quarta-feira, 2 de março de 2022

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão*: Adeus papai!...Adeus, filho!...

O início do fim da guerra do Vietnam foi marcado por dois eventos impactantes. A foto da menina vietnamita correndo nua pela estrada, tentando escapar das bombas de napalm que explodiam atrás dela, e o assassinato, com um tiro no ouvido de um vietcong capturado, no meio da rua de Saigon, em frente as câmeras de televisão, dado pelo chefe de polícia. A opinião pública mundial foi despertada naquele momento para a desumanidade, a brutalidade e a insanidade das guerras.  Afinal, o respeito à vida humana e a diplomacia teriam evoluído muito. 

Há dois ou três dias, na divisa com a Ucrânia, uma mulher assistia a orientação dada aos jovens soldados russos, perfilados, prontos para a ocupação da Ucrânia. Avistando filho no meio da tropa, não resistiu: atropelou oficiais e guardas, invadiu a formação, abraçando-se a ele, chorando. O soldado manteve inicialmente a postura militar ereta, olhando para frente onde estava os superiores mas, de repente, também desabou em lágrimas abraçado à mãe. 

"Adeus meu filho!" Adeus papai!". Na estação de Kiev, na Ucrânia, suspenso pelos cidadãos, e passado de mão em mão, no meio da multidão que tentava embarcar para a Romênia, um menino ia despedindo-se do pai até alcançar a mãe no interior do trem.  Mulheres e crianças foram recomendadas a deixar o território ucraniano. Maridos e pais com idade entre 18 ae 60 anos estavam proibidos de sair do país. 

Na Ucrânia ainda, foram gravadas cenas de jovens pais mal saídos da adolescência despedindo-se das esposas, que partiam assustadas com bebês nos braços. Os homens estavam convocados compulsoriamente para lutar ou morrer. Mesmo assim, professoras de uma escola pública armaram-se com equipamentos pesados para esperar os russos.

Remete, de fato, a 1968, ao episódio do   General Nguyen Ngoc Loan descarregando o revólver na cabeça do prisioneiro. O corpo do vietnamita ficou ali, por dias exposto até que os restos mortais fossem recolhidos por uma carrocinha, igual à desses trabalhadores informais que recolhem lixo nas ruas.

Conhece-se pouco do aparato militar ucraniano, mas se isso vai ocorrer com eles, não se sabe. Os corpos dos ucranianos mortos parece que terão uma solução mais próxima dos vietnamitas. Continuarão abandonados pelas ruas ou coletados coletivamente por carroças para serem enterrados ou incinerados anonimamente.

Os russos, não. O Exército está levando para a frente de batalha crematórios volantes para os cadáveres dos soldados. Os mortos serão transformados em cinzas, que poderão chegar em uma urna aos familiares.  Esses fornos, de invenção nazista, intimidam os soldados, induzindo os soldados a lutar pela vida, ao mesmo tempo que alimentam menos esperanças de que voltarão a ver esposas, filhos e mães.

 A despedida do Pai daquela criança apoiada nos braços do mãe, em lágrimas de desespero na porta do trem, prenunciava a possibilidade de ser aquela a última visão família. Ocorreria tanto de um lado quanto do outro. A Rússia bombardeou mais de 270 pontos de resistência dos ucranianos, atingindo porto aeroportos, gasodutos, mas também escolas e prédios residenciais civis e, por cima, proibiu a imprensa de dar tratamento de "guerra"ao confronto, e tem evitado revelar o número de mortos. Sim, porque os ucranianos estão usando coquetéis molotov e os próprio corpos (como no Tianamen), por todos os lugares, como os estudantes fizeram na invasão de Praga e de Budapeste, no passado contra esses mesmo russos, para parar os tanques de guerra. 

Segundo a versão de Putim, a Ucrânia é o berço étnico da Rússia. A sua criação como país teria sido um erro de Lênin. Ele, senhor de si, aparenta ser mais um sujeito traumatizado. Assistiu in loco a derrocada de Berlim Oriental e, por consequência, destruição da União Soviética, agindo como espião dentro da Alemanha.  Considerou o fato mais desastroso do século passado. É possível que tenha guardado aquela imagem, e venha tentando resgatar a União Soviética (URSS), acreditando poder manter a Rússia hegemônica na região, como na Guerra Fria.  

A realidade tem mostrado que, todos os vizinhos que se recusam a dobrar-se à liderança da Rússia, ou de Putim, são colocados no mesmo saco. Já invadiu o Afeganistão, a Chechênia, a Geórgia, a Mondalvia, Belarus, tomou a Criméia, e quer a Ucrânia, parte da qual já ocupou. Para não deixar por menos ameaça a Suécia, a Finlândia e os países bálticos. Sua geopolítica não respeita as etnias, nem os cidadãos civis. Para Putim são pessoas que não pertencem a lugar nenhum (Bjorn Berge, 2021). São todos russos. Pretenderia ele corrigir os caminhos da história, restaurando a URSS como uma Federação, liderada pelos russos. 

Pensando estrategicamente, Putim pode até ter um pouco de razão, que é alimentada por verdadeiras provocações do Ocidente, em particular os EUA e pela própria imprensa, anunciando guerra todos os dias. São desafios que não resultam de consultas públicas internas. 

A guerra tem um cenário real fora dos gabinetes dos governantes e estrategistas militares, que parecem desdenhá-lo. É lá onde está a sociedade civil, ignorada em todos os lugares. ´Tem sido ela a maior vítima dos conflitos bélicos no mundo. Portanto, assim como aconteceu nos Estados Unidos durante a guerra do Vietnam, na Rússia grupos de pessoas estão saindo às ruas para protestar contra a invasão da Ucrânia, considerado um país irmão - e não mais um satélite. 

No mundo todo há uma indignação crescente contra a atitude de Putim, que virou meme entre cidadãos.  E, por último, talvez fosse bom lembrar que a guerra como solução, em pleno século 21, estaria refletindo, provavelmente, o obsoletismo dos modelos diplomáticos e desvendando, mais uma vez, os riscos de governantes insanos. Não existe mérito em conseguir a paz pela guerra.

 * Jornalista e professor

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