quarta-feira, 2 de março de 2022

Bernardo Mello Franco: Traduzindo o bolsonarês

O Globo

O ministro das Relações Exteriores arrumou uma nova tarefa. Virou dublê de intérprete presidencial. Acostumado a aprender idiomas, Carlos França abraçou um desafio mais ousado. Vai se dedicar a traduzir o bolsonarês para o mundo.

No domingo, o capitão interrompeu a folia para avisar que não pretende criticar a invasão russa da Ucrânia. A guerra já estava no quarto dia, mas ele alegou que ainda queria “entender o que está acontecendo”. “Não vamos tomar partido. Nós vamos continuar pela neutralidade”, sentenciou.

Na segunda-feira, França tentou explicar que Bolsonaro não disse o que disse. “Quando o presidente usou neutralidade, é no sentido de imparcialidade. Não é no sentido de indiferença”, esclareceu, em entrevista à GloboNews.

Sem autonomia para cuidar da política externa, o chanceler pode justificar o salário na nova função. Afinal, um tradutor do bolsonarês teria poupado o país de muitos traumas recentes. Na posse, quando o capitão prometeu “valorizar a família”, o intérprete explicaria que ele se referia a todas as famílias. E não só à própria, mimada com rachadinhas e mordomias federais.

Ao anunciar que “acabou com a Lava-Jato”, Bolsonaro não confessou ter nomeado um engavetador para proteger corruptos. Apenas pretendia rebatizar a operação, já que o nome original é ecologicamente incorreto e incentiva o desperdício de água.

Quando informou que “os caras querem é a nossa hemorroida”, o presidente não quis dizer nada daquilo que o leitor está pensando. O objetivo era motivar a população a visitar os médicos especializados em distúrbios do aparelho digestivo.

As ameaças ao Supremo Tribunal Federal também não teriam passado de mal-entendidos. Ao chamar o ministro Alexandre de Moraes de “canalha”, Bolsonaro usava o tom carinhoso dos cariocas que se reencontram no bar depois de muito tempo afastados: “Saudade, seu canalha!”.

Ao acrescentar que descumpriria as próximas decisões do ministro, o capitão não incitou a quebra da ordem constitucional. Apenas queria ressaltar a perfeita harmonia entre os Poderes. Como diria o general Pazuello, democracia é simples assim: um manda e o outro obedece.

O intérprete França também poderia ter salvado a pátria quando o chefe declarou, em tom furibundo, que “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”. Na verdade, Bolsonaro nunca quis provocar uma crise desnecessária com os Estados Unidos, maior potência militar do mundo. Em caso de dúvida, é só perguntar ao Putin.

 

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