Valor Econômico
Com essa resistência, ucranianos mostram
que querem uma nova história e sua democracia liberal
O artigo de hoje será diferente. Já tinha
escrito outro texto sobre a questão dos juros bancários para pessoas físicas no
Brasil. Porém resolvi fazer uma reflexão pessoal sobre o momento atual que
vivemos.
Desde o dia 24 de fevereiro que assistimos
com preocupação a invasão da Ucrânia pela Rússia com alto custo humanitário,
várias vítimas e o êxodo de famílias fugindo do sofrimento e da morte.
Quem diria que nos dias atuais iríamos
enfrentar uma guerra como a que está acontecendo na Europa, após um longo
período de integração econômica, cultural e de relativa paz na região?
O Brexit já foi para mim um evento inesperado e que me causou desconforto. O Reino Unido integrado à Europa fazia parte da vida que estávamos acostumados. O fluxo de pessoas gera também fluxos de ideias e de cultura, que geralmente vem acompanhado de relativo progresso econômico e social. Assim foi no Reino Unido no período anterior ao Brexit.
A campanha do Brexit foi montada em fatos
comprovadamente inverídicos, porém a separação institucional da Europa refletia
também a preferência de parte da sociedade. Nos anos anteriores ao plebiscito,
a forte migração para o Reino Unido afetou também a comunidade local de
trabalhadores pouco qualificados, congestionando os bens públicos (sistema de
saúde, educacional e habitacional) e criou insatisfação para aqueles que
sofreram com a competição externa e que ficaram para trás.
No entanto, a possibilidade de uma guerra
na Ucrânia com ameaça real de um conflito maior e até nuclear não estava nas
nossas mentes quando vim com a minha família para o Reino Unido no dia 6 de
setembro de 2007.
Foi uma mudança grande nas nossas vidas. Ficamos
longe dos nossos familiares e amigos, da natureza brasileira e da nossa forma
de ser. Construímos outras amizades, encontramos diversas pessoas, tivemos que
nos adaptar a uma nova cultura, algo habitual na vida dos imigrantes. Passamos
a viver sem pensar no que não estávamos tendo, aproveitando também as coisas
boas do estrangeiro. Como deve ser.
Um dos bons atributos da vida em Cambridge
é a segurança urbana. Há sim crimes na cidade, muitas vezes relacionados com o
comportamento agressivo de jovens envolvidos com drogas ilícitas, álcool e com
a leniência das autoridades com esse tipo de comportamento. Porém, raramente
vemos polícia na cidade e ao mesmo tempo a criminalidade é baixíssima. A taxa
de homicídio no Reino Unido é de 1,2 por 100.000 habitantes. Nos Estados Unidos
essa taxa é de 4,96 e no Brasil de aproximadamente 28 por 100.000 habitantes.
Em Cambridge essa taxa é menor do que 1. O principal crime na cidade é o furto
de bicicletas.
Vou e volto caminhando para o trabalho.
Retorno, na maioria dos dias, tarde da noite, passando no meio de um parque com
pouquíssima iluminação e nunca me sinto ameaçado. Ao contrário, gosto de
observar com cuidado a mudança constante da natureza, que do lado de cá parece
se transformar mais rapidamente.
Meus filhos começaram a ir sozinhos de
bicicleta para o colégio quando completaram 11 anos. O meu filho, hoje com 17
anos, tem atividades voltadas para a rua, nos parques da cidade e nos campos de
futebol. Quando visitamos o Brasil, ele reclama que andamos pouco e de sua
impossibilidade de ir para os lugares por conta própria. A vida dele em
Cambridge é um pouco parecida com a que tive na minha adolescência em
Olinda-PE, nos meados dos anos 80.
Minha filha mora em Brighton, Sul da
Inglaterra, onde estuda e se desloca de dia e de noite por meio do transporte
público. Claro que ficamos preocupados com a possibilidade de violência que
tipicamente as mulheres sofrem em vários lugares do mundo, mas temos
consciência que ela tem uma vida longe de casa com relativa segurança.
Após quase 15 anos vivendo aqui, viramos
também cidadãos britânicos. Nossos filhos passaram grande parte da vida deles
aqui e se sentem, dentro do possível, integrados à sociedade inglesa. Dizem que
gostam da Inglaterra. Ao mesmo tempo, adoram o Brasil, encontrar a família, mas
sempre falam no futuro profissional deles em Londres. Consigo entender.
A capital inglesa tem vários atrativos para
os jovens: excelentes universidades, boa infraestrutura urbana, mercado de
trabalho dinâmico e amplo, vida cultural intensa e cheia de jovens com
objetivos diversos, mas ao mesmo tempo com valores semelhantes.
Na minha juventude, a Guerra Fria, o
investimento em armas nucleares e a possibilidade de um conflito entre os
Estados Unidos e a ex-União Soviética foram temas sempre discutidos. Reflexões
sobre esses tópicos estavam no nosso imaginário, apesar de Thomas Schelling,
prêmio Nobel de economia de 2005, nos ensinar que as armas nucleares servem
muito mais para impedir um conflito maior ao invés de serem acionadas.
Penso que para os nossos filhos e os jovens
atualmente, as discussões globais sempre foram bem diferentes da nossa geração.
Para eles, os principais temas foram mudança climática, liberdade individual,
desigualdade, racismo e respeito às escolhas das pessoas. Não vejo nada de
errado nisso, as questões mudaram ao longo do tempo de acordo com os problemas
que as sociedades enfrentavam.
O ocidente, aos poucos, definiu uma nova
ordem mundial baseada na difusão da democracia liberal, valores libertários e
estabilidade política. Gastos militares como proporção do PIB foram reduzidos
ao longo do tempo, caindo em mais da metade nos Estados Unidos entre 1960 e
2020. Quedas ainda mais substanciais foram observadas no Reino Unido e na
França.
Gastos sociais, por outro lado, tiveram
aumentos significativos. Essas mudanças refletiram as demandas populares dos
países.
Putin, no entanto, pode agora estar
causando uma marcante mudança na ordem mundial e para um papel da Rússia mais
isolado do Ocidente e vinculado à China, sua maior vizinha, em particular. A
União Europeia tende a quebrar a antiga relação com o país com o maior
território do planeta e amplas riquezas naturais, que agora passarão a ser mais
integradas à China.
Apesar de estarem próximos geograficamente,
a resistência heroica dos ucranianos demonstra que os mesmos têm repulsa a
regimes autocráticos, longa tradição da Rússia, e desejam ser parte da Europa,
construindo uma nova história e sua democracia liberal. Que esses valores de
soberania popular possam ser respeitados e preservados.
*Tiago Cavalcanti,
economista, é professor da Universidade de Cambridge e da FGV-SP
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