu e cunhou o
termo a Grande Renúncia, a retirada em massa de trabalhadores já vinha
acontecendo ao longo da última década, com as taxas de renúncia aumentando
expressivamente, ano a ano. A reconfiguração das relações entre capital e
trabalho já estava em curso, segundo Klotz, a crise sanitária só acelerou esse
processo.
Diante da tela do computador, ou no período
de inatividade forçada, muita gente se deu conta que trabalhava muito, mas
recebia muito pouco em troca, que esforço e trabalho duro não eram suficientes
para qualquer um ser e ter qualquer coisa, permitindo aos menos favorecidos de
vários cantos do globo subir pelo menos alguns degraus da escada social e
melhorar de vida, como aconteceu com as gerações de seus pais e avós. Na
verdade, essas pessoas já sabiam disso há um tempo, mas seguiam iludidas, se
esquivando desses fatos sobre os quais a pandemia lançou luz.
Toda essa movimentação agravou o problema
de escassez de trabalhadores no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, 94% das
empresas relatam muita dificuldade para contratar. Por conta da gravidade da
situação, o presidente Joe Biden anunciou que tinha inúmeros vistos de trabalho
para profissionais com habilidades extraordinárias e acima da média em várias
áreas sobrando e, contradizendo as políticas migratórias que prevaleceram por
anos no país, convidou efusivamente estrangeiros de todos os lugares a se
mudarem para lá a fim de ocupar milhões de vagas ociosas.
No Brasil, o cenário também é complicado:
de cada dez empresas, cinco não encontram gente para os cargos disponíveis,
inclusive nas funções mais básicas. No entanto, a situação brasileira é
exponencialmente pior do que a americana e de outros países desenvolvidos. O
descompasso entre o que as empresas buscam e a qualidade do nosso capital
humano é gritante. A assimetria entre o perfil dos empregos disponíveis e as
(poucas) habilidades dos milhões que buscam um emprego no país constitui um
enorme obstáculo, condena o país à estagnação, prejudica os negócios e detona
qualquer chance de evolução pessoal entre os menos favorecidos.
Para piorar, os nossos talentos, os poucos
que conseguimos desenvolver por causa da educação medíocre que temos, estão
deixando o país como nunca. A fuga de cérebros está a pleno vapor por aqui,
inclusive em novo formato, sem a necessidade de passar pelo aeroporto. Com a
ascensão do trabalho remoto, muitos profissionais estão sendo recrutados por
empresas e órgãos internacionais à distância para trabalharem virtualmente, sem
ter que se mudar do país e com a vantagem de ganhar em dólar ou outra moeda
mais valorizada que o real. Este não é um problema só das empresas, é uma
questão de interesse nacional. Os talentos são o bem mais precioso de um país e
mantê-los aqui deveria estar no topo da nossa lista de prioridades.
Precisamos começar já a agir em duas
frentes: temos que habilitar e requalificar os trabalhadores brasileiros com as
aptidões necessárias para participar da economia agora e, ao mesmo tempo,
direcionar esforços para a formação e retenção de novos talentos. Sem
profissionais bem preparados e gente talentosa, as atividades que demandam
menos estudo, oferecem salários baixos e são praticadas na informalidade, vão
continuar a crescer em ritmo muito maior do que aquelas que exigem mais
qualificação, pagam melhor e podem colocar o país na mesma fronteira
tecnológica em que se encontram as nações mais desenvolvidas, como já vem
acontecendo desde 2012, como mostra um estudo da FGV Ibre, de novembro.
A Grande Renúncia é o prenúncio das
inúmeras e enormes rupturas que estão por vir. O mundo está se transfigurando
em velocidade supersônica, a começar pelo mercado de trabalho. Se o Brasil não
conseguir escapar da armadilha da baixa produtividade na qual se meteu, vamos
ser esmagados pelo trem-bala que vai conduzir os países rumo ao desenvolvimento
e ao progresso neste século. Se isso acontecer, não teremos outra chance:
seremos varridos de vez para baixo do tapete da história.
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