O Globo / O Estado de S. Paulo
Tenho uma memória nítida do meu primeiro
carnaval. Dele, há uma velha foto dos anos 1940. Anos em que vivíamos em
Maceió, Alagoas, e meu pai, sério e com mapas da Europa na mesa, ouvia pelo
rádio os avanços das tropas aliadas derrotando Hitler. Mas hoje, com cinzas na
cabeça, descubro que o “imperialismo” não é monopólio dos “ianques
capitalistas” — lembram o “ianque, go home”? —, mas pertence também a uma
Rússia putinista-comunista.
Na memória, a guerra e a invasão na Europa
— as cinzas que abusadamente nos envolvem como um símbolo tenebroso do fim. Na
fotografia, o testemunho do mel, que, como aprendi com Lévi-Strauss, contém o
doce tão aguçado que se confunde com o fogo. O fogo dos “lábios de mel” da
namorada sinalizadora da vida.
Na foto, estamos, meus irmãos e eu, fantasiados de pierrô, personagem clássico da commedia dell’arte. A julgar pelas nossas carinhas cinzentas, éramos a própria imagem do infeliz namorado da Colombina, que se apaixona pelo risonho e meloso Arlequim. Nossa “fantasia” de cetim preto — ornada com pompons brancos e encimada por um chapéu cônico usado quando antigamente as crianças eram castigadas —completa esse momento cinzento do meu primeiro carnaval.
Depois de “grande”, tive a liberdade não
falada, mas costumeira, de ver e escrever sobre o carnaval como o ritual da
liberdade igualitária e libertina própria de um sistema fortemente marcado por
hierarquias e preconceitos.
Deixei de me fantasiar, exceto quando, nos
anos 1950, me vesti de “marinheiro”, instado pelo meu amigo Celso, de saudosa
memória. Hoje, lembro-me bem de como imaginamos ser figuras que as festas de
carnaval convocavam: ao lado do pirata da perna de pau, do caubói de cinema e
do marinheiro ancorado pelos preconceitos de sua família, rua, bairro, cor e
classe social.
A partir disso, encontrei o famoso mel
carnavalesco que Lévi-Strauss contrasta com o tabaco, trazido para o Novo Mundo
pelo Velho. Do fumo, que pratiquei igualmente com afinco, imitando o cinema do
meu tempo, só restam cinzas. Cinzas requentadas e venenosas que suspendem ou
disciplinam aquela festa imaginada como não tendo regras, em que “você podia
fazer tudo”.
Mudando de plano e passando dos meninos
fantasiados para o idoso que hoje sou, creio que entendo bem esse momesco
comando segundo o qual “no carnaval, você pode fazer tudo!”. Eu mesmo disse
isso num seminário em Harvard sobre rituais, em que meu mentor, Richard
Moneygrand, ficou aturdido.
Se todo ritual tem regras mais explícitas
que o cotidiano e, por isso mesmo, é um momento especial, como ter uma festa em
que tudo se pode fazer, exceto se pensarmos numa sociedade onde poucos podem
tudo ou muito? E fazem de modo sorrateiro, porque o mundo fora da festa é
regido por regras muitos sérias e duras sobre o que se pode fazer. Exceto, é
claro, os que tudo podem. Essa ainda é nossa questão, pois todo limite
significa um centro, um outro ponto de vista, uma quaresma entre a natividade,
a morte e o renascimento, entre corrupção e punição.
Numa guerra há essa mesma regra. Nela, o agressor pode tudo, e seu etnocentrismo, transformado em radical nacionalismo, legitima a brutalidade. Neste sentido, o carnaval é uma guerra ao contrário. E, na quaresma que começa nesta “Quarta de Cinzas”, testemunhamos ao vivo e em cores o brutal assalto russo à Ucrânia. A quaresma, sabem os católicos, é um momento de contenção porque passa pelo Cristo Crucificado e por sua ressurreição. Mas, nesses 40 dias, sofreremos uma dupla frustração. Além de um segundo carnaval perdido pela pandemia, que nos trouxe tantas cinzas, teremos de confiar no mel de nossas esperanças, cujo final, diferentemente do carnaval, é tão imprevisível quanto as cinzas da morte.
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