quarta-feira, 2 de março de 2022

Tiago Cavalcanti*: Reflexões sobre o momento atual

Valor Econômico

Com essa resistência, ucranianos mostram que querem uma nova história e sua democracia liberal

O artigo de hoje será diferente. Já tinha escrito outro texto sobre a questão dos juros bancários para pessoas físicas no Brasil. Porém resolvi fazer uma reflexão pessoal sobre o momento atual que vivemos.

Desde o dia 24 de fevereiro que assistimos com preocupação a invasão da Ucrânia pela Rússia com alto custo humanitário, várias vítimas e o êxodo de famílias fugindo do sofrimento e da morte.

Quem diria que nos dias atuais iríamos enfrentar uma guerra como a que está acontecendo na Europa, após um longo período de integração econômica, cultural e de relativa paz na região?

O Brexit já foi para mim um evento inesperado e que me causou desconforto. O Reino Unido integrado à Europa fazia parte da vida que estávamos acostumados. O fluxo de pessoas gera também fluxos de ideias e de cultura, que geralmente vem acompanhado de relativo progresso econômico e social. Assim foi no Reino Unido no período anterior ao Brexit.

A campanha do Brexit foi montada em fatos comprovadamente inverídicos, porém a separação institucional da Europa refletia também a preferência de parte da sociedade. Nos anos anteriores ao plebiscito, a forte migração para o Reino Unido afetou também a comunidade local de trabalhadores pouco qualificados, congestionando os bens públicos (sistema de saúde, educacional e habitacional) e criou insatisfação para aqueles que sofreram com a competição externa e que ficaram para trás.

No entanto, a possibilidade de uma guerra na Ucrânia com ameaça real de um conflito maior e até nuclear não estava nas nossas mentes quando vim com a minha família para o Reino Unido no dia 6 de setembro de 2007.

Foi uma mudança grande nas nossas vidas. Ficamos longe dos nossos familiares e amigos, da natureza brasileira e da nossa forma de ser. Construímos outras amizades, encontramos diversas pessoas, tivemos que nos adaptar a uma nova cultura, algo habitual na vida dos imigrantes. Passamos a viver sem pensar no que não estávamos tendo, aproveitando também as coisas boas do estrangeiro. Como deve ser.

Um dos bons atributos da vida em Cambridge é a segurança urbana. Há sim crimes na cidade, muitas vezes relacionados com o comportamento agressivo de jovens envolvidos com drogas ilícitas, álcool e com a leniência das autoridades com esse tipo de comportamento. Porém, raramente vemos polícia na cidade e ao mesmo tempo a criminalidade é baixíssima. A taxa de homicídio no Reino Unido é de 1,2 por 100.000 habitantes. Nos Estados Unidos essa taxa é de 4,96 e no Brasil de aproximadamente 28 por 100.000 habitantes. Em Cambridge essa taxa é menor do que 1. O principal crime na cidade é o furto de bicicletas.

Vou e volto caminhando para o trabalho. Retorno, na maioria dos dias, tarde da noite, passando no meio de um parque com pouquíssima iluminação e nunca me sinto ameaçado. Ao contrário, gosto de observar com cuidado a mudança constante da natureza, que do lado de cá parece se transformar mais rapidamente.

Meus filhos começaram a ir sozinhos de bicicleta para o colégio quando completaram 11 anos. O meu filho, hoje com 17 anos, tem atividades voltadas para a rua, nos parques da cidade e nos campos de futebol. Quando visitamos o Brasil, ele reclama que andamos pouco e de sua impossibilidade de ir para os lugares por conta própria. A vida dele em Cambridge é um pouco parecida com a que tive na minha adolescência em Olinda-PE, nos meados dos anos 80.

Minha filha mora em Brighton, Sul da Inglaterra, onde estuda e se desloca de dia e de noite por meio do transporte público. Claro que ficamos preocupados com a possibilidade de violência que tipicamente as mulheres sofrem em vários lugares do mundo, mas temos consciência que ela tem uma vida longe de casa com relativa segurança.

Após quase 15 anos vivendo aqui, viramos também cidadãos britânicos. Nossos filhos passaram grande parte da vida deles aqui e se sentem, dentro do possível, integrados à sociedade inglesa. Dizem que gostam da Inglaterra. Ao mesmo tempo, adoram o Brasil, encontrar a família, mas sempre falam no futuro profissional deles em Londres. Consigo entender.

A capital inglesa tem vários atrativos para os jovens: excelentes universidades, boa infraestrutura urbana, mercado de trabalho dinâmico e amplo, vida cultural intensa e cheia de jovens com objetivos diversos, mas ao mesmo tempo com valores semelhantes.

Na minha juventude, a Guerra Fria, o investimento em armas nucleares e a possibilidade de um conflito entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética foram temas sempre discutidos. Reflexões sobre esses tópicos estavam no nosso imaginário, apesar de Thomas Schelling, prêmio Nobel de economia de 2005, nos ensinar que as armas nucleares servem muito mais para impedir um conflito maior ao invés de serem acionadas.

Penso que para os nossos filhos e os jovens atualmente, as discussões globais sempre foram bem diferentes da nossa geração. Para eles, os principais temas foram mudança climática, liberdade individual, desigualdade, racismo e respeito às escolhas das pessoas. Não vejo nada de errado nisso, as questões mudaram ao longo do tempo de acordo com os problemas que as sociedades enfrentavam.

O ocidente, aos poucos, definiu uma nova ordem mundial baseada na difusão da democracia liberal, valores libertários e estabilidade política. Gastos militares como proporção do PIB foram reduzidos ao longo do tempo, caindo em mais da metade nos Estados Unidos entre 1960 e 2020. Quedas ainda mais substanciais foram observadas no Reino Unido e na França.

Gastos sociais, por outro lado, tiveram aumentos significativos. Essas mudanças refletiram as demandas populares dos países.

Putin, no entanto, pode agora estar causando uma marcante mudança na ordem mundial e para um papel da Rússia mais isolado do Ocidente e vinculado à China, sua maior vizinha, em particular. A União Europeia tende a quebrar a antiga relação com o país com o maior território do planeta e amplas riquezas naturais, que agora passarão a ser mais integradas à China.

Apesar de estarem próximos geograficamente, a resistência heroica dos ucranianos demonstra que os mesmos têm repulsa a regimes autocráticos, longa tradição da Rússia, e desejam ser parte da Europa, construindo uma nova história e sua democracia liberal. Que esses valores de soberania popular possam ser respeitados e preservados.

*Tiago Cavalcanti, economista, é professor da Universidade de Cambridge e da FGV-SP

 

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